Baleado por PM de folga, jovem negro com deficiência intelectual morre após 13 dias no hospital

    Thiago Duarte morreu um dia após conseguir na Justiça o direito a prisão domiciliar. Vídeo mostra PM pisando na cabeça de um amigo com quem foi preso — mas, para promotor, policial só ‘toca levemente com o pé na cabeça’

    Thiago Aparecido saiu de casa para comprar leite e pão, mas acabou morto por um PM | Foto: arquivo pessoal

    A diarista Queli Duarte, 40 anos, passou os últimos 13 dias brigando com a polícia e a Justiça pelo direito de ver o próprio filho, Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20 anos. O jovem negro, que tem deficiência intelectual, estava internado no Hospital Geral de São Mateus, na zona leste da cidade de São Paulo, após ser baleado na boca por um PM de folga, o cabo Denis Augusto Amista Soares, em 8 de abril.

    Apesar de uma ordem judicial autorizando Queli a visitar o filho, ela afirma que o hospital não permitiu sua entrada. A diarista só pode ver o rosto de seu filho após o jovem morrer, na madrugada desta quarta-feira (21/4). 

    No dia anterior, a pedido da Defensoria Pública, a Justiça havia concedido a Thiago o direito de responder ao processo em prisão domiciliar.

    Leia mais: PMs atiram em jovem negro com deficiência intelectual e pisam na cabeça de seu amigo

    A mãe do jovem conta que foi todos os dias até o hospital, mas os funcionários negaram sua entrada, alegando risco por conta da Covid-19. Até então, Queli tinha expectativas de que o filho se recuperasse. “Tinha esperança que ele saísse de lá, o hospital ligava e dizia que ele estava melhorando, toda vez eu ia na porta e ficava na esperança de conseguir entrar, mas eles nunca deixavam”, desabafa a mãe. “Quero justiça”, exige.

    Segundo a família, funcionários do hospital disseram que o projétil que atingiu Thiago ainda estaria alojado no corpo dele, mas a bala não teria sido encontrado durante a necropsia no IML (Instituto Médico Legal). “Onde está a bala? Eles tinham que entregar para a polícia. Está claro que tentaram colocar meu filho como bandido. O hospital mandou um papel para o IML que não consta a bala”, disse Queli, numa live da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, grupo que combate a violência de Estado nas periferias.

    Márcia Lysllane, articuladora da Rede, que vem dando assistência à família de Thiago desde que foi baleado, fez a mesma cobrança. “O projétil provavelmente foi retirado, a equipe do IML não está encontrando, vão fazer um raio-X para ter certeza, mas é muita revolta, é um momento muito difícil”, afirmou.

    O enterro está previsto para ocorrer no cemitério da Vila Formosa, na chamada “ala social”, pois a família não tem condições de pagar por um enterro. “A última vez que eu vi ele, na hora que tinham tirado da ambulância, que eu beijei ele e falei: ‘a mãe está aqui, filho”, lamentou Queli.

    Em 11/04, a advogada Fernanda Peron, da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio solicitou a autorização ao Tribunal de Justiça de São Paulo, para que a família pudesse visitar Thiago no hospital, no pedido ela juntou a reportagem da Ponte e se referiu a imagens retiradas do vídeo obtidos pela equipe de reportagem. O pedido para a visita foi concedido em 16/04 pelo desembargador Alberto Anderson Filho. Apesar disso, a entrada da família não foi permitida no hospital, por conta da Covid-19, segundo a mãe do jovem.

    Promotor nega conteúdo de vídeo

    Na manhã do dia 8, Thiago saiu de casa para comprar leite e pão para a família. A caminho do mercado, ele encontrou na rua o amigo Fernando Henrique Andrade da Silva, 27 anos, que é suspeito de ter roubado, um pouco antes, o funcionário de uma empresa telefônica — ele nega o crime.

