Pelo menos 28 dos 70 mortos em conflitos de terra no ano passado foram vítimas de chacinas, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra
A violência no campo atingiu o número de 70 assassinatos em 2017, dos quais 40% foram em chacinas. O índice é o maior desde 2003, quando foram computadas 73 ocorrências, segundo levantamento divulgado pela CPT (Comissão Patoral da Terra) na última segunda-feira (16/4). A pesquisa leva em consideração as mortes decorrentes de conflitos por disputa de terra.
O estado que lidera o ranking é o Pará com 21 homicídios, dos quais 10 aconteceram no município de Pau D’Arco, em maio do ano passado, em uma operação de policiais civis e militares do 7º BPM de Redenção, na fazenda Santa Lúcia. Dezessete agentes foram indiciados e as audiências de instrução estão acontecendo desde o início do mês. Os estados de Rondônia e Bahia seguem na lista, com respectivamente 17 e 10 assassinatos.
Para um dos coordenadores nacionais da CPT, Paulo César Moreira, esse crescimento está intimamente ligado às medidas do governo federal nos últimos três anos, em especial no ano passado, com a aprovação de projetos considerados desfavoráveis à causa ambiental e aos trabalhadores do campo. “É um aumento grave e preocupante que revela um projeto de mercantilização da terra em prol do agronegócio e em detrimento da preservação dos territórios e da demarcação para povos indígenas e quilombolas”, declarou.
De acordo com levantamento realizado pela ONG Repórter Brasil, de 14 medidas provisórias e projetos de lei de impacto socioambiental votados na Câmara dos Deputados desde 2015, 11 são desfavoráveis. O ano de 2017 é apontado como recorde dessas aprovações. Além disso, a organização avaliou que, dos 513 deputados da atual legislatura, 323 atua na contramão da agenda socioambiental. Os dados levaram em conta consulta à entidades voltadas a essa temática, como a própria Comissão Pastoral da Terra.
“A luta do campo não pode ser separada com a da cidade, porque entram nesse pacote de medidas a aprovação do Teto dos Gastos, a reforma trabalhista, além do enfraquecimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, da ouvidoria responsável por trazer a tona esse conflitos até a forma como os alimentos produzidos pelo agronegócio chegam nas casas e a preocupação com a preservação do meio ambiente”, pontua Paulo César.
Por outro lado, a pesquisa da CPT também destaca o baixo índice de esclarecimento das ocorrências. De 1985 a 2017, a organização computou 1.438 casos de conflitos no campo em que ocorreram assassinatos, com 1.904 vítimas. Desse total, apenas 8% foram julgados, com 31 mandantes dos assassinatos e 94 executores foram condenados. Ao longo de 32 anos, foram 46 massacres, ranking que o Pará também lidera, com 26 ocorrências.
O coordenador da CPT aponta que a ausência de fiscalização sobre a atuação de grileiros e posseiros, principalmente nas áreas mais longínquas, “onde o poder dos fazendeiros é grande” contribui para que os casos não sejam investigados.
Para ele, esse cenário potencializa a perseguição de lideranças comunitárias, como a que ocorreu no último domingo, com o assassinato de um líder quilombola no Pará que estava sob programa de proteção, e a prisão do padre José Amaro, sucessor da missionária Dorothy Stang, morta em 2005, em Anapu. “A aristocracia agrária está ligada com instâncias do poder Executivo e Judiciário, além da própria ação de milícias no campo”, denuncia. “Esse trabalho de defesa das famílias do campo mostra o quão é importante a atuação de denúncia, mas ao mesmo tempo estamos a mercê dessa violência que é estrutural”, complementa.
Já o advogado Miguel Gualberto, que integra a Comissão de Direito Agrário da OAB-PA, afirma que a entidade está cobrando celeridade nas investigações e que é preciso fortalecer e aumentar o número de varas especializadas na questão agrária, cujos juízes, promotores e defensores possam atuar de maneira mais específica para resolver esses conflitos. “No Pará só temos cinco varas para 144 municípios, que geralmente estão longe das áreas de disputa, e que precisam dar conta de todas as localidades”, pondera.
O advogado também aponta que as medidas do governo federal deveriam ser melhor debatidas nas regiões impactadas. “Como vivemos num estado [Pará] com dimensões continentais, é muito grave o governo impor projetos sem conhecer a localidade. As propostas poderiam ser levadas nos âmbitos municipal e estadual para serem discutidas”, afirma. Uma delas, segundo ele, é a lei 13.465/2017, apelidada por movimentos sociais como “MP da Grilagem”, que amplia o programa de regularização fundiária. “Na lei não há exigências ambientais de combate ao desmatamento da Amazônia. Hoje não podemos mais separar a responsabilidade ambiental da regularização fundiária rural”, destaca.
Para Paulo César Moreira, o reconhecimento do direito à demarcação é um primeiro passo para reduzir a violência, como aconteceu em fevereiro, em que o STF (Supremo Tribunal Federal) garantiu a posse de terras às comunidades quilombolas.
Outro lado
Em nota, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, do Governo Federal, disse que “se solidariza com a dor de cada um dos familiares das vítimas por conflitos agrários” e que há um mês o presidente assinou o decreto nº 9.309 a fim de regularizar a questão fundiária.
Afirmou, ainda, que “se trata de legislação pacificadora, que cria mecanismo de renegociação” para que o agricultor possa se regularizar. E que, a partir da legalização, “é gerada segurança jurídica” para reduzir o conflito.
Já a Ouvidoria Agrária Nacional, vinculada à presidência do Incra, informou, em nota, que trabalha para resolução dos conflitos de terra mediante interlocução com os diversos órgãos públicos e sociedade civil em busca de dirimir a violência no campo. O órgão esclarece que há diversos motivos para que esse cenário se imponha, entre eles o desmatamento ilegal, a exploração irregular de recursos minerais, o trabalho análogo ao escravo e a ausência de regularização fundiária de posses em diversas regiões. A Ouvidoria defendeu a regularização fundiária e informou que “apoia e considera fundamental a instalação de mais núcleos especializados na área agrária nas Polícias Civis e Militares, Promotorias, Defensorias e Tribunais de Justiça nos estados para enfrentamento dos casos de violência no campo”.
A reportagem também procurou o Ministério da Justiça e a Secretaria de Segurança do Pará, mas não obteve retorno até a publicação.