Moradores ocupam um galpão a três quadras de onde viviam, na zona leste de São Paulo; comunidade foi tomada pelo fogo, posto por quem morava no local como forma de mostrar a ‘indignação com a Prefeitura’
Jéssica Correia da Silva segurava seu filho de três meses no colo enquanto o mais velho, de 4 anos, corria com sua motoca pelos barracos improvisados em um galpão. As lembranças que contava à Ponte remetiam às últimas 16 horas que viveu na Mooca, zona leste de São Paulo, próximo à estação Bresser-Mooca da linha-3 Vermelha do Metrô e da Radial Leste, uma das principais vias da cidade. Ela morava com os dois e o marido à beira do asfalto na Favela do Cimento, incendiada pelos próprios moradores no começo da noite de sábado (23/3). Seu cachorro conseguiu se salvar, mas o gato da família, não. Quando questionada como se imaginava daqui uma semana, a jovem de 24 anos diz que prefere nem pensar como será o futuro.
“Melhor sem pensar. Conseguimos pegar metade das nossas coisas, carrinho do bebê, mala com roupa deles e os documentos. Perdemos geladeira, fogão, berço deles e as roupas minhas e do meu marido. Tudo comprado com o suor da gente vendendo bala no farol”, relembra. “Ninguém aqui tem para onde ir. Se tirarem a gente daqui também, vamos pra debaixo de outra ponte, não tem nem o que fazer. Estou há dois anos sem trabalho registrado, ninguém dá emprego pra quem não tem endereço fixo”, explica Jéssica, que morava no Cimento há quatro anos.
Os quatro estavam cientes de que, a partir desse domingo (24/3), não teriam mais um teto para chamarem de seu. Uma decisão da Justiça liberou reintegração de posse a ser feita a partir das 6h na Favela do Cimento, batizada com este nome por conta de uma empresa que produz justamente este material para obras e ocupa praticamente um quarteirão inteiro da Rua Pires do Rio, paralela à Radial. Jéssica não imaginava que a saída seria antes do combinado e ainda aconteceria às pressas para fugir do fogo que atingiu a comunidade. Inconformados com a postura da Prefeitura de São Paulo às vésperas da reintegração de posse, moradores atearam fogo em seus barracos por conta própria. A ideia era chamar atenção de motoristas e pedestres que passavam pela altura do viaduto Bresser.
“A culpa do fogo é pela indignação contra a Prefeitura, que não cumpriu o que a juíza tinha mandado, não nos ajudou em nada. É uma resposta pra nossa revolta”, contou à reportagem um dos homens apontado como uma das lideranças da comunidade. De acordo com moradores, o fogo foi “uma resposta ao descumprimento judicial da prefeitura de São Paulo” ao que havia sido acordado em juízo para uma ação de despejo mais digna. Segundo eles e também representantes de órgãos que prestam auxílios à população da favela, a Prefeitura de São Paulo, chefiada por Bruno Covas (PSDB), não disponibilizou caminhões, agentes sociais ou do Conselho Tutelar durante toda a sexta-feira (22/3) e parte do sábado (23/3), para quem quisesse deixar o local voluntariamente.
Ao menos um homem, ainda não identificado, se feriu com o incêndio, que tomou conta de toda a comunidade durante a noite de sábado. Levado ao Hospital Salvalus, que fica uma quadra distante de onde a Favela do Cimento se localizava, ele deu entrada às 20h31 minutos e ficou internado na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). Porém, não resistiu aos ferimentos e morreu.
“O paciente com queimaduras foi prontamente assistido por nossas equipes e ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em estado grave. No início da tarde deste domingo a vítima não resistiu e faleceu em decorrência de complicações das queimaduras. O corpo foi encaminhado para o Instituto Médico Legal.
O Hospital Salvalus se solidariza e lamenta o ocorrido”, explicou o hospital em nota.
