Bolsonaristas mantêm entidade com falsa ligação com a ONU

    ‘Parlamento Mundial de Segurança e Paz’ deixou de integrar instituições da ONU em janeiro, mas ainda entrega honrarias em nome da entidade internacional

    Uma instituição brasileira chamada Parlamento Mundial de Segurança e Paz, na sigla em inglês WPO (World Parlament of Security And Peace), vem premiando pessoas em nome da ONU (Organização das Nações Unidas) sem ter ligação com a entidade internacional. Uma das medalhas entregues pela entidade traz erros a palavra em inglês word (palavra) escrita no lugar de world (mundo).

    Desde janeiro de 2019, o grupo não faz mais parte da lista de instituições vinculadas à organização mundial, mas usa o falso vínculo na entrega de honrarias. Uma de suas integrantes, Veruska Rodrigues, concorreu nas eleições de 2018 pelo PSL (Partido Social Liberal), partido do presidente Jair Bolsonaro.

    Veruska, autointitulada “Embaixadora Humanitária da Paz pela ONU”, continua homenageando pessoas com o título “Benfeitor da Humanidade” em nome da Organização das Nações Unidas. É possível confirmar a retirada da WPO do site da ONU, conforme a própria Organização informou à Ponte. A WPO entrou na lista do Pacto Global em 2015 e foi desligada no começo de 2019 por não comunicar seus progressos, segundo a entidade internacional.

    WPO usa logo da ONU em convite para entrega de título ‘benfeitor da humanidade’ a agente de segurança | Foto: Reprodução

    Curiosamente, ao propagandear uma ligação imaginária com a ONU, Veruska mostra uma admiração pela organização internacional que nunca foi compartilhada pelo atual presidente. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro ameaçou deixar a entidade caso eleito. “Não serve para nada essa instituição”, disse o então candidato, chamando os integrantes do grupo de “comunistas”. Uma vez eleito, porém, deixou esses planos de lado.

    A WPO, de Veruska, está registrada como “organização da sociedade civil de direito”, segundo o site da Receita Federal. A descrição aponta como atividade econômica principal “atividades associações de defesa de direitos sociais” e, a secundária, “atividades associativas não especificadas anteriormente”. Sua sede fica no município de Senador Canedo, em Goiás. A reportagem tentou contato através dos números informados à Receita, sem conseguir contatar representantes da ONG em sua base de atuação.

    Diploma de Embaixadora da Paz de Veruska Rodrigues | Foto: Divulgação

    Em nota enviada à Ponte, a ONU confirma que a WPO não possui mais vínculos com a organização. “Com frequência esta entidade entrega títulos de ’embaixador da Paz’. Informo que este prêmio ou título da referida ONG não tem nenhuma relação com os Embaixadores da ONU. O Pacto Global é uma iniciativa de sustentabilidade corporativa, com mais de 13 mil membros que não pertencem à ONU, mas, sim, ao Pacto”, diz a nota oficial enviada à reportagem pelo UNIC (Centro de Informação das Nações Unidas, em português), do Rio de Janeiro.

    Um servidor público foi homenageado pela entidade brasileira no segundo semestre deste ano. Naquele momento, a descrição é de que aquela honraria era cedida em parceria com a ONU e teria validade internacional, conforme consta em convites para o evento e no diploma entregue ao agente. O logo da ONU é usado no informe.

    O servidor público foi informado pela Ponte de que a WPO não possui vínculos com a ONU e que a própria organização internacional assegura não ter ligações com a honraria. Ele se sentiu exposto ao saber de que a homenagem não tem vínculos com a entidade internacional. Para o profissional, o caso é motivo de chacota.

    Medalha entregue a um dos homenageados possui erro de caligrafia no nome da entidade: word (palavra) em vez de world (mundo) | Foto: Divulgação

    “Eu estou pasmo, nem sei o que dizer. Levei toda família lá para prestigiar, convidei amigos especiais de muito longe para ir e divulguei amplamente nas minhas redes sociais… Para receber essa notícia desanimadora. Estou me sentindo completamente constrangido”, confessa, pedindo anonimato pelo impacto que a situação traria para sua imagem.

    A medalha entregue ao agente homenageado apresenta a inscrição “Word Parlament of Security And Peace” com erro na escrita. Em vez de World (mundo), como consta em seus registros, o nome está escrito como Word (palavra). Logo abaixo há o título de “bem feitor da humanidade” e o logo da WPO. A medalha não faz nenhuma referência à ONU.

    “Espero que os responsáveis expliquem-se acerca dos fatos, pois a vergonha que sinto já não cabe mais em mim. Se for verdade é de uma irresponsabilidade imensurável falar em nome de uma instituição sabendo que você não tem autorização”, acrescenta o servidor.

    Carreira política

    A reportagem conversou com Veruska Rodrigues, que se declara Embaixadora da Paz pela ONU. Ela rebate o posicionamento oficial da organização internacional e garante que a WPO faz, sim, parte da ONU. Segundo ela, basta entrar na página oficial da WPO para acessar os registros. A reportagem buscou os registros informados pela representante da instituição brasileira, entretanto, os links informados estão fora do ar.

    “Sou Embaixadora Humanitária da Paz, conforme passado, pelo Parlamento Mundial de Segurança e Paz, que é uma sociedade civil registrada na ONU, conforme os links enviados. Se você entrar na página e buscar os registros, poderá ter uma noção melhor. Embaixadores da ONU exercem a Diplomacia”, afirma Veruska, em contato com a reportagem.

    Reprodução do site da ONU com a informação da saída da WPO da lista de instituições | Reprodução/Site do Pacto Global

    Veruska afirma que, segundo o presidente do Parlamento Mundial para Segurança e Paz, Celso Dias, eles estão, sim, registrados na ONU. A Ponte procurou Celso por telefone e mensagens através do aplicativo WhatsApp, mas não obteve retorno até o momento de publicação desta matéria. Assim como Veruska, Celso também já se candidatou pelo PRTB, mas como vice-prefeito de Santo Antônio do Descoberto, cidade no interior de Goiás, em 2008. Ele foi substituído pois sua candidatura foi considerada inapta e, consequentemente, indeferida.

    Segundo a Justiça Eleitoral, Veruska disputou as eleições de 2018 pelo PSL (Partido Social Liberal) e recebeu 1.255 votos. Ela alcançou a suplência no cargo de deputada estadual por São Paulo, ainda que sua candidatura tenha contas consideradas “não prestadas” pelo TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral). Em 2016, Veruska se candidatou para tentar um cargo como vereadora em São Paulo pelo PRTB (Partido Renovador Trabalhista Brasileiro), partido do presidenciável em 2018 Levy Fidelix, mas não foi eleita nem conquistou vaga como suplente.

    Em suas redes sociais, Veruska apresenta uma série de postagens apoiando ações do governo Jair Bolsonaro e seus aliados e fazendo críticas ao PT e ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. A “embaixadora da paz” também compartilha conteúdos que criticam os direitos humanos, como o que mostra as mãos da “imprensa” e dos “direitos humanos” calando a boca de um policial.

    Foto: Reprodução/Facebook

    Veruska compartilha textos de Olavo de Carvalho, uma das referências intelectuais do presidente Bolsonaro. Celso Dias também ostenta fotos com Bolsonaro em suas redes sociais, uma delas tirada em Boston, nos Estados Unidos, durante a campanha presidencial, conforme publicou.

    Em junho de 2019, Celso Dias esteve na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) a convite do deputado estadual Coronel Nishikawa (PSL-SP) e explicou a atuação da WPO em conjunto com a ONU. “Solicitei a prisão junto ao tribunal penal internacional do presidente Bashar Al Assad [que governa a Síria, que está em guerra interna desde 2011], por genocídio infantil com testes de armas químicas”, exemplifica, citando que houve apoio do “embaixador no Iraque, Síria e Líbano”, que teria feito translado de refugiados “que se encontravam no Iraque”.

    Ainda na Alesp, Celso disse que a ajuda da ONU foi fundamental neste trabalho. “Difícil foi a verba para levá-los daqueles locais”, relembra. “Na época entramos em contato com Ban Ki-Moon (secretário geral da ONU de 2007 a 2017), passamos o relatório e após meu pronunciamento no Líbano, de que teríamos de fazer esse translado em caráter emergencial”, prossegue, citando que o alerta envolvia a morte de “500 crianças (chegou a 25 mil, segundo levantamento feito posteriormente), a ONU liberou a verba para assistência médica, odontológica e psicológica e de reintegração social”.

    Imagem de campanha em Veruska se associa à imagem de Bolsonaro | Foto: Reprodução

    A outra representante segue defendendo o trabalho feito pela WPO. “No que tange trabalhos sociais, há como comprovar que, desde 2002, socorro pessoas, amparo, protejo e defendo diante da Omissão e inércia do Estado. Se, de fato, o Parlamento Mundial de Segurança e Paz tiver sido retirado, seria bem possível haver má fé”, alega Veruska em explicação à Ponte.

    Reais representantes da ONU

    Desde 1953, a ONU nomeia personalidades mundo afora para ocupar o posto de Embaixadores da Boa Vontade, como explica a organização. A atacante Marta, jogadora da seleção brasileira feminina que já foi seis vezes eleita melhor do mundo, por exemplo, é embaixadora da Boa Vontade do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

    Printi do site do Parlamento Mundial de Segurança e Paz, que saiu do ar posteriormente | Foto: Reprodução

    Também são embaixadores da ONU no Brasil, o ator Mateus Solano e a cantora Wanessa Camargo, que representam a UNAIDS (Programa de combate ao HIV/AIDS), e pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). A ONU ainda nomeou como embaixadores os atores Lázaro Ramos e Renato Aragão, a cantora Daniela Mercury e Mônica, personagem dos quadrinhos de Maurício de Sousa, conforme consta em links da entidade (acesse as listas clicando aqui e os demais embaixadores aqui).

    A Organização das Nações Unidas também reforça à Ponte o papel dos seus embaixadores. “Artistas, ativistas, intelectuais, atletas e cantores estão entre as celebridades que têm dedicado parte do seu tempo e sua imagem perante o público a causas humanitárias internacionais. Muitos o fazem em parceria com órgãos e agências das Nações Unidas. Apesar das diferentes carreiras, os Embaixadores da Boa Vontade possuem algo em comum: a disposição em usar seu tempo e influência para ajudar pessoas em todo o mundo”, afirma a organização em nota.

    A Ponte questionou a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e o deputado estadual Coronel Nishikawa se estavam cientes de que a WPO não possuía vínculos junto à ONU quando convidada para participar de cerimônia no local. No entanto, nem a Assembleia nem o deputado responderam aos questionamentos.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas