Artigo |  Uma década de (mais) corpos negros mortos pelo Estado

Perfil racial das pessoas mortas pela polícia nos últimos dez anos deixa claro que será preciso refundar a instituição policial e a própria estrutura do Estado para reparar e restituir o direito à vida de 56% da população brasileira

Fonte: Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo | *Considera amarelos e quando os dados sobre raça não foram informados

“Eles combinaram de nos matar”, a frase da escritora Conceição Evaristo se encaixa perfeitamente quando olho para o gráfico com o perfil racial das pessoas mortas pela polícia desde 2013. A informação está na reportagem da repórter da Ponte Catarina Duarte que analisa os dados da SSP da letalidade no ano de 2024. 

A maioria dos mortos eram pretos, como eu. A diferença, você verá no gráfico acima, é escandalosa em relação a pessoas brancas. E há ainda quem defenda que a polícia não observa a cor em seu trabalho. Como se explica então esses números altos de pessoas negras mortas pela mão do Estado. Há quem diga que a polícia também mata brancos, mesmo que ninguém tenha negado isso. O absurdo é existir uma cor da pele mais “matável”. 

Leia mais: SP tem maior alta de letalidade policial em uma década

O próprio secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, disse em TV aberta no programa Roda Viva de 17 de abril de 2023, que a polícia “combate o crime” e que “não existe um indivíduo suspeito”. “Agora, se dentro do número de criminosos detidos pela polícia ou que acabam, lamentavelmente, entrando em confronto com a polícia, a maior parte deles pertence a um… Não sei se posso falar… determinado grupo, como maneira correta de falar, isso foge da alçada da polícia”.

Derrite ainda defendeu que não haveria como a polícia agir institucionalmente de forma racista porque a maior parte da corporação é formada por policiais negros e provenientes de regiões periféricas. É quase como se dissesse que não é racista porque tem amigos ou até ancestrais negros. 

Ora, como o senhor secretário explica esses números de mortes de pessoas negras? 62% do total de mortes decorrentes de intervenção policial foram de pessoas negras em 2024. Não é uma margem nem mesmo próxima com a proporção de pessoas brancas. O fato é que, há quase uma década, pessoas negras têm sido os maiores alvos das mortes cometidas pela polícia.

Sob a égide da escravidão

E os números apresentados são da própria secretaria comandada por Derrite. Estamos falando de um período histórico curto, dez anos, mas há quantas décadas e até séculos as forças de segurança tiveram como alvo preferencial corpos negros? Não foram inclusive criadas sob a égide de capturar os escravizados fugitivos, conter rebeliões, vigiar os recém libertos? 

834 pessoas negras perderam sua vida durante os dois anos de governo Tarcísio contra 420 brancos mortos. A diferença é de 50% entre uma população e outra. Em uma década, 5.664 pessoas negras foram mortas, um número 53% mais alto que o de pessoas brancas. Não é coincidência, não é uma ferramenta retórica de movimentos sociais. São fatos da própria instituição que passou por diferentes administrações e não sofreu grandes mudanças em relação ao perfil racial. 

Ainda há o agravante de que, conforme levantamento do repórter Paulo Batistella com base em dados do Ministério Público, 4 dos 10 batalhões mais letais continuam sem câmeras nas fardas em SP, mesmo com determinação do STF para que a distribuição seja feita sob o critério da maior letalidade. Dos 80 mil PMs de São Paulo, pouco mais de 10 mil utilizam as COPs que ajudam a coibir a letalidade e constranger a versão dos policiais para os fatos — que é costumeiramente acatada como verdade pelo MP e pela Justiça. 

Leia mais: PM mantém sem câmeras quatro dos dez batalhões mais letais de São Paulo

Não há ações contundentes de controle da atividade policial por parte do MP. Essa semana vimos o STF por meio do ministro Edson Fachin propor uma série de dispositivos para redução da letalidade nas periferias do Rio durante o julgamento da ADPF das Favelas

A instituição policial assim como a própria estrutura do Estado precisam ser refundados para reparar e restituir o direito à vida e aos meios de mantê-la de 56% da população. Dessa massa negra que todos os dias há mais de 400 anos precisa se mover para se manter viva e, de cabo, levar adiante esse país. Queremos viver e não apenas lutar o tempo todo em diferentes fronts pela nossa sobrevivência. Mas, como escreveu a dona Conceição, eles combinaram de nos matar — e a gente combinou de não morrer.

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