Justiça de SP adiou pela segunda vez audiência de Ailton e Guilherme, presos desde março por um roubo em Guarulhos (SP) após serem reconhecidos por foto
Há 108 dias, a auxiliar de confeitaria Maria Aparecida Pinto Silva, 52 anos, e o analista operacional de segurança Valter da Silva, 58, estão sem ver o filho caçula, Guilherme da Silva, 18. Na tarde de 29 de março de 2020, o jovem, que trabalha como estoquista em uma loja de roupas, foi preso ao lado do amigo de infância Ailton Gonçalves Nascimento, 19, que trabalha como entregador.
Naquela tarde, os jovens foram acusados de roubar uma moto e acabaram reconhecidos de maneira irregular. Desde então, as duas famílias lutam para provar a inocência dos amigos, que estão presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) I de Guarulhos.
Moradores do Recreio São Jorge, em Guarulhos, na Grande SP, Ailton e Guilherme são amigos desde a primeira série e fazem tudo juntos. São irmãos, como afirmam as famílias, que completam que eles não são os autores do crime pelo qual são acusados.
Nesta quarta-feira (15/7), pela segunda vez, a audiência de instrução do processo dos amigos foi adiada. Para o juiz Caio Ferraz de Camargo Lopasso, do Tribunal de Justiça de São Paulo, apesar da regulamentação da audiência por videoconferência, “há absoluta impossibilidade técnica para tal”.
O magistrado fala que não houve tempo suficiente para manifestação da defesa e que faltam nos autos dados pessoais dos envolvidos, como e-mail, para intimação das partes.
O Conselho Nacional de Justiça aprovou a realização de audiência de processos em andamento por videoconferência no último dia 11. Mesmo assim, o juiz afirmou que não é possível a realização da sessão. “Não se pode presumir que todos os envolvidos disponham de dispositivo eletrônico, rede de internet e habilidades tecnológicas para acessar a videoconferência, no modelo proposto”.
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Já as famílias enxergam o adiamento como um descaso. “Eu tenho sofrido muito desde o dia 29 de março. Cada vez que remarcam parece que é uma punhalada que eu recebo no meu coração. É uma dor imensa saber que não podemos fazer nada por eles, só pedir a Deus. Eu só peço justiça”, lamenta dona Maria Aparecida, mãe de Guilherme.
A dona de casa Aparecida Neusa Gonçalves, 54, mãe de Ailton, também tem sofrido com a ausência do filho “preso sem ter feito nada de errado”. “A gente é pobre, mas não é bandido. Tudo que ele conquistou foi com o suor do trabalho dele. Ele tá sofrendo lá e eu tô sofrendo aqui. Eu não consigo dormir nem me alimentar, só pensando nos meninos que tão pagando por algo que não fizeram”, lamenta.
Para Valter, pai de Guilherme, o descaso com o processo do filho causa indignação. Ele comenta as diversas alterações nas datas da audiência, que inicialmente foi marcada para 15 de junho, depois para 10 de julho e agora para 21 de agosto.
“Parece que ninguém prestou atenção em nada que foi dito. Será que vai ter essa audiência? Ficamos sem saber de nada. O pior de tudo é que nem conseguimos ter acesso ao Guilherme, nem sei como ele está, se ele está bem”, desabafa.
“Só queríamos ter uma posição correta do Judiciário. Queríamos que libertassem eles para que cumpram a prisão até a audiência em casa. Não é fácil saber que meu filho está inocente no presídio e ninguém toma providência”, completa Valter.
“É desumana a prisão desses meninos”
As tias de Guilherme também conversaram com a Ponte para lamentar a demora para que o sobrinho “preso sem nenhuma prova” seja solto. “É desumana a prisão desses meninos. Isso tudo, simplesmente, por serem negros e pobres. Essa injustiça tá roubando o sonho deles e duas famílias que estão procurado por essa tal de justiça”, diz a auxiliar administrativa Angela Maria Pinto, 32 anos.
“O Guilherme é um menino muito bom, justo, trabalhador e estudioso, sem nenhum tipo de antecedentes criminais. Essa situação que ele foi preso não foi em flagrante e ele não tem participação nenhuma com esse roubo. A gente levantou todas as provas possíveis para isso”, completa recepcionista Cláudia Augusta Pinto, 34 anos, outra tia do jovem.
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O fiscal de loja Bruno Henrique, 27 anos, primo de Guilherme, critica a burocracia do judiciário paulista. “A gente entende que a pandemia prejudicou todo mundo, mas nos sentimos de mãos atadas”.
“O habeas corpus deles ainda nem foi julgado. Enquanto isso, eles já foram prejudicados, perderam os empregos, se prejudicaram no curso e essa demora para provarmos a inocência deles”, completa Bruno.
A repositora Fabiana Grams, 20 anos, cunhada de Ailton, detalha que as famílias tem encontrado dificuldade para se comunicar com os jovens presos. “A gente mandou carta para ele falando que a audiência seria no dia 10 de julho, ele respondeu esperançoso, falando que não via a hora de chegar esse dia porque tinha certeza que ia ser libertado nesse dia. Mas não aconteceu. Ficamos de mãos atadas, sem respostas, sem conseguir falar com os meninos porque as cartas demoram muito”.
Sobre o caso
Ailton e Guilherme foram presos no dia 29 de março de 2020 pela Guarda Municipal de Guarulhos na estrada David Corrêa, no bairro Cabuçu, suspeito do roubo de uma motocicleta azul, um celular e uma aliança. No local onde houve a detenção, há uma pista improvisada onde jovens têm o hábito de ir com motocicletas fazer algumas manobras.
Ambos foram reconhecidos pela vítima, um homem branco, depois que um dos guardas que participou da abordagem mostrou a foto do RG dos jovens do lado de fora da delegacia, contrariando completamente as regras do reconhecimento de um suspeito.
A advogada Ágatha de Miranda, especializada em direitos humanos e justiça criminal com a temática de encarceramento e gênero, afirmou à Ponte, em reportagem sobre a prisão dos jovens, que o caso escancara o racismo institucional e é eivado de falhas.
Além do reconhecimento irregular, Ministério Público e Tribunal de Justiça erraram ao manter a prisão preventiva de ambos. “É importante fazer a análise não de uma maneira isolada, mas entendendo que eles se encaixam em um padrão usado no sistema de Justiça de São Paulo. É uma repetição”, explicou Miranda após analisar o processo a pedido da reportagem.
A advogada também destaca que nada foi encontrado com Ailton e Guilherme. “Não foi encontrado nenhum objeto que a vítima relatou ter sido roubada. Não existiu materialidade do crime”, criticou.
“As únicas características que a testemunha disse que era capaz de reconhecer, e que é comum àqueles quatro jovens, é a estatura e a cor da pele. Isso reforça os padrões que são repetidos no sistema de Justiça criminal, o padrão das pessoas que são criminalizadas a partir de um padrão racial”, destacou.
Ágatha Miranda considera que as prisões são desnecessárias ainda mais em um momento de pandemia como o que vivemos e que o adequado era a conversão em prisão domiciliar. “Eles são primários, ou seja, não têm antecedentes criminais, não têm como a gente falar dessa gravidade concreta do crime. Além disso, eles possuem residência fixa e trabalham”, finalizou.
A Ponte procurou o advogado Valcir Galdino Maciel, que cuida da defesa dos jovens, para questionar sobre a decisão de adiar mais uma vez audiência. O defensor se restringiu a declarar que o “Judiciário está agindo dentro da legalidade”.
Outro lado
Questionado, o Tribunal de Justiça de São Paulo ainda não se manifestou.