Após 15 anos, guardas que mataram líder comunitário Leandro Machado vão a júri nesta terça (28/8); família e ativista criticam atitude do Ministério Público
Às vésperas do julgamento dos guardas civis metropolitanos Orlando Sérgio dos Santos, 62 anos, e José Donizeti de Freitas, 54, acusados de matar o líder comunitário Leandro Machado, em 3 de novembro de 2003, a família afirma não ter mais qualquer esperança de justiça para a memória do pai, irmão e filho que perderam. O destino dos GCMs será decidido no Tribunal do Júri na próxima terça-feira (28/8).
“Posso te confessar uma coisa? Perdi as esperanças”, afirma o motorista de ônibus Oseias Machado, irmão de Leandro, à Ponte. Ele completou 50 anos no último dia 11. Tinha 35 anos quando o irmão saiu para buscar a mamadeira da filha, que havia esquecido na casa de um amigo, e acabou morto a tiros dentro de uma base da GCM (Guarda Civil Metropolitana), no Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo.
“Acho que já sabemos qual vai ser o final do julgamento. Não acredito na vitória. Quero que isso acabe logo, só isso. Cansei. Deus sabe de tudo e dirige tudo. Resolvi entregar nas mãos dele”, afirma o irmão de Leandro, que é pastor evangélico.
O desânimo veio para a família após conversar com o promotor Thomás Mohyico Yabiku, do Ministério Público Estadual, responsável pela acusação, na data originalmente marcada para o júri, em 13 de março. Segundo os familiares, Thomás teria dito que as provas contra os guardas eram fracas e levantado a possibilidade de pedir a absolvição dos réus.
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O promotor, então, pediu o adiamento do júri para 28 de agosto e, segundo a família da vítima, disse que a acusação contra os guardas dependia da apresentação de um documento desaparecido há 15 anos: um ofício que Leandro iria entregar à base comunitária da GCM, pedindo o apoio dos guardas para um evento de esporte e música que ele pretendia realizar dali a duas semanas, em 16 de novembro, numa quadra esportiva do bairro. “Esse ofício estava no bolso do Leandro, junto com a mamadeira da filha, mas sumiu no dia em que ele foi morto. Não apareceu e não vai voltar a aparecer”, comenta Oseias.
O advogado Geraldo Magela Tardelli, diretor da Comissão Justiça e Paz da arquidiocese de São Paulo, que acompanha o caso, critica a atitude do MP. “A prova que o promotor pediu é absolutamente desnecessária. Ele está usando isso como pretexto para pedir absolvição dos guardas”, afirma. “Nós temos hoje um Ministério Público e uma justiça que só se importam com quem é de classe média para cima.”
A Ponte procurou o promotor Thomás por duas oportunidades: pessoalmente, no Fórum, e por meio da assessoria de imprensa do MP. Em ambas, ele se recusou a dar entrevista.
“Sem qualquer chance de defesa”
A atitude de Thomás descrita pela família marca uma mudança sobre o entendimento do crime em relação ao promotor anterior do caso, Virgílio Antônio Ferraz do Amaral. Em 2008, Virgílio desconsiderou o resultado do inquérito policial e denunciou os guardas Orlando e José Donizeti, que atiraram em Leandro, por homicídio doloso (com intenção de matar). Uma colega da dupla, Andréa Alves dos Santos, responde por falso testemunho, acusada de mentir para acobertar o assassinato de Leandro.
Ao denunciar os guardas, em 2008, Virgílio não fez menção ao ofício e afirmou que as circunstâncias em que Leandro foi morto, com um tiro no lado esquerdo do peito e outro no alto da cabeça, por trás, ambos disparados de cima para baixo, bastavam para indicar uma execução. “Confundindo-a como bandido, os indiciados atiraram contra a mesma, certeiramente, de trás para frente, na região parietal, não dando ao ofendido, desprevenido e inerme, qualquer chance de defesa”, afirmou na denúncia.
Os guardas alegam que mataram Leandro numa troca de tiros e, no 101º DP (Jardim das Imbuias), apresentaram a arma que ele teria usado: uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade. “Pegaram uma pessoa sem qualquer passagem pela polícia e criaram uma versão de tentativa de invasão da base da GCM com uma garrucha. É uma coisa tão ridícula”, afirma Geraldo Majela. “A questão que se coloca é o quadro probatório e a versão dos guardas, que é absolutamente inverossímil, não um ofício que ele levava no bolso”, diz.
