“A gente combinamos de não morrer”, escreveu Conceição Evaristo. E esse não-morrer é defender nossa existência e nossa memória, como faz Maurício Monteiro
Há quantos séculos o Estado e a sociedade brasileira buscam apagar a memória e a própria existência do povo negro? Das trocas dos nomes dos africanos sequestrados para nomes “cristãos” ao número de pessoas negras mortas e encarceradas, onde quer que esteja o negro, sobram apagamentos contínuos, violentos, estigmatizantes ao longo da vida. E a branquitude segue em paz, segura de sua vida não-racializada e não-responsabilizada.
Nada disso foi aceito bovinamente. A própria razão de ser do Dia da Consciência Negra — pela primeira vez feriado nacional, na quarta-feira (20/11) — demonstra que houve e há resistência. “A gente combinamos de não morrer”, escreve Conceição Evaristo. E esse não-morrer é defender nossa existência, nossa memória, nossos direitos.
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Maurício Monteiro tem 55 anos. Há 32 anos, em 2 de outubro, ele sobreviveu a um massacre produzido pela polícia e pelo sistema prisional de São Paulo contra pessoas encarceradas, sob responsabilidade do Estado. Em um documentário produzido pela Ponte em 2022, marcando os 30 anos do Massacre do Carandiru, Maurício e outros sobreviventes contaram o que ocorreu naquele dia. As cenas relatadas são dignas de filme de terror.
A perspectiva de quem era preso em outubro de 1992 sofre um contínuo apagamento, afinal a opinião popular é de que “não havia nenhum santo ali” — como tantas e tantas vezes li em comentários nas redes sociais da Ponte (acredite, tem uma galera desse tipo que é muito engajada em comentar cada reportagem nossa).
Há quem diga que toda prisão tem um pouco de navio negreiro e, como tal, não é necessário registrar a memória desses corpos sem almas, descartáveis e inumanos. Não à toa, o governo brasileiro, na pessoa do patrono do Direito, Ruy Barbosa, ministro da Fazenda da época, mandou destruir os arquivos oficiais sobre a escravidão em uma fogueira em 13 de maio de 1891. Supostamente, para que não houvesse pedido de indenização por parte dos senhores de escravizados.
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O estado de São Paulo criou em 2007 um espaço de memória da Casa de Detenção do Carandiru sem a memória do massacre ali ocorrido. Em 2022, egressos do sistema carcerário como Maurício criaram um programa para contar à sociedade a história dos corpos que passaram pelo tumbeiro (como os navios negreiros costumam ser referidos) chamado Carandiru. O mesmo governo paulista, com outras cores políticas, extinguiu o programa mesmo com os responsáveis por tocá-lo, Maurício entre eles, afirmando que trabalhariam voluntariamente.
“Eu vejo essa atitude como um apagamento da história. Há 31 anos atrás, eles mataram aquelas pessoas, e, agora, 31 anos depois, estão matando a história delas”, Maurício disse à Ponte em uma entrevista em 2023.
Outubro de 2024. Maurício e outros egressos são apagados novamente. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) extinguiu as penas de todos os policiais condenados pelo massacre. O recado da Justiça foi claro: está tudo bem matar quem quer que seja, onde quer que esteja, sobretudo se for preto e periférico. Não à toa, em novembro, tivemos uma criança de 4 anos morta em Santos e a absolvição do responsável pela morte de uma menina negra.
Há um combinado tácito de nos matar, nos apagar. Assim como Maurício, seguimos aqui dizendo nossos nomes e histórias, lutando contra condições adversas que nos foram impostas há 400 anos. Eles tentam nos matar, mas somos um coletivo teimoso de pessoas que insistem em viver e lutar por direitos. Como disse a escritora estadunidense Maya Angelou, em seu poema Ainda assim eu me levanto:
“Sou um oceano negro, vasto e irrequieto
Indo e vindo contra as marés eu me elevo
Esquecendo noites de terror e medo
Eu me levanto
Numa luz incomumente clara de manhã cedo
Eu me levanto
Trazendo os dons dos meus antepassados
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos
Eu me levanto
Eu me levanto
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