As sementes de Marielle germinaram

Ponte conversou com parlamentares negras Brasil afora sobre o legado da vereadora carioca, morta há 4 anos, em 14 de março de 2018, e sua importância para o ano eleitoral de 2022

Da esq. para a dir., de cima para baixo: Dani Portela, Thais Ferreira, Robeyoncé Lima, Erika Hilton e Luana Alves | Fotos: Reprodução / Twitter

Passados exatos quatro anos da execução da vereadora Marielle e do motorista Anderson Gomes, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro ainda não conseguiram chegar aos mandantes do crime que chocou o país e mudou o cenário político brasileiro. Se até 2018 eram raríssimos os casos de mulheres negras com protagonismo nas casas legislativas do país, a morte da parlamentar fez surgir uma nova geração de políticas que seguem o seu legado.

Mesmo assim, o número de mulheres negras dentro das câmaras municipais, assembleias legislativas e do parlamento federal não corresponde ao tamanho dessa população no país. Apesar de serem 27,8% da população, de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, elas são apenas 2% dentro do Congresso Nacional e menos de 1% na Câmara dos Deputados.

Um estudo feito pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com a Coalizão Negra por Direitos, mostra que mais da metade dos municípios brasileiros (57,2%) não elegeu sequer uma vereadora negra em suas câmaras municipais nas eleições de 2020.

Apesar de tamanha subrepresentatividade, as representantes negras eleitas, espalhadas pelo Brasil, estão ganhando notoriedade por suas atuações que vão além de pautas identitárias de gênero e raça. A defesa dos direitos humanos, saúde e moradia são alguns dos outros temas que estão nos projetos de lei propostos por essas mulheres que tomaram conta de cadeiras dentro dos parlamentos.

A Ponte conversou com cinco mulheres de três estados diferentes que ocupam assentos em casas legislativas do país. Além da cor da pele e do gênero, elas têm em comum a luta por igualdade e maior presença feminina dentro da política, ameaças explícitas ou veladas por parte de homens brancos com quem dividem o parlamento e o reconhecimento de que hoje são referência para o surgimento de novos quadros políticos entre meninas negras.

Mandatos ativos

Dani Portela (PSOL) foi a vereadora mais votada do Recife nas últimas eleições municipais, com 14.114 votos. Filha adotiva de presos políticos da ditadura militar, a pernambucana é advogada e professora. Foi através do seu mandato que foi instituída a Comissão Permanente de Igualdade Racial do Recife . É dela também a proposta de transformar o 14 de março em Dia Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política contra Mulheres Negras, LGBTQIA+ e Periféricas.

“Nosso mandato é feminista e antirracista. E estou nessa posição hoje para representar as mulheres negras e periféricas da cidade e tenho muito orgulho disso. Durante a campanha, várias pessoas vinham me falar que eu parecia muito com uma amiga, uma parente delas ou até com elas mesmas. Isso me dá muita alegria, pois elas sabem que tem alguém como elas aqui as representando”, relata a vereadora.

Na mesma casa legislativa onde Marielle Franco esteve até a sua morte, Thaís Ferreira (PSOL) leva à Câmara Municipal do Rio de Janeiro a trajetória de uma militante da zona norte, que tem como algumas das pautas do seu “mãedato”, como ela mesmo chama, o direito à cidade, educação e combate ao racismo. A vereadora está no comando da Frente Parlamentar em Defesa da Pequena África, que luta para que a memória dos negros não seja apagada na revitalização da área portuária da cidade.

“O projeto Reviver Centro é muito importante para a cidade e a gente conseguiu colocar uma emenda de previsão do distrito de memória africana, para a valorização e memória. Se não fosse nós, quem seria o político que teria essa preocupação?”, questiona Thais, que também tem projetos voltados para mães negras que vivem em situação de vulnerabilidade no Rio de Janeiro.

Ao lado de mais quatro co-deputadas, Robeyoncé Lima (PSOL) faz parte do mandato coletivo Juntas que atualmente preside a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi através de grupo que foi aprovado o 14 de março, data da morte de Marielle, como o Dia Estadual das Defensoras dos Direitos Humanos. 

