Vídeo flagra PM atirando contra moradores logo após chacina no Rio

Co-fundador do Coletivo Papo Reto e assessor da deputada Renata Souza (PSOL), Thainã Medeiros fazia vigília de corpo de uma das vítimas quando houve uma discussão entre uma moradora e um policial no Complexo da Penha nesta terça (24)

Durante a manhã desta terça-feira (24/5), ainda não se tinha a dimensão da quantidade de vítimas fatais e feridos após uma operação conjunta entre o Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), a tropa mais letal do Rio de Janeiro, com a PRF (Polícia Rodoviária Federal) no Complexo da Penha, na zona norte da capital fluminense. Numa área conhecida como Vacaria, no interior da comunidade, Thainã Medeiros, 39, co-fundador do Coletivo Papo Reto e assessor parlamentar da deputada estadual Renata Souza (PSOL), fazia vigília de um dos corpos quando registrou um PM do Bope disparando contra ele e um grupo de moradores, após a chacina, que já contabiliza 25 pessoas mortas e é a segunda mais letal do Rio.

Thainã relatou à Ponte que era por volta das 12h quando chegou à Praça do Inter, na entrada da Vila Cruzeiro, dentro do Complexo da Penha. “Nos preparamos para subir para acompanhar algumas situações que [moradores] estavam relatando para a gente de violações de direitos humanos”, lembra. Por ser nascido na Penha, ter conhecimento de como circular no local e conhecer moradores, ele também estava aguardando a chegada da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil seccional do Rio do Janeiro), outros parlamentares e a Defensoria Pública. “Não é um local fácil de andar, tem muitas vielas, é uma área de mata”, explica.

“Eles foram [subir] e eu fiquei com os moradores [esperando] com um corpo do meu lado”, conta. Esse corpo de pele negra de uma das vítimas, que ele não teve informação sobre a identidade, aparece coberto por um pano no vídeo, sem nenhum tipo de isolamento por parte de forças de segurança para uma realização de perícia. Thainã afirma que estava ali fazendo vigília para que os demais órgãos tivessem conhecimento da situação. “Esse corpo tinha marcas visíveis de agressão, tinha um pó branco no rosto que os moradores estavam relatando ser cocaína e que os policiais teriam feito ele comer aquela cocaína”, denuncia. “Só uma autópsia vai poder dizer isso, mas ele de fato tinha uma espuma na boca e tinha vômitos no local. E essas marcas de agressão eram de faca, não era bala, então teve uma execução”.

Frames do vídeo gravado por Thainã de Medeiros em que um PM aparece atirando. Destaque em vermelho feito pela Ponte | Fotos: Reprodução

Segundo o assessor, houve um momento em que começou um tiroteio próximo dali, depois apareceram policiais do Bope passando pelo local. “Era aproximadamente uns 20, no vídeo é possível contar melhor, e um deles faz uma provocação de que ‘já foram 25’, que iam matar mais, teve esse bate-boca, ele é retirado pelos companheiros dele até que um outro cara volta e dá esse tiro na minha direção e pegou a quase um metro perto de mim”, descreve.

Thainã aponta que, provavelmente, os PMs não perceberam que ele filmou desde o desentendimento com uma moradora que estava ali próximo a ele até o disparo. Ele denuncia que os policiais não apresentavam identificação na farda e que ainda jogaram munição química. Nos vídeos, ele mostra o buraco na parede de onde o tiro teria acertado e os vestígios de munição menos letal no chão. Ele não soube dizer se tratava de tiro com bala letal ou de bala de borracha.

Thainã explica que o Complexo da Penha é uma das áreas que dá acesso do Complexo do Alemão e que “ali sempre foi um ponto importante para o Estado ocupar”. Ele cita a invasão de 2010, que contou tanto com forças policiais estaduais quanto Exército e agentes federais, época em que a justificativa era de que o Comando Vermelho impedia a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). “Em 2010, começou por ali, porque tem uma área de mata que faz conexão com o Complexo do Alemão, [que] muitas vezes é confundido com a Penha. É muito comum as operações começarem ali pela Penha e se estenderem para o Complexo do Alemão e o que aconteceu ontem (24) foi justamente uma operação nessa zona de mata”, aponta. “É também uma área turística, mas operações policiais começam na Penha e os projetos sociais vão para o Alemão”.

Para ele, as ações na Penha devem se intensificar por ser ano eleitoral, já que o atual governador Claudio Castro (PL) pretende disputar o pleito deste ano e lançou um programa similar ao das UPPs de reocupação de favelas, o Cidade Integrada, que já foi implementado nas comunidades de Muzema e do Jacarezinho, e que a única presença do Estado em comunidades é por meio da força policial. “Nas favelas, num geral, o que tem, não foi o Estado que deu: os campos de futebol em reforma foi a favela que construiu; as vias que o Estado asfalta são estradas que a favela abriu e construiu; os serviços de internet foram a favela que construiu, e muitos são legalizados; a luz elétrica que o hoje o Estado cobra foi a favela que deu um jeito lá atrás, a água a mesma coisa”, elenca.

