‘Bazar das Poderosas’ auxilia transexuais em igreja da zona leste de SP

    ‘Jesus nunca discriminou ninguém’, diz padre Júlio Lancelotti; 3ª edição do encontro forneceu ajuda a público LGBT e em situação de rua

    Symeony Zabotti contribui há quatro meses com o trabalho do padre Júlio Lancelotti | Foto: Larissa Darc

    Era início de tarde de um domingo, dia 10 de dezembro, em uma rua residencial no bairro do Belém, zona leste de São Paulo. A alguns metros de distância, já era possível escutar a batida de música que ecoava pelas frestas do portão. “Vou te contar a lenda da bicha esquisita”, canta MC Linn da Quebrada. “Não sei se você acredita, ela não é feia (nem bonita)”. Outras vozes formam coro entonando a canção de resistência, enquanto um grupo de pessoas dançam em volta da caixa de som.

    A decoração, toda em azul e rosa claro, faz alusão à bandeira trans. Roupas, sapatos, maquiagens e serviços são disponibilizados para os convidados LGBT e de baixa renda que ocupam o espaço. Esse poderia ser apenas mais um evento qualquer, se não fosse por um pequeno detalhe: ele ocorria na área externa de uma igreja católica. Na sua 3° edição, o Bazar das Poderosas aconteceu pela primeira vez fora do Centro de Referência da Diversidade.

    “O papa Francisco pediu que a igreja estivesse aberta a todos”, explica o padre Júlio Lancelotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo. “E Jesus nunca discriminou ninguém. Nunca perguntou para alguém qual era a identidade de gênero ou sexualidade”, completa. Na paróquia, ele conta com a ajuda de uma mulher transexual há quatro meses. “Eu lembro até hoje quando cheguei até o padre, meio tímida, e pedi para ajudar na igreja. Ele disse que eu podia e desde então faço serviço voluntário para a população de rua”, conta Symeony Zabotti, de 42 anos.

    A iniciativa surgiu de uma ideia despretensiosa da jornalista Cinthia Gomes, 36. Após uma conversa com uma transexual em situação de rua, ela começou a se interessar pela causa. “Conforme ela foi falando, eu fui entendo uma coisa muito óbvia, a de que a gente que não é travesti ou transexual não percebe. Ela estava sendo penalizada, excluída e marginalizada por ser quem era”, disse Cinthia.

    Ela entrou em contato com o Centro de Referência da Diversidade, separou roupas que não usava mais e organizou um bazar. A primeira edição contou também com uma oficina de turbantes para trabalhar a identidade da mulher negra. A partir dos eventos seguintes, a questão do mercado de trabalho começou a ser pensada. Cinthia argumenta que “dentro da questão da transexualidade, existe o preconceito na hora de procurar um emprego. Acaba que a alternativa que muitas encontram é a prostituição”.

    Bazar também contou com um sarau, o TranSarau | Foto: Larissa Darc

    O coaching de carreiras Caetano Neto, 37, estava no evento para ajudar na produção de currículos e orientação profissional. Com um computador e uma impressora, ele recebia quem estava à procura de um emprego e realizava orientações individuais. “Existem diversas dificuldades. Muitas delas estão em situação de rua, não têm endereço fixo ou telefone, o que é muito solicitado pelas empresas”, explica. “A gente também procura alternativas para essas situações. Usamos o número da paróquia para contato, procuramos endereços de amigos, criamos e-mails para que eles possam ir para algum lugar que tenha acesso gratuito à internet. Os problemas vão além das qualificações profissionais.”

    Para organizar a distribuição de roupas, os visitantes recebem “poderes”, de acordo com a sua vulnerabilidade social. Eles se tornam moeda de troca para roupas, sapatos e acessórios. A ideia dessa distribuição veio do jornalista Frederico Bastos. “A gente tentou reproduzir a lógica das lojas comuns para o bazar. Assim, as pessoas priorizam quais itens precisam no momento e ajudam na matemática da distribuição de forma mais justa”, argumenta.

    Além da moda

    “Nossa, que comidinha gostosa”, exclama um rapaz, enquanto come um almoço bem servido que recebeu de graça da igreja. Os voluntários se revezavam para entregar pratos quentes e sucos de tangerina para os convidados. Enquanto algumas pessoas tiravam dúvidas sobre saúde, outras se consultavam na área jurídica.

    Em meio às blusas e bolsas, uma visitante agradece Cinthia. “Você salvou o meu dia. Hoje foi muito difícil e esse evento me ajudou muito”, disse sorrindo. “Quando vai ter de novo?”, questionou, feliz em descobrir que na semana seguinte terá mais.

    Com um microfone cor-de-rosa, as poetas se preparavam para recitar os seus versos. “O TranSarau é um manifesto para nos fazer falar ser ouvidas”, comenta Patrícia Borges, de 27 anos. Ela é a primeira a recitar as poesias do livro Antologia Trans. Enquanto falava, uma leva de arroz doce era servida ao público.

    Padre Júlio, que observava de longe toda a movimentação, não parecia se incomodar com as letras mais fortes das músicas e poesias. Sereno, disse que essa era uma data muito especial.”Hoje é o Dia da Declaração dos Direitos Humanos. E, lutar contra todos os tipos de discriminação e preconceito é o imperativo dos Direitos Humanos”.

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