Artigo | Vidas que não atraem cliques

    A Ponte trabalha para visibilizar casos como os do zelador Ailton Rodrigues — preso com base num reconhecimento ilegal e fora dos procedimentos —, que a imprensa hegemônica não vê como relevantes

    Ailton Rodrigues é um homem negro que foi preso injustamente com base em reconhecimento fotográfico. Nem sei quantas vezes escrevi frases parecidas com essa durante esses anos que estou na Ponte. Como em outros casos semelhantes, sua foto apareceu em uma delegacia, sendo que ele nunca havia pisado em uma. Como você pode ler na reportagem da minha colega Catarina Duarte, ele “só soube que estava sendo investigado ao ser preso”. 

    E tem mais: ele foi reconhecido pela vítima em maio de 2024, sendo que o crime aconteceu em outubro de 2023. Você conseguiria reconhecer uma pessoa que viu uma vez em uma situação de estresse sete meses antes? Eu não confio na minha memória a esse ponto. Deveria essa memória – que pode ser falha – ser prova definitiva para a acusação e prisão de alguém? Essa é uma pergunta que fazemos muito aqui na Ponte. 

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    Sem falar nos procedimentos legais de reconhecimento, que exigem, por exemplo, uma descrição prévia feita pela testemunha e a disposição de pessoas semelhantes ao suspeito para que ele seja de fato identificado – e que quase nunca são seguidos no país, especialmente quando se trata de pessoas pobres ou pretas. Afinal, infelizmente, o estado de coisas no Brasil é tão dramático que nos tornamos especialistas em contar histórias como a do Ailton.

    Prisões injustas ou sem provas são a especialidade da Ponte e, mais do que isso, são nossa prioridade. Quando recebemos uma denúncia, nossa redação – de apenas três pessoas, como você sabe – se mobiliza para apurar a história e contá-la da melhor maneira possível. O caso de Aílton foi um pouco diferente, pois, como a justiça o libertou três dias depois da prisão, conseguimos falar com ele. 

    Como contar para um filho?

    “Estou com medo”, ele confessou para Catarina durante a conversa que tiveram. “Sinto como se estivesse sendo perseguido.” Não é algo que qualquer pessoa pense que acontecerá consigo, mas quando acontece a vida muda, você acha que vai acontecer de novo. O medo se torna seu companheiro. Achamos importante ter essa dimensão da vida desse humano em nossas reportagens. Ailton não é apenas mais um caso. É uma vida a ser visibilizada em um momento que o Estado o violentou. 

    Há mais uma camada de medo: o filho de Ailton. “Como contar pra uma criança negra que o pai foi preso porque é preto?”, questiona Catarina, mulher negra assim como eu. “Como ele vai viver sabendo disso? É destruir essa infância ou criar um estigma para vida adulta. Isso me deixou profundamente triste.” É um dilema para pais, familiares e pessoas negras que pensam em ter um filho. Até onde conseguiremos protegê-los do racismo? 

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    A Ponte trabalha para visibilizar casos como esses que a imprensa hegemônica não vê como relevantes. São vidas que não atraem cliques, não vão gerar receita ou publicidade. Não fazemos isso por dinheiro ou audiência. As pessoas que fazem a Ponte acontecer acreditam que o jornalismo pode salvar vidas. E nós já mostramos diversas vezes os impactos reais do que fazemos. 

    Para contar mais histórias como a do Ailton e escancarar o racismo do sistema de justiça, precisamos de ajuda para remunerar nossa equipe e protegê-la judicialmente, manter nosso site funcionando e pensar em reportagens especiais que respondam as dúvidas das pessoas. Enfim, para seguir usando o jornalismo como meio de defesa dos direitos humanos. 

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