O crime
Na noite em que Leandro foi morto, em 3 de novembro de 2003, São Paulo vivia a semana da primeira série de ataques lançados fora das prisões pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) fora dos presídios, que terminaria com 44 ataques realizados contra delegacias e bases da polícia. Eram dias e noites de medo para policiais, guardas e agentes penitenciários. A família acredita que os guardas estivessem em pânico por conta dos ataques e por isso atiraram quando Leandro passou diante da base da Guarda Civil Municipal, na rua São Caetano do Sul.
Para o rapper Eduardo Righetti, o Mano Duda, que fez um rap sobre a morte do amigo, Tributo LDK , só o racismo explica terem atirado em Leandro. “O cara, por ser negro e humilde, é a imagem do inimigo para eles”, diz.
Uma declaração do guarda Orlando no inquérito da Polícia Civil parece corroborar a afirmação do rapper, quando o guarda explica por que Leandro lhe pareceu um suspeito. “O referido elemento era de cor negra e estava com uma touca que chegava até a altura das sobrancelhas, mostrando-se suspeito, vez que ficava olhando o tempo todo para os lados”, disse.
Com 22 anos, Leandro o era o caçula de sete irmãos e trabalhava como vendedor de cocos em Santo Amaro. Tinha dificuldade em conseguir empregos formais por conta da miopia avançada, que atrapalhava sua leitura. Mas isso não o impedia de atuar como voluntário em entidades como o Grêmio Regional Império do Grajaú ou a Sociedade de Apoio aos Moradores da Capela do Socorro e de organizar diversos eventos no bairro, misturando esportes e hip hop. As festas eram chamadas de LDK, porque Leandro sonhava em melhorar a vida das pessoas que viviam “do lado de cá”, na quebrada onde moravam.
Por volta das 19h, Leandro passou na base da GCM, localizada na rua São Caetano do Sul, e pediu para entregar um ofício. O texto pedia o apoio dos guardas para um evento que pretendia realizar, no qual aproveitaria para comemorar o aniversário da filha, Shelzeer, prestes a completar três anos.
Leandro saiu sem óculos em sua última noite – estavam no conserto, em uma ótica. Quando falou com os guardas na base da GCM, naquele começo de noite, disseram a ele que o expediente havia acabado e que deveria entregar o ofício no dia seguinte. O líder comunitário saiu de lá e foi visitar um amigo. Mais tarde, voltando para casa, passou de novo em frente à base dos GCMs, por volta das 22h30.
Ninguém sabe o que aconteceu ali naquela hora, a não ser pela versão dos guardas. Segundo eles, o elemento negro, suspeito e de touca teria dito que precisava entregar um ofício e comentado “a noite está sinistra”. Em seguida, Leandro teria pulado o portão da base, com dois metros de altura, ao mesmo tempo em que dois desconhecidos na rua passavam atirando em direção aos guardas, sem atingir ninguém.
Após pular o portão, Leandro teria colocado a mão na cintura, como se fosse sacar uma arma. Orlando e Donizete, armados com revólveres 38, atiraram juntos, “num gesto natural de defesa”, alvejando a vítima “em locais diversos”. Leandro foi atingido do lado esquerdo do peito e na parte de trás da cabeça. Socorrido, o líder comunitário morreu no PS Maria Antonieta. Com ele, os guardas afirmaram ter encontrado uma garrucha.
A investigação da Polícia Civil corroborou a versão dos guardas. O laudo assinado pelo perito Lucivaldo Napoli concluiu que, sim, era possível que Leandro estivesse de frente para os GCMs e mesmo assim pudesse ser baleado por trás, graças à “flexibilidade e mobilidade do corpo humano”.
O promotor Virgílio não teve a mesma visão flexível e apresentou denúncia contra os guardas, que foram aceitas pela Justiça. No texto da denúncia, afirmava que a versão de confronto apresentada pelos réus “foi cabalmente rechaçada na apuração administrativa (…), onde se constatou que a vítima era pessoa nascida no bairro, conhecida por seus trabalhos junto à comunidade, não tendo nada que maculasse sua conduta, não tendo motivos para invadir a Inspetoria, mormente com armamento tão obsoleto”. O promotor afirmou, ainda, que a alegação de troca de tiros “chocava-se frontalmente com a prova pericial, já que um dos disparos atingiu a nuca” da vítima.
Os três réus continuam a trabalhar na corporação, afastados das ruas, atuando em funções administrativas. A assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo afirma que a Corregedoria da GCM espera a conclusão do processo criminal para decidir o que fazer com eles.
Justiça que tarda e falha
Quando a Ponte visitou a casa da família de Leandro Machado pela primeira vez, em dezembro de 2014, no Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo, os familiares estavam felizes como há muito tempo não se sentiam e não voltariam a se sentir depois. Na justiça civil, uma decisão em segunda instância do TJ-SP havia condenado a prefeitura de São Paulo a pagar R$ 200 mil para a família.
