Balé da Cidade de São Paulo tem seu primeiro diretor negro

    Ismael Ivo saiu da periferia da zona leste de São Paulo para brilhar nos palcos de todo mundo

    Caramante
    Ismael Ivo: saiu da Zona Leste de São Paulo para ganhar os palcos do mundo – Imagem: Divulgação

    Ismael Ivo é o primeiro diretor negro a assumir o Balé da Cidade de São Paulo, companhia oficial de dança do Teatro Municipal. A frente da companhia desde janeiro, Ivo estreia nesta sexta, dia 16, Paraíso Perdido, coreografia do grego Andonis Foniadakis e figurinos do estilista lineup da São Paulo Fashion Week, João Pimenta. Para fechar o programa, Cacti, do sueco Alexander Ekman, uma obra do repertório da companhia.

    Como um convite ao público, os bailarinos farão um desfile pelas escadarias do Teatro Municipal usando os figurinos assinados por Pimenta e máscaras do artista plástico Igor Martins.

    Paraíso Perdido fala da busca por direcionamento e soluções. Pessoas tentando resgatar o seu próprio destino. O figurino é um desfile de imagens e alegorias. Uma fusão entre dança e moda, o que no exterior é muito comum, a moda é uma visão artística do mundo de hoje”.

    O desfile nas escadarias tem como objetivo abrir o Teatro Municipal para toda a população.

    “Estamos oferecendo à cidade, não precisa ter ingresso. Para o desfile, escolhi como trilha sonora O Guarani, de Carlos Gomes. Lembro que na minha infância ouvia dizer que o Brasil é o país do futuro e era obrigatório o programa A Voz do Brasil, daí a escolha dessa música. No fundo, a coreografia tem como mensagem: respira fundo e vamos recomeçar”.

    O coreógrafo

    Ismael Ivo tem uma trajetória única para um bailarino brasileiro, negro e nascido na Zona Leste de São Paulo. Dançou com os principais nomes da dança contemporânea da cena paulistana no final dos anos 1970. Em 1983 foi convidado para atuar na Companhia de Alvin Ailey, em Nova York. Fundou na Áustria o ImPulsTanz, um dos maiores festivais de dança contemporânea da Europa. Foi Diretor do Festival Internacional de Dança da Bienal de Veneza de 2005 a 2012 e atualmente atua como conselheiro internacional. Haja fôlego.

    “Não diria que minha caminhada foi planejada. Talvez sonhada. Talvez, pela constância do meu trabalho, de uma certa maneira, atraídas. O que chamam de sorte, se concretiza quando você trabalha e está preparado para essa sorte. Eu trabalhava obsessivamente sempre acreditando que alguma coisa poderia acontecer e se acontecesse, eu estaria preparado. Essa sorte, entre aspas, me encontrou preparado para assumir posições como o cargo de diretor do Teatro Nacional Alemão de Weimer – fui o primeiro estrangeiro e negro neste posto”.

    Sua história começa no bairro da Vila Ema, onde nasceu. Filho de pedreiro e de empregada doméstica, teve uma infância modesta.

    “Era como se morasse em uma cidade do interior. Cresci em meio a muitas árvores, eucaliptos. O terreno da casa de frente a minha era quase sítio com um pequeno pomar e com criação de galinhas e de porcos. Eu passava muito tempo ali, era meu refúgio”.

    Com um sorriso no rosto, lembra que passava horas e horas correndo e cantando, cantando e correndo no meio do mato.

    “Quase como um delírio. Isso foi muito interessante. Também gostava de girar e girar até ficar tonto e cair no chão. Gostava daquela sensação, do prazer de sentir o mundo rodar. Fazia isso até o dia que minha mãe proibiu. Aí, claro, eu rodava escondido! Dessa experiência nasceu o solo Delírio de uma Infância“.

    Para Ivo, as experiências de menino influenciaram o bailarino. Com sorriso largo e olhos brilhantes, fala empolgado da Negra Minervina, uma senhora que reunia a molecada para contar histórias e lendas.

