Negando a aplicação do princípio de insignificância para reincidentes, ministro do STF que enfrentou guerra legal contra Lula adere à guerra contra os pobres
Por favor, ministro Zanin, defina “lawfare”.
Nas aulas de teoria da pena, nos jornais, nas varas criminais, a reincidência é tratada não como uma construção jurídica, mas como um dado da natureza. Se alguém é condenado por segundos ou terceiros crimes, parece óbvio a todos que suas penas devem ser sempre maiores.
Poucas coisas em teoria da pena talvez façam menos sentido do que a reincidência. Talvez, por isso, ela seja incessantemente repetida. Toda repetição obsessiva camufla uma fratura no discurso ou a coloca em destaque, depende da perspectiva. Em todo caso, aprende-se, ao mesmo tempo, que uma pessoa não pode ser punida duas vezes pelo mesmo fato e continua-se trabalhando com a reincidência como dupla, tripla, quádrupla punição pelo mesmo fato.
Vamos de exemplo. Uma pessoa que pratica um roubo e cumpre pena integralmente e, dois ou três anos depois, envolve-se em uma briga de bar e pratica lesão corporal, quando julgada por esta última, dificilmente não terá sua pena pela lesão aumentada pelo roubo praticado muitos anos antes. A contradição é evidente demais. Se já cumpriu pena pelo roubo, como pode a nova pena ser aumentada pelo… roubo? Dupla punição pelo mesmo fato.
A moral jurídico-penal é bastante simplória. Do ponto de vista da retribuição, do castigo, da reprimenda, o segundo crime tem que acarretar mais consequências negativas que o primeiro, a resposta ao terceiro tem que intensificar a dor da resposta ao segundo, e por aí vai. Porém, do ponto de vista da prevenção, que é a outra finalidade do castigo adotada pelo Código Penal brasileiro, a reincidência é a prova inconteste de que a pena só traz mais pena, e a prevenção, portanto, é uma mentira.
Para piorar a situação, os tribunais brasileiros assentaram um entendimento estapafúrdio de que o autor ou autora de um pequeno delito não poderá ser absolvido pelo princípio da insignificância, caso seja reincidente. A insignificância, como o nome já diz, indica que a ação tem pouca ou nenhuma consequência social e, do ponto de vista da eficientismo processual, gasta-se mais recursos para processá-la do que as vantagens que uma pena pode ter.
A insignificância é o princípio que se discute no furto de galinha, de um xampu, de uma peça carne, de um par de chinelos. E não é raro que esse tipo de discussão vá parar no Supremo Tribunal Federal, muito em consequência do trabalho alienado do Ministério Público, que repete incansavelmente uma suposta obrigação de tudo recursar. Infelizmente, a mais alta corte do país segue repetindo que a reincidência impede a absolvição de alguém pela insignificância.
A lógica, mais uma vez, é extremamente simplória, mas nos anos 1990, ganhou status de teoria, com autores norte-americanos que defendiam a punição do menor e mais ínfimo distúrbio social para evitar uma suposta escalada de comportamentos criminais. A tal da “teoria” das janelas quebradas – a tese nunca comprovada de que a punição rigorosa de delitos leves evitaria a prática de delitos mais graves, do mesmo modo como manter intactas as janelas de um edifício abandonado supostamente estimularia a população a preservar o imóvel. A despeito da falta de evidências, essa moral está no centro dos debates sobre a insignificância e a reincidência.
Deixar de punir o furto de chinelo, seria, portanto, incentivá-lo. Se não fosse tão escandalosamente prejudicial às pessoas mais pobres, esse raciocínio nos conduziria a uma infinitude de memes e piadas sobre cabeças de juízes e bundas de bebês. Mas não há, aqui, motivo para um riso sequer.
Ao olhar para os ministros do Supremo Tribunal Federal e suas feições de gente bem alimentada, bem vestida e bem tratada, há que se perguntar a eles quantos chinelos eles já precisaram ter ao longo da vida, quantas refeições fazem por dia, qual a frequência com que consomem produtos de higiene, quantas vezes precisam ir ao mercado por semana, por mês…
Os crimes da ordem da insignificância punidos para que “não voltem a acontecer” é algo que só pode brotar do pensamento de gente rica. Reiteradas ações criminosas insignificantes são, senão presunção, prova de que o problema é a própria pobreza, e o sujeito voltará às mesmas ações porque é melhor arriscar ser preso do que morrer de fome, de doença, de sarna, de luto pelo filho desnutrido. Ninguém precisa de um chinelo apenas, de um iogurte apenas, de um xampu apenas. O caráter da reiteração de pequenos delitos informa que o problema é assistencial, não penal. Em outras palavras, a reincidência em crimes de pequena monta não é um problema individual de caráter, mas da pobreza, essa grande estratégia política de criminalização de parte significativa da população brasileira.
Não faz muito tempo, um advogado brasileiro chamou de lawfare “o uso estratégico do Direito para fins políticos, geopolíticos, militares e comerciais”. Hoje, Cristiano Zanin, é ministro do Supremo Tribunal Federal. Diante das suas primeiras aparições na Corte, onde foram debatidas questões como a insignificância de um crime e a reincidência, resta a curiosidade de saber se o ex-advogado vai alterar o próprio conceito de lawfare para introduzir um importante adendo: “lawfare é o uso estratégico do Direito para fins políticos, geopolíticos, militares e comerciais contra pessoas ricas. O uso estratégico do Direito para criminalizar pobres é apenas justiça”.
Vamos aguardar a próxima edição do livro do Excelentíssimo Ministro com a mesma atenção e ansiedade que aguardaremos a próxima indicação do presidente Lula ao Supremo Tribunal Federal? Ou vamos nos organizar para exigir que a chamada representatividade, exibida na posse do presidente, chegue também a mais alta Corte do país?
* Aline Passos é mãe de Benjamin, sergipana, doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Pesquisa gestão privada de unidades carcerárias.