“Foi o melhor presente de Natal que eu poderia ter recebido: a justiça começou a limpar o nome do meu irmão”, saudou na época Oséias, sorrindo.
Hoje, os sorrisos sumiram e deram lugar ao desalento. A indenização da Justiça civil nunca saiu, perdida em um recurso que advogados da família fizeram pedindo a revisão dos juros e correção monetária dos valores, que passou a depender de posicionamentos do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça) a respeito desses temas.
Em 2014, o pai de Leandro, o vigilante aposentado José Carlos Machado, hoje com 74 anos, já manifestava os primeiros sinais do Mal de Alzheimer que consumia sua cabeça, permanecendo alheio em diversos momentos da entrevista, menos quando falou de Leandro e de como queria que a justiça reconhecesse que ele não era um bandido. “Quem errou tem que pagar. E não é pelo dinheiro. É pela honra”, disse, na época.
Hoje, José não diz mais nada. Deitado na cama, não consegue nem ir ao banheiro sozinho. “Tudo q eu queria é ver meu pai sorrindo, mas ele está virando um bebê”, lamenta Oseias. “Por anos meu pai viveu com esperança de ver a justiça sendo feita. Hoje não vai mudar nada para ele. A dor do tempo foi cruel com meu pai. E com minha mãe, com a família.”
Outro lado: Guardas agiram com moderação, afirma advogado
Em entrevista à Ponte, realizada logo após o adiamento da primeira data do julgamento, em março, o advogado Cláudio Márcio de Oliveira, que defende os guardas Orlando Sergio dos Santos e Andrea Alves dos Santos, afirma que as provas apontadas no processo não são capazes de garantir nem que Leandro foi baleado pelos guardas e que, ainda que os tiros tenham partido dos réus, o fato de Leandro ter sido morto “por dois disparos, só” indica que agiram com “moderação de meios”.
A assessoria de imprensa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, responsável pela defesa do guarda José Donizeti de Freitas, disse que “não irá antecipar sua posição” e que “os argumentos e os esclarecimentos referentes a esse caso serão apresentados no Plenário do Tribunal do Júri”.
Ponte – Qual é a linha de defesa com relação a essa acusação contra os guardas civis metropolitanos?
Cláudio Márcio de Oliveira – Não há uma linha de defesa. A defesa é baseada nos fatos desde o primeiro instante. Os procedimentos administrativos da Guarda Municipal e o inquérito policial, sem nenhuma divergência, apontam para o fato de que, naquela noite, a vítima inicialmente teria mexido no portão dizendo que queria entregar um ofício. Essa pessoa foi advertida de que deveria vir no dia seguinte. Essa pessoa teria dito algo do tipo “a noite está sinistra” e pulou para o lado de dentro da base. Os guardas advertiram para não pular, mesmo assim essa pessoa pulou e os guardas efetuaram os disparos. Nem se sabe ao certo se os tiros que atingiram a vítima partiram da arma dos guardas, porque não foi possível apurar.
Ponte – Ele foi alvejado dentro da base da Guarda e os guardas disseram que atiraram nele. De quem mais ele teria recebido os tiros, se não fosse dos guardas?
Cláudio – Estou dizendo que não foi possível fazer o confronto [balístico]. Não dá para dizer se os dois disparos que atingiram a vítima partiram da arma do guarda A ou do guarda B ou se, ainda, cada um dos disparos partiu de cada guarda. Não bastasse, quando o rapaz fala “a noite está sinistra”, uma guarda, Andrea, sobe à parte superior da base e consegue observar, do lado de fora, dois ocupantes numa moto, o da garupa com uma arma grande, e outros dois que circundavam a base. Nesse momento, ela ouve disparos de arma de fogo. É quando ocorre a invasão por esse rapaz, que pode ser que talvez tivesse pulado o muro em razão dos tiros que aconteciam do lado de fora.
Ponte – Mas não teria como tiros do lado de fora o atingirem dentro da base.
Cláudio – Eu não sei se foi dentro. É você que está me dizendo.
Ponte – Ele foi socorrido dentro da base. Não poderia ter sido baleado e depois pulado o muro.
Cláudio – Claro que não. Mas, quando você sobe para pular um muro e toma um tiro, vai tomar na testa ou na nuca? Na nuca. Então, o tiro [na nuca] pode ter partido do lado de fora. Pode ou não pode?
Ponte – No momento em que estiver em cima do muro, imagino que sim.