    “Todas as tardes, nós, os meninos da rua, ficávamos sentados ali e ela contava histórias de Saci Pererê, Mula sem Cabeça. Lembro de ouvi-la: “De repente, surge um redemoinho de poeira e se jogar um rosário dentro aparece um Saci! ” Gostava de ficar ali. Acho que ela, mesmo sem saber, despertou a minha imaginação, a fantasia. Isso, claro, abre espaço para a arte”.

    Outra referência para a formação de Ismael Ivo foi o pai. Um homem simples, que mal sabia escrever, mas era capaz de planejar e construir uma casa sozinho.

    “Ele tinha um conhecimento prático, não sabia fazer cálculos sofisticados, penso que se ele tivesse feito uma faculdade de arquitetura, ele seria incrível. Por um certo período da minha infância, ele tentou me ensinar o seu ofício e eu resistia. Fazia porque era obrigado a ajudá-lo, mas sabia que não era esse o meu caminho”.

    Como forma de homenagear o pai, Ivo planeja um solo. A ideia é colocar no palco uma pilha de tijolos, caixotes de cimento e argamassa. Começar a construir um muro, derrubar e dançar sobre os escombros. Um símbolo de superação.

    Superar a distância entre a dança e a periferia também foi uma vitória. Boa parte das escolas e grandes companhias estão localizadas na área central ou Jardins.

    “A dança é mais acessível às pessoas de classe média, média alta. Quando decidi trilhar esse caminho, fui me infiltrando com cara e a coragem. São Paulo é uma cidade grande, potente e que te diz: ‘Decifra-te ou devoro-te’. Eu saía da zona Leste e fui tentando me inserir nas companhias, pedindo uma oportunidade. Consegui algumas bolsas. As pessoas viam que eu tinha uma certa aptidão e me acolheram. Eu ensaiava, participava das aulas e no final da jornada era o único a pegar três ônibus para chegar em casa. Persisti e conquistei meu espaço”.

    Para Ivo, suas conquistas vieram com certa mágica.

    “Quem imaginaria que um coreógrafo americano viria ao Brasil, passaria férias em Salvador, assistiria uma apresentação sua e depois te convidaria para a companhia? Isso é mágico! Como diretor do Balé da Cidade estou aberto às surpresas. Tem sempre um porvir”.

    Racismo

    Existe racismo na dança? A pergunta é incômoda, mas com a mesma elegância, Ivo responde:

    “Sim, existe. Muitas vezes de forma sutil. Observe, em quase 50 anos do Balé da Cidade, sou o primeiro diretor negro. Não fui afrontado diretamente, mas vivi situações em que se salientava um elemento, no caso eu, só para compor um número de diferença:  ‘Aqui nós somos democráticos, tem até um negro dentro da companhia'”.

    Para ele, sua geração foi educada para não criar caso, não trazer problemas. Hoje, existe um movimento forte, encabeçado principalmente pelos jovens, que dá voz a cultura negra e quer conquistar seu espaço.

    “Não podemos desmerecer as gestões anteriores, tinham um nível artístico muito bom. Eu vejo o Balé da Cidade com uma história incrível, um celeiro de artistas, quero dar continuidade e sensibilizar em outras camadas. Por exemplo: conversei com André Sturm (Secretário de Cultura) e em novembro a companhia deve fazer um programa dedicado ao mês da Consciência Negra. Não quero fazer apenas um espetáculo. Precisa ter a mesma importância que o Carnaval e a Virada têm na vida da cidade”.

    A proposta não está em fazer uma coreografia nova apenas. Mas estabelecer pontes entre jovens da periferia da cidade e o Balé. A ideia é levar adolescentes de Paraisópolis para dançar no Teatro Municipal, por exemplo.

    “Hoje, por exemplo, recebemos 65 adolescentes de uma escola do Capão Redondo acompanhando o ensaio do Balé da Cidade. E planejamos fazer um ensaio aberto lá. Essa troca que me interessa. Muitos desses meninos não sabem o que é o Teatro Municipal, nunca sonharam de entrar ali, essa é uma oportunidade”.

     

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