Artigo | Uma outra maneira de pensar a segurança pública

    Apesar da derrota na ADPF das Favelas, participação da sociedade civil e das pessoas que vivem nos territórios alvo de operações policiais na discussão da segurança dá pistas de como enfrentar o imaginário excludente e conservador

    Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    “Venceu a segurança pública”, disse Cláudio Castro, governador do Rio de Janeiro, depois do julgamento da ADPF 635 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Julgada parcialmente procedente em abril deste ano, a ADPF 635, ou “ADPF das Favelas”, como ficou popularmente conhecida, demandou o reconhecimento da inconstitucionalidade dos altos níveis de violência e letalidade policial em operações realizadas em favelas e comunidades. Castro acrescentou que a decisão foi uma vitória para o “povo que quer ter o direito de viver salvaguardado”.

    Mas quem é esse “povo” que Castro menciona? E qual sentido dado por ele à ideia de “segurança pública”, que engloba inclusive o uso de helicópteros como plataformas de tiro? No bojo das várias manifestações apresentadas em defesa desse tipo de operação policial, os argumentos pela constitucionalidade das incursões policiais em favelas revelam também diagnósticos sobre como atores conservadores e reacionários tem entendido a segurança pública brasileira, interpretado os direitos fundamentais e articulado um projeto de expansão de poder das forças policiais.

    Leia mais: ADPF das Favelas tem reviravolta, e STF diz que segurança do Rio saiu de ‘estado inconstitucional’

    Em A lei da bala, do boi e da Bíblia: cultura democrática em crise e disputa por direitos (Tinta-da-China Brasil, 2024), analisamos — a partir de documentos da ADPF 635, de outras ações anteriores levadas ao STF e de projetos de lei que tratam do tema da segurança pública — como o direito tem sido campo de disputa para o conservadorismo e o reacionarismo brasileiro.

    Combatendo qualquer tipo de controle externo à atividade policial, atores desses grupos defendem a expansão dos direitos dos integrantes das forças de segurança pública e apoiam a ampliação da circulação de armas de fogo a partir de um diagnóstico que afirma que o país estaria imerso em uma crise de segurança pública. Nessa visão de mundo, os policiais e portadores de armas de fogo e munições legais estariam combatendo um perigoso inimigo — qualquer pessoa criminalizada —, portanto teriam de ter suas ações sempre legitimadas. Do outro lado, aos “criminosos”, os “inimigos” da bala, não restaria nem as proteções mínimas que garantem a plena cidadania.

    Controle ‘inconstitucional’?

    Nesse imaginário conservador-reacionário, o Estado — excluindo-se dele os agentes das forças de segurança pública — seria o responsável pela crise da segurança pública. Políticas ineficientes, consideradas pouco repressivas ou algo garantistas, elaboradas pelos governos de esquerda e iniciativas de controle da atividade policial coordenadas pelo Legislativo ou o Judiciário — como a ADPF 635 — são apresentadas nos documentos que analisamos como causas da ineficiência do Estado e, por consequência, raízes do colapso da segurança pública no país. 

    As iniciativas de controle da atividade policial chegam a ser enquadradas por tais grupos como inconstitucionais — tanto por prejudicarem o que entendem por segurança pública, quanto por, segundo entendem, ferirem a separação de poderes e a vontade da maioria — expressa pela eleição de governadores como Castro.

    Leia mais: Fachin ordena medidas para reduzir violência policial em julgamento de recurso da ADPF das Favelas no STF

    Nesse sentido, as movimentações de atores conservadores e reacionários convergem para uma noção de segurança pública restritiva: centrada na atividade sem limites das forças de segurança pública e na violência, na medida em que busca neutralizar os “criminosos”, “inimigos” da sociedade. Longe de salvaguardar os direitos da população de forma irrestrita, essa concepção de segurança pública, que tem marcado a atuação de Claudio Castro e de outros atores políticos do espectro conservador-reacionário, é altamente excludente.

    A decisão do STF na ADPF 635, por sua vez, parece indicar as insuficiências dessa noção de segurança pública excludente, baseada na violência. Conforme o voto do ministro Edson Fachin lembra, tal modelo constitui uma “posição radicalmente violenta e incompatível com os valores centrais das democracias ocidentais”. À primeira vista, portanto, a decisão da Corte, que expressa uma posição de consenso entre os onze ministros, pode ser entendida como um esforço de contraposição à ideologia securitária-autoritária (Faganello, 2015; Brito; Reias; Rosa; Amaral, 2024) que anima o imaginário de atores conservadores e reacionários.