“A gente tem hoje um cenário em que a política de direitos humanos em Pernambuco é defasada. Não há proteção suficiente para quem trabalha nessa causa. Hoje temos o caso de uma mulher trans que está tendo que sair do país após sofrer ameaças por denunciar casos de exploração sexual de adolescentes”, comenta a deputada, citando o caso de Fernanda Falcão.

Também à frente de uma comissão de direitos humanos, mas na Câmara Municipal de São Paulo, a vereadora Érika Hilton (PSOL) é responsável por implantar a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito de violência contra pessoas trans e travestis. Após seu primeiro ano de mandato, ela avalia que conseguiu implementar vários de seus planos que tinha ainda durante a campanha eleitoral.

“Conseguimos aprovar por unanimidade o primeiro fundo municipal de combate à fome. Ainda foi possível andar bastante em decisões de bastidores na qual a gente vai atuando em diferentes áreas, em relação às ordens de despejos durante a pandemia, questões sobre a população de rua da cidade. Eu acho que mesmo com todos os desafios impostos, fizemos um bom primeiro ano de mandato”, comenta.

Companheira de Hilton na Câmara de São Paulo, Luana Alves (PSOL) também está no seu primeiro mandato e trabalha dentro do parlamento paulistano para retirar de espaços públicos homenagens a torturadores e escravocratas que existem na cidade através do projeto SP é Solo Preto e Indígena.   

“É um projeto sobre memória e história na cidade. A gente pretende reconfigurar como se homenageia na cidade de São Paulo. Muitos lugares do mundo tem uma legislação específica para isso e aqui não. O que temos são estátuas gigantes de bandeirantes que são colocados como fundadores da cidade, quando na verdade não são”, define a vereadora.

Ocupação de espaço

As parlamentares têm consciência de toda a luta e esforço de outras mulheres negras que vieram antes delas e batalharam para que elas hoje pudessem subir numa tribuna e poder discursar e serem ouvidas. Também sabem o incômodo que causam por estarem em locais que até pouco tempo eram impensáveis para pessoas como elas.

“Para eu ocupar meu lugar na Câmara, um homem branco teve que sair. Isso irrita bastante quem tinha e hegemonia no poder. É difícil para eles aceitarem isso, mas não tem volta. Chegamos para ocupar um lugar que é nosso”, reivindica a vereadora carioca Thais Ferreira.

“Dentre 39 vereadores, eu sou a única mulher negra na Câmara de Vereadores do Recife. Às vezes bate uma solidão, não vou mentir. Muitos dos meus pares vêm de famílias tradicionais dentro da política pernambucana ou são missionários que legislam em nome de alguma igreja. Mas esse lugar também é meu. Por ter sido a mais votada, coube a mim fazer a primeira fala da nova legislatura. Eu digo que aquele não foi um discurso de posse, mas de reintegração de posse, porque a Câmara é nossa, é do povo”.

“Fomos referendadas 39.170 pessoas que votaram na gente, então não há quem possa questionar nosso direito de exercer o nosso mandato. Precisamos mais ocupar esses espaços de poder. Tivemos um crescimento em todo Brasil desses quadros políticos, mas ainda é muito pouco em relação a representatividade”, explica Robeyoncé Lima.

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“Estamos aqui graças a evolução da luta antirracista pelo mundo. Isso significa uma disputa de poder e sua influência nesse tipo de movimentação na sociedade. Nesses casos estamos conseguindo avançar. Nosso país foi formado em capitalismo fomentado em cima do racismo. Claro que tem uma influência grande da morte da Marielle esse aumento de mulheres negras nos parlamentos. A população nos colocar nesses lugares é uma resposta a essa violência que foi uma tentativa de nos calar”, comenta Luana Alves

“Sou uma mulher travesti que se impõe, que não abaixa a cabeça e que não tem medo. Faço política na garra e na marra. Por isso muitos pensam que eu só faço essa política segmentada. Se enganam, também estou lá para discutir orçamento, saúde e transporte. Estamos ganhando nosso espaço e isso não tem mais volta. Ainda é difícil, mas terão que nos aceitar e acima de tudo nos respeitar pelo que somos”, finaliza Hilton.

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