Fogo por falta de auxílio
A reintegração de posse estava marcada para ocorrer neste domingo, após a Justiça acatar o pedido de que o local mantinha alto risco para incêndios e atropelamentos, além de tráfico de drogas. Segundo relato de moradores, os primeiros representantes do estado a chegarem no sábado foram apenas a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e dois caminhões com apoio de homens que fazem o trabalho conhecido como ‘Rapa’, que remove pertences de moradores de rua e vendedores ambulantes. No entanto, entre eles não havia funcionários para orientar e encaminhar quem quisesse se dirigir voluntariamente até um CTA (Centro Temporário de Acolhida), popularmente chamados de albergues.
“Entre os acordos no processo, o município deveria providenciar caminhões para encaminhamento de pertences até galpões municipais, além de funcionários técnicos para atendimento. As desocupações voluntárias deveriam ter começado na sexta-feira (22/3). Até por volta das 14h30 do sábado (23/3), ninguém ainda havia sido levado para os CTAs. Apenas um casal foi a pé para o albergue do Canindé. Por volta das 16h, salvo engano, após quatro ligações do padre Julio Lancellotti ao secretário [de Assistência e Desenvolvimento Social] José Castro, a chefe de gabinete dele chegou e encaminhou duas famílias e um solteiro ao Canindé”, afirmou à Ponte a advogada voluntária da Pastoral do Povo da Rua, Juliana Hashimoto.
Em seu despacho, proferido na semana passada, a juíza Maria Gabriella Pavlópoulos Spaolonzi, da 13ª Vara da Fazenda Pública Central, determinou que a gestão Covas prestasse apoio operacional aos moradores. Antes do incêndio havia cerca de 200 barracos de madeira cobertos por telhas de amianto, que abrigavam aproximadamente 500 pessoas. Desse total, 150 crianças, 25 idosos, seis pessoas com deficiência física e seis grávidas.
A reportagem da Ponte esteve durante duas horas na sexta-feira na parte da tarde e pode comprovar que não havia nenhuma equipe prestando auxílio aos moradores. Já no sábado, os moradores, por diversas vezes, procuraram a reportagem para informar que não estavam recebendo o auxílio acordado judicialmente, conforme vídeos encaminhados
Uma das moradoras que pretendia sair do local com apoio da prefeitura, contou que já havia empacotado todos os seus pertences e que aguardou durante todo o sábado que equipes de remoção os levasse até o galpão municipal. “Eu achei um desaforo. As vans chegaram só com motoristas, sem orientadores. Os assistentes sociais chegaram só após às 16h, após o pessoal insistir muito”, contou, Tatiana, já dentro de uma nova ocupação na rua do Hipódromo, a cerca de 600 metros das cinzas que sobraram da Favela do Cimento.
Uma das lideranças da favela e que havia conversado com a Ponte na sexta-feira, Silvia Guedes, estava com seus três filhos deitados num colchão na esquina da Radial Leste com a João Tobias, do lado posterior onde por seis anos foi a residência da mãe solteira. “Perdi tudo daquela foto que você tirou ontem. Todos os brinquedos das crianças, TV, móveis… Foi tudo muito rápido, não deu para tirar muita coisa”, disse, aparentemente, sem entender o que estava acontecendo.
Outra pessoa que contou sua história à Ponte estava sentado nas escadarias do metrô Bresser-Mooca rodeado de pessoas que lhe prestavam auxílio. Wesley Rais disse ter tomado um tiro de borracha da Polícia Militar enquanto resgatava uma criança e tentava filmar a ação da PM para impedir o bloqueio da Radial Leste – no momento do incêndio, a via estava tomada de veículos nos dois sentidos. Ele afirmou que ia passar a vagar pela cidade, já que a ocupação onde parte das pessoas que moravam no Cimento foram acolhidas não aceita a presença de casais homossexuais em suas dependências. Com o ferimento coberto por ataduras e esparadrapo, Rais disse que “não vai desistir e que vai buscar um canto para viver com o companheiro”.
Disputa política
Presente em boa parte do incêndio e prestando auxílio tanto aos moradores do Cimento como na porta da ocupação do Hipódromo, o vereador Eduardo Suplicy (PT) informou que alertou pessoalmente e também por carta o prefeito Bruno Covas sobre o que poderia ocorrer. “Pedi que ele viesse ao local antes da reintegração de posse conversar com os moradores. Era importante. Era evitável [o que ocorreu]. Era encaminhar as famílias a lugares em que elas poderiam viver com dignidade”, ponderou.