“Ontem (24), várias escolas foram fechadas, aulas suspensas, todos os serviços do Estado foram suspensos, o mínimo que poderia oferecer não ofereceu, e ainda atrapalhou os próprios serviços do Estado que a gente pede para ter, que a gente quer ter: a gente quer ter escola, quer ter projetos, mas os comércios estavam fechados, as pessoas não podiam sair para trabalhar, quem estava voltando à noite não conseguia voltar para casa, pais tinham que se planejar para pegar o filho na escola.”

Além disso, Thainã ainda entende que o governo estadual vêm descumprindo a ADPF (Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental) das Favelas, que, desde junho de 2020, proíbe operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais e previamente comunicados ao Ministério Público. “Num primeiro momento da ADPF 635, as operações pararam, só que depois a polícia criou um modus operandi para entrar nas favelas e fazer operação: a brecha que encontraram era deixar uma viatura perto e dizer que começaram a receber tiro e só revidou”, critica.

“A polícia não está só descumprindo a ADPF como ainda culpa a ADPF pela operação”, diz ao mencionar a entrevista à Folha dada pelo secretário da PM coronel Luiz Henrique Marinho Pires que culpou a migração de criminosos para o Rio após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A PM justificou que “a ação teve por objetivo localizar e prender lideranças criminosas que estão escondidas na comunidade, inclusive criminosos oriundos de outros Estados do país (Amazonas, Alagoas, Pará entre outros)” e que houve ataque de criminosos quando fizeram a incursão.

O Ministério Público Estadual (MPRJ) disse que havia sido comunicado e que a justificativa foi de “absoluta excepcionalidade” e que a polícia disse que fazia o “reconhecimento da área para atualização de prontuário de localidade com vistas a futuras operações policiais” quando, durante esse procedimento, “a equipe da Unidade de Operações Especiais foi reconhecida e atacada por diversos criminosos locais que portavam armas de grande valor cinético e efetuaram vários disparos de arma de fogo, tentando contra a vida dos policiais que compunham a patrulha, havendo assim a necessidade de iniciar uma operação emergencial com o objetivo de estabilização do terreno”.

Só no final do dia, por volta das 18h, o órgão declarou em nota que iria apurar as circunstâncias das mortes. A atuação foi bem diferente do Ministério Público Federal (MPF) que, já durante a tarde, quando se contavam 21 mortos, o titular do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial no Rio de Janeiro, procurador da República Eduardo Benones, abriu procedimento investigatório para apurar o caso. “Em 11 de fevereiro deste ano, no mesmo lugar, houve oito vítimas fatais em operação com participação da PRF. O Brasil é signatário de tratados e acordos internacionais que nos obrigam a investigar e punir violações de direitos humanos. E 21 mortos, até agora , em menos de 3 meses, não podem ser investigados como se fossem simples saldo de operações policiais”, ressaltou ele.

Pelo Twitter, o governador declarou que operação “seguiu todos os protocolos estabelecidos pela ADPF 635” e que houve confronto.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro também publicou ofício questionando o descumprimento da ADPF e solicitando informações sobre a operação. Integrantes da Ouvidoria e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da instituição estiveram no local e escreveram que receberam, desde cedo, relatos pedindo socorro e que tentaram contatar as forças policiais e não tiveram sucesso, já que os tiroteios permaneceram durante toda a terça-feira. “O sentimento era de desespero, angústia e muito medo”, diz trecho da nota.

“É mais uma dessas operações de caçada humana, que não resolvem nada do ponto de vista da segurança pública e que na verdade traz mais problemas, uma vez que as famílias das vítimas ficam nesse fogo cruzado e se sentindo inseguras dentro das suas próprias casas, sem poder trabalhar, sem poder estudar, sem acessar a saúde. Esse tipo de operação, que não seria naturalizada nos bairros nobres da cidades, jamais poderia ser naturalizado dentro das favelas. O nosso foco agora é o acolhimento das famílias das vítimas e a garantia do acesso jurídico”, declarou o ouvidor Guilherme Pimentel.

O que dizem as polícias

A Ponte questionou a secretaria da PM sobre o vídeo e a secretaria da Polícia Civil sobre o isolamento do local e realização de perícia.

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A assessoria da PM respondeu que “a Corregedoria Geral da Polícia Militar acompanhará as apurações a cargo da Polícia Civil sobre as ocorrências da operação”.

Já a Civil disse que “o trabalho dos peritos estava sendo feito até o momento em que um policial civil foi atingido por estilhaços durante uma emboscada dos criminosos, o que impossibilitou sua continuidade. Além disso, a maioria dos feridos foi encaminhada a unidades de saúde e, consequentemente, os locais onde foram atingidos na comunidade, desfeitos pelos moradores”.

O que diz o Ministério Público

A assessoria disse que o vídeo será encaminhado para a Promotoria responsável pela apuração das circunstâncias das mortes.

O que diz a Defensoria Pública

A assessoria disse que recebeu a denúncia do vídeo de Thainã e que “está a disposição das vítimas”.

Reportagem atualizada às 14h47, de 25/5/2022, para inclusão de resposta da Polícia Civil.

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