    Enquanto caminhavam conversando, os dois foram abordados por um PM, o cabo Denis Soares na Rua do Carvalho Brasileiro, 37 anos, que estava de folga. O policial atirou em Thiago. Para outros PMs que estiveram no local, Denis disse que baleou o jovem porque ele havia tentado assaltá-lo. No 49º DP (São Mateus), o cabo mudou de versão e disse que resolveu abordar os dois jovens após ter sido procurado por um funcionário terceirizado da Vivo, que contou ter sido roubado por uma dupla.

    Denis disse que atirou em “legítima defesa”, porque Thiago estaria armado com um revólver 38, de numeração raspada. Já o depoimento de uma testemunha, coletado pela Rede de Resistência e Proteção contra o Genocídio e anexada ao processo, relata que as pessoas do bairro “contam que Thiago estava sem arma e o policial atirou nele por nada”.

    A mesma testemunha conta que Thiago permaneceu “agonizando no chão” ao longo de uma hora até ser socorrido. Ao seu lado, estava o amigo Fernando, deitado e rendido. Em um vídeo publicado pela Ponte, é possível ver um dos policiais pisando na cabeça dele. O vídeo foi apresentado à Justiça pela Defensoria Pública, mas o promotor Osias Daudt não viu nele qualquer sinal de agressão. Em 20 de abril, Osias escreveu que “o que se assiste do vídeo é que o policial retira a mochila que contém os bens roubados da vítima das costas do denunciado Fernando e toca levemente com o pé na cabeça dele, sem pressionar e sem chutar”.

    O funcionário terceirizado da Vivo reconheceu Fernando como um dos ladrões. Com ele, a polícia afirma ter encontrado uma mochila contendo as ferramentas de trabalho da vítima. Ele foi preso e denunciado pelo Ministério Público por roubo. Já Thiago não foi reconhecido e acabou autuado e denunciado por porte ilegal de arma.

    “O PM deu a versão dele, meu filho saiu como bandido e pronto. Agora eu quero pelo menos limpar o nome do meu filho, ele não pode sair como um bandido se ele não fez nada e nem estava armado”, diz Queli. 

    Apoie a Ponte!

    Desolada com a notícia da morte de Thiago, a diarista relatou à reportagem como o filho, que faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico por sofrer de encoprese (defecação sem controle), poderia ter reagido quando abordado. “Ele tinha retardo mental e um problema no intestino. Creio que ele não entendeu o que o policial estava falando. Ficou perdido, muita gente que viu o que aconteceu falou isso, que ele tentou se explicar, levantou a camiseta para mostrar que não estava armado, mesmo assim o PM atirou, fez de propósito.”

    O que diz o governo

    A reportagem procurou o Hospital Geral São Mateus, por meio da Secretaria Estadual da Saúde, para falar sobre a cirurgia feita em Thiago e a ausência do projétil. O Hospital Geral de São Mateus informou que “devido à suspeita de Covid-19, passou por exames e foi assistido em leito exclusivo para a doença. Para segurança dos próprios pacientes e familiares, há restrição de visitas, mas os boletins são atualizados diariamente pelo hospital”.

    Segundo a pasta, apesar de todos os cuidados, o paciente evoluiu negativamente, teve parada cardíaca nesta terça-feira (20) e não respondeu às condutas médicas. “A investigação do óbito está em andamento e a família será orientada após a conclusão dos laudos. O hospital se solidariza e permanece à disposição dos familiares e das autoridades”. A secretaria não respondeu para onde foi encaminhado o projétil.

    Já a Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) limitou-se a enviar uma nota, em que afirma: “Todas as circunstâncias relacionadas aos fatos são investigadas, por meio de inquérito policial, pelo 54º DP (Cidade Tiradentes). O agente, que estava de folga na ocasião, segue no serviço administrativo. A conduta dos outros policiais envolvidos no atendimento da ocorrência é apurada pela Polícia Militar, em IPM e procedimento interno administrativo”.

    Esta reportagem foi atualizada às 19:57, de 26/04/2021 para adicionar a resposta da Secretaria Estadual da Saúde.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas