Babalorixá é levado em camburão por PMs em Franca (SP): ‘ação truculenta, horrorosa’ 

Pai Emerson teve culto interrompido e foi para delegacia após denúncia de perturbação de sossego feita por vizinho; OAB repudiou abordagem

Uma cerimônia da casa de candomblé Ilê Asè Alaketu Oluwáie, em Franca, no interior de São Paulo, foi interrompida na última sexta-feira (26/1) por policiais militares que apuravam um chamado de perturbação de sossego. Pai Emerson, 32 anos, responsável pelo local, foi levado no camburão da viatura até a Delegacia Seccional de Polícia de Franca. A ação foi alvo de denúncias dos candomblecistas que estavam no local e também da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na cidade, que, em nota, repudiou a abordagem a qual avaliou ter havido violação de direitos humanos.

Os cabos Thalles Augusto Machado Duarte e Fernando Henrique Costa foram até o local atendendo chamado do Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) para averiguar uma denúncia que reclamava do barulho de tambores e cantos vindo do local após às 22h. 

A Ponte teve acesso ao boletim de ocorrência do caso. Nele, os policiais alegam que bateram na porta da casa, mas que, diante do barulho, não foram ouvidos. Assim, decidiram entrar no imóvel e teriam sido recebidos aos gritos de que não poderiam estar ali. Contudo, quem estava no local tem versão diferente. 

“Eles agiram de uma forma truculenta, horrorosa. Tinha crianças, senhoras, idosos que ficaram lá dentro tremendo. E sem falar em humilhar um líder religioso de bem, porque ele não tem uma passagem da polícia, ele não deve nada a ninguém. Mas, porque é preto, de periferia, então acham que podme lidar com as pessoas assim”, disse Pai Luciano, 50 anos, à Ponte.

O caso ocorreu no bairro Jardim Martins, onde Pai Emerson mantém uma casa de candomblé há sete anos. Segundo Pai Luciano, que estava no local no momento da abordagem e é frequentador do espaço, essa é a primeira vez que ocorre algo do tipo. Ele conta que o culto foi interrompido de forma abrupta sem que houvesse respeito ao ato religioso em andamento. 

“Você já por acaso ouviu um padre ser retirado no meio de uma missa? Você já ouviu um pastor ser retirado do culto no meio de uma pregação dos seus fiéis? Não pode. Eles, sim, fizeram o crime, porque eles tiraram o sacerdote no meio do culto”, diz Luciano. 

Ainda no BO, os PMs disseram que Pai Emerson teria debochado dos agentes ao ser informado que teria de ir até a delegacia. Na versão policial, ele teria dito que iria “em sua Mercedes”. “E em tom de desdém e/ou pejorativo, disse aos Policiais Militares: ‘vocês têm uma Mercedes? Porque eu tenho’. 

O advogado Guilherme Lameado, que cuida da defesa de Pai Emerson, nega a versão policial. Segundo ele, o líder religioso aceitou ir até a delegacia e pediu para ir ao local em um carro particular, de um dos presentes, e não na viatura. “Não é uma prática que aconteceria em outros casos”, afirma o defensor.

Em depoimento, Pai Emerson contou que pediu para ir em um carro particular ou no banco traseiro da viatura e mesmo assim foi colocado no camburão. Ele denunciou no BO que, após ser revistado, ele foi impedido de entrar no carro com um eketé, uma indumentária religiosa que se assemelha a um gorro. 

Um vídeo registrou o momento em que um dos policiais manda ele tirar o eketé. Nas imagens, é possível ouvir um dos PMs falando “eu vou te prender por desobediência” quando Pai Emerson tenta explicar que o item é religioso. Ele foi conduzido até a delegacia sem o item.

Fabíola Carvalho, coordenadora nacional da Uneafro, relaciona a atuação dos policiais com o racismo religioso. “Em nenhum lugar a gente ouve dizer que um culto cristão foi interrompido porque o barulho estava incomodando. Isso acontece, inclusive, dentro do transporte público, em praças públicas com caixa de som e é naturalizado. Agora, quando a gente fala de uma religião que tem sua matriz na África… Porque tudo que é relacionado ao preto é demonizado, criminalizado. Isso por si só caracteriza o racismo religioso nas estruturas”, diz. 

Ela questiona ainda o fato dos PMs não terem usado um decibelímetro (equipamento que mede o som) na ocorrência. No BO, os policiais afirmam apenas que gravaram um vídeo para comprovar que o som estava alto.

O BO foi registrado por pertubação de sossego, uma contravenção e não um crime, desacato e desobediência. Após prestar depoimento, Pai Emerson foi liberado.

Entidades denunciam abuso 

O caso foi alvo de denúncias de entidades como a seccional da OAB de Franca e do Coletivo Arco-íris. A primeira emitiu nota de repúdio sobre o caso e condenou a ação dos policiais. “É de se ressaltar que o Estado brasileiro é laico e tem como preceito fundamental a dignidade da pessoa humana, que se conecta ao direito maior de pertencimento e existência na sociedade”, diz o texto. 

“A violência institucional praticada foi um ato atentatório contra o direito de crença e liberdade religiosa previsto na Constituição Federal e na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, completa.

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O Coletivo Arco-íris de Franca também se manifestou por nota. A entidade classificou como inadmissíveis manifestações de ódio contra crença religiosa. “É fundamental que o poder público defenda e promova políticas de combate à intolerância religiosa e ao racismo religioso, por meio de ações educativas, campanhas de conscientização e punição rigorosa aos responsáveis por atos de discriminação e violência”, aponta. 

Outro lado

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo questionando sobre o caso, mas não houve retorno até a publicação. O espaço segue aberto. 

 

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