Cláudio – Então pode. Quando pula um muro que é alto, a pessoa escala e depois, para descer, ela vira e está com o peito projetado do lado de fora. Se eventualmente um disparo partiu de fora, pode ter atingido o peito dessa pessoa. “Ah, Cláudio, mas você está me dizendo que a pessoa pode ter tomado um tiro na nunca enquanto escalava, aí virado e tomado outro?” Estou dizendo o seguinte: a perícia não deu essa resposta.
Ponte – Essa narrativa não bate com o fato de que os guardas admitiram que atiraram nele dentro da base.
Cláudio – Se o camarado está pulando o portão, sob uma ordem de não invadir, se ele pula já baleado, ninguém sabe se está baleado ou não. O guarda está ouvindo tiro. Não consegue ver a trajetória da bala e ver que o projétil atingiu o corpo da vítima. O máximo que o guarda consegue ver é a vítima pulando o portão. Eu não estou dizendo que [os tiros] partiram de fora. Aliás, eu te perguntei. Você é que me disse que foi possível, em razão da posição da vítima. Agora, veja: a perícia não deu essa resposta para a gente. O que nós sabemos é que os guardas dizem que atiraram na direção dele quando ele pulou. Não basta atirar na direção de alguém, tem que acertar esse alguém. No portão foi feita perícia e tem marcas de disparo de arma de fogo. É possível que os disparos que acertaram o rapaz partiram das armas dos guardas? É possível. É possível que só um dos guardas tenha tido êxito em acertar a vítima? É possível. E é possível que o disparo tenha partido de fora da base, enquanto escalava o muro? É possível também. Os disparos, se se admitir que foram dos guardas, há que se admitir que houve uso de moderação dos meios, porque a vítima foi atingida por dois disparos, só. Tão logo cessou o perigo, os guardas pararam de efetuar disparos.
Ponte – E havia perigo?
Cláudio – Como não? Você é guarda, o camarada invade a base armado.
Ponte – É crível que esse rapaz, que é descrito por toda a vizinhança como um líder comunitário, sem passagens pela polícia, que desenvolvia atividades esportivas no bairro, numa noite invade sozinho uma base da GCM?
Cláudio – Eu não sei se era sozinho. Tinha ocupantes numa moto com armas grandes. Pode ser exatamente para forçar a abertura do portão para os que estavam lá fora. Tanto isso é verdade que, dez dias depois, a base foi invadida. Será que foi [invadida] por amigos dessa vítima que não tem antecedentes e era líder da comunidade? Isso é o que está no processo. Eu queria entender qual é a versão da acusação. Qual é a versão? Os caras mataram a vítima lá fora e jogaram para o lado de dentro? Convidaram a vítima para tomar um café lá dentro e aí deram um tiro na cabeça da vítima? “Ah, mas a vítima não tinha passagem pela polícia.” Os guardas também não têm, para você pensar que pudessem executar um pai de família simplesmente. De um lado e outro, estamos falando de homens bons. E por que acontece a morte de homens bons, às vezes? Por equívoco, por erro. Por alguma razão, o camarada se jogou apto a pular a base e por outro lado os guardas se sentem autorizados a efetuar disparos porque ordenaram para que não pulasse. Vamos admitir que foram os guardas que mataram esse rapaz. Qual foi a dinâmica do crime? Se não quer acreditar que o camarada pulou o portão, vamos acreditar no quê, então? Que os policiais convidaram o camarada para tomar um café ou um chá?
Ponte – Eles poderiam ter agarrado o rapaz na rua e trazido para dentro da base.
Cláudio – Poderia, mas o cara não grita? Tem pessoas do lado de fora e ninguém vê nada? Nós estaríamos falando, então, de guardas dados a práticas de crime de homicídio, que não têm o menor zelo pela vida alheia. Ao passo que, nesse processo, os guardas têm de 25 a 28 anos de Guarda e não têm um procedimento criminal investigatório. Não parece razoável alguém dessa qualidade de guardas pegar alguém do lado de fora, arrastar e matar dentro da base. E na base não estavam só os supostos matadores de pessoas do bem. Estavam outras duas guardas e uma civil. Para você arrastar alguém do lado de fora e matar dentro de uma base, tem que contar com a ajuda de muita gente. É diferente de uma guarnição policial que está na rua, da Força Tática ou da Rota, que eles fecham entre eles e fazem o quiserem.
Ponte – E um homem iria invadir uma base armado com uma garrucha?
Cláudio – Meu camarada, os caras invadem banco com simulacro de arma de fogo. Se faz isso com arma de brinquedo, quiçá com uma garrucha.