Com viaturas de diversos batalhões distintos da PM passando vagarosamente em frente à ocupação da rua do Hipódromo alguns momentos de tensão foram notados, como quando a liderança do local pediu para que todos entrassem no galpão e não permanecessem mais na rua, para não chamar a atenção de vizinhos e policiais. “A gente ajuda as pessoas que não tem onde morar, principalmente mulheres e crianças, sem cobrar nada. São bem-vindos”, alegou uma das lideranças.
Se as equipes que deveriam estar na sexta-feira e no sábado não deram as caras para auxiliar os moradores, após o incêndio todas elas estavam lá. Por volta das 23h30, uma dezena de carros da prefeitura, inclusive da assistência social e da Defesa Civil se misturaram em meio aos carros do Bombeiro e da Polícia Militar. O subprefeito da Mooca, Guilherme Brito, que os moradores também criticaram sua ausência nos dois dias anteriores ao despejo esteve no local. Em conversa com a Ponte, ele negou que a subprefeitura tenha descumprido o acordo judicial.
Enquanto o fogo consumia os barracos, o ex-subprefeito da Mooca, o tucano Eduardo Odloak, publicou em seu Facebook um vídeo do incêndio. Junto dele, culpou o PT pela situação. “Essa é a herança do PT e o preço de sua total omissão quando esteve à frente da cidade de São Paulo”. No entanto, moradores e o vereador Eduardo Suplicy contaram que a comunidade, que tinha cerca de 45 barracos em 2015, passou para 200 nos últimos dois anos, quando a gestão João Doria (PSDB) chegou ao poder.
Tatiana ainda estava no galpão no início da tarde deste domingo. Junto dos dois filhos, a auxiliar de serviços gerais explicou que conseguiu tirar todos os pertences antes do fogo atingi-los. “Ficou só a geladeira”, conta. Pensar no futuro é difícil, assim como é Jéssica, seu marido, os dois filhos e os quase 500 moradores da favela que virou fumaça. “É deixar rolar. Vamos ficar no galpão enquanto isso. Depois a gente vê”, diz. Um homem reclamava de que homens da Prefeitura levaram o seu cachorro para um canil. “Não sei quando vou ver o Max de novo”, conta, denunciando que a PM o agrediu “jogando no chão, me batendo”. “Vou ficar aqui todo dia, dormirei aqui na calçada. Era minha casa, não tenho para onde ir”, afirma.
A reportagem questionou a Prefeitura de São Paulo sobre as alegações de que ela não prestou o auxílio imposto pela Justiça para a remoção das pessoas da Favela do Cimento. Em nota publicada em seu site, o município diz que cumpriu a reintegração, mas “infelizmente, no início da noite deste sábado (23) ocorreu um incêndio generalizado nas estruturas de alvenaria. A Polícia Civil vai investigar o caso. No momento do incêndio, a maioria das famílias já havia deixado voluntariamente o local, resultado da ação intermediada pela Prefeitura de São Paulo e a 13ª Vara da Fazenda Pública”, diz.
“Logo após a saída das equipes da Assistência Social iniciou-se o incêndio. Em seguida as equipes da Prefeitura retornaram, mas haviam poucas pessoas no local que foram encaminhadas para os equipamentos de acolhimento”, afirmou o secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, José Castro, que aponta ter oferecido suporte às famílias do Cimento – segundo o documento, 42 delas foram para centros de acolhida e outras três tiveram passagens rodoviárias compradas para outros estados.
“Os assistentes sociais da Prefeitura vão continuar conversando diariamente com as pessoas que não aceitaram ir para nossos centros de acolhimento. Temos mais de 100 locais de acolhimento com 10 diferentes tipos de perfis, como para famílias com crianças, mães com filhos, homens solteiros ou famílias com pets. Os encaminhamentos são feitos dentro do perfil de cada núcleo familiar”, garante Castro.
* A reportagem foi atualizada às 20h30 para incluir a informação de que o homem ferido não sobreviveu aos ferimentos.