    Isso porque, a decisão reconhece a permanência de um estado de coisas inconstitucional na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e determina que uma nova série de medidas de monitoramento da situação sejam colocadas em prática até que tal estado de inconstitucionalidade deixe de existir.

    Discriminação racial e segurança pública

    Além disso, o Tribunal afirma que, ainda que “a eficácia da atuação letal das forças policiais para a redução da criminalidade” estivesse comprovada, um modelo de segurança pública baseado nesta premissa “seria uma opção inconstitucional e incompatível com o ordenamento jurídico pátrio e com o direito internacional dos direitos humanos”. Nesse sentido, o voto conjunto reconhece que “uma profunda transformação política, social e cultural que dissocie práticas históricas de discriminação racial do exercício das funções de segurança pública” não só é necessária, como também o único caminho compatível com a Constituição e as convenções internacionais.

    Não obstante, o julgamento da ADPF 635 tem sido comemorado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro como uma vitória da “segurança pública” entendida, como vimos, como sinônimo de aumento da repressão policial com incursões violentas e letais pelo território do estado e flexibilização das ações de controle das forças de segurança pública. Antes de seu julgamento, Castro criticou abertamente a ADPF, responsabilizando a ação pelos problemas de segurança e violência do Rio de Janeiro.

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    Uma incursão pelos pedidos formulados na ADPF 635, mas não acolhidos pelo STF, pode nos ajudar a entender por que Castro interpretou a decisão final da ação como uma vitória da “segurança pública”. O STF rejeitou, por exemplo, a demanda pela proibição do uso de helicópteros como plataforma de tiro ou instrumento de terror em operações policiais. Recusou também o pedido de que operações policiais em perímetros com escolas, creches, hospitais e outras unidades de saúde fossem realizadas apenas em situações excepcionais.

    A justificativa dessas recusas repousa no entendimento firmado pelo Tribunal de que as decisões quanto aos locais e os recursos empregados em operações policiais estão no plano da discricionariedade do Poder Executivo e das forças de segurança pública. Como a decisão fixa, a discricionariedade é compreendida como “inerente” à função dos agentes policiais. A despeito do STF também entender que esse reconhecimento não equivale à ausência de regulação ou controle da atividade policial, a decisão afirma também que o controle externo da atividade policial deve ser sempre posterior às ações das forças policiais.

    Organizações da sociedade civil que apoiavam as medidas de controle da atividade policial propostas na ADPF 635 entendem que o STF se posicionou de maneira conciliadora: ao mesmo tempo em que recusou tais pedidos, determinou a necessidade do uso de câmeras corporais pelos policiais e também que os dados das operações policiais — incluindo o número de mortos — seja divulgado. Os ganhos, mesmo que parciais, foram reconhecidos por tais organizações, que ressaltam a importância de manter o monitoramento constante da implementação das medidas determinadas pelo STF.

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    Em sua avaliação sobre a ADPF 635, a Redes da Maré destaca que o julgamento da ação foi acompanhado de Brasília por mais de 50 moradores da Maré, lideranças comunitárias e familiares de vítimas da violência de Estado. No Rio de Janeiro, moradores de 15 favelas cariocas reuniram-se para assistir à transmissão do julgamento diretamente da “Ocupa ADPF”, evento organizado na Maré. Para Eliana Sousa Silva, diretora e fundadora da Redes da Maré, o envolvimento dos moradores das favelas da Maré no julgamento foi “histórico”. Segundo ela, “o resultado da ADPF 635 significa o reconhecimento do direito à segurança pública para todas as pessoas, independente do seu cep de moradia”.

    A participação da sociedade civil organizada e das pessoas que vivem nos territórios alvo de operações policiais na apresentação e defesa da ADPF 635 revela uma outra maneira de pensar a segurança pública que, ao contrário de ser excludente, é coletiva e, longe de segmentar cidadãos entre pessoas “de bem” e “bandidos”, preza pela vida e pelos direitos de toda e qualquer pessoa — como sintetiza a fala de Eliana. Disputar o imaginário sobre segurança pública não parece tarefa fácil no Brasil de hoje, mas agora temos algumas pistas iniciais de como isso pode ser feito.

    Ana Silva Rosa é pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), co-autora de “A lei da bala, do boi e da Bíblia: Cultura democrática em crise na disputa por direitos” (Tinta da China Brasil, 2024), doutoranda e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
    Mariana Celano de Souza Amaral é pesquisadora do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), co-autora de “A lei da bala, do boi e da Bíblia” (Tinta da China Brasil, 2024) e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, onde também graduou-se em Direito e inicia doutorado em Antropologia na Universidade de Princeton.

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