Texto permite que qualquer morador de estado com mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes tenha arma em casa, ou seja: todo mundo; para especialista, decreto generaliza e desconsidera particularidades de cada região
O decreto que altera a posse de armas no país, assinado nesta terça-feira (15/1) por Jair Bolsonaro, determina em seu artigo 7º, inciso VI, que “residentes em áreas urbanas com elevados índices de violência, assim consideradas aquelas localizadas em unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública”. Ou seja, todos os brasileiros, já que todos os estados têm índices maiores 10/100 mil.
Cabe lembrar que o atual ministro-chefe da Casa Civil e braço direito de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, figura na lista levantada por entidades de direitos humanos, que compõe a chamada Bancada da Bala, e recebeu R$ 100 mil da Forjas Taurus e CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) na última eleição para o Congresso Nacional.
Para Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, o texto generaliza o que antes era avaliado considerando elementos regionais específicos, dinâmicas sociais e criminais, já que o Brasil é um país de dimensões continentais e há realidade que não são comparáveis.
“O decreto generaliza e não leva em consideração variações que existem dentro dos estados, dentro das cidades. Aqui em São Paulo, por exemplo, a gente tem bairros que são muito violentos e outros que têm índices europeus. E o mais graves é que a generalização é feita com base em um indicador como se isso falasse sobre segurança pública e seus aspectos mais complexos. É um indicador estático e antigo. Se a gente atualizasse isso para o ano de 2018, São Paulo estaria provavelmente fora dessa faixa”, explica. “Esse artigo perverte a ideia da análise de efetiva necessidade e, na prática, todos os estados entram nessa faixa referente a 2016”.
No discurso feito na assinatura do decreto, Bolsonaro ressaltou uma ideia, bastante difundida entre seus apoiadores, que é a de que o Estatuto do Desarmamento havia sido rechaçado pela maioria da população. “Como o povo soberanamente decidiu por ocasião do referendo de 2005, para lhes garantir esse legítimo direito à defesa, eu como presidente vou usar essa arma”, disse, ao se referir a ideia de que na ocasião a população rejeitou o trecho do estatuto que tornava mais restrita as regras para posse de armas. Contudo, a informação é incorreta.
No entanto, o referendo versava sobre a comercialização de armas e munições de acordo com as regras propostas pelo próprio Estatuto do Desarmamento – Lei 10 826 – em vigor desde 2003. “O objeto do referendo não foi a manutenção ou não do estatuto, que já estava em vigor, mas sim a manutenção do comércio de armas a partir dos critérios estabelecidos na legislação já vigente”, explicou Natália Pollachi. Como a maioria optou pelo “não”, o artigo 35 – que proibia comercialização sob qualquer fundamento para civis – foi excluído do Estatuto e a decisão popular foi respeitada na medida em que o comércio permaneceu mantido no país.
Atualmente, já era possível comprar até seis armas, desde que dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei. Desde 2004, mais de 800 mil armas foram vendidas no Brasil, segundo dados do Exército e mais de 220 mil novos registros de arma foram concedidos a cidadãos comuns para defesa pessoal. Os estados onde há mais armas circulando são São Paulo (44.463 ), Rio Grande do Sul (15.553), Minas Gerais (13.420) e Rio de Janeiro (11.876), segundo a Polícia Federal, a partir de dados via LAI (Lei de Acesso à Informação).
“Isso foi respeitado e nos 15 anos de vigência, centenas de civis compraram armas legalmente. Não só a legislação funcionava como ela era responsiva com relação a demanda. Então esse discurso corrente de que era impossível comprar uma arma não é verdade”, sentencia.
A coordenadora de projetos do Sou da Paz também desmistifica a afirmação de que havia um clamor popular pela flexibilização. “A gente ouve: ‘ah, a população toda pediu’, ou então, ‘o voto no Bolsonaro significa o desejo de acessar armas’. Não é verdade. A pesquisa de opinião mais recente [Datafolha, de 14 de janeiro] indicou que 61% da população não quer a flexibilização da posse de arma. É de fato argumentar contra os dados”.
Para ela, o que a população quer é mais segurança e é aí que esses conceitos se confundem. “O que a gente vê e tem sido objeto de nossas campanhas é que a população quer segurança pública e isso é investimento do Estado nas polícias, na investigação, na Polícia Federal, nas atuações conjuntas com receita federal, com perseguição de crimes financeiros para quebrar as pernas do crime organizado. Ações de inteligência combinadas com ação de repressão, um penitenciário que funcione, que não seja escola do crime. Não é largar as pessoas com uma arma na mão”, afirma Natália Pollachi.
Uma campanha lançada ainda no ano passado pelo Sou da Paz e que agora ganha mais força traz a hashtag #NãoTáTudoBem e compara valores de investimento em segurança, como por exemplo, o salário de policiais militares, em torno de R$ 3 mil, com o valor de mercado de um pistola – entre R$ 4 mil e R$ 10 mil, justamente para trazer a tona essa provocação.
Na mesma linha, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou uma nota lamentando o decreto. “Trata-se de uma aposta na violência, uma vez que existem evidências bastantes robustas dentro do debate sobre segurança pública que, quanto mais armais, mais crimes. Inicialmente, lamentamos que o presidente Jair Bolsonaro tenha optado por evitar a discussão do assunto, no Congresso e na sociedade, quando decidiu realizar a alteração por decreto. A falta de contraditório sempre empobrece o debate”, diz a nota, que traz também números sobre circulação de armas e critica os mecanismos de controle: “94,9% das armas apreendidas em 2017 não foram cadastradas no sistema da Polícia Federal (SINARM) e 13.782 armas legais foram perdidas, extraviadas ou roubadas, o que equivale a 11,5% das armas apreendidas pelas polícias no mesmo ano. É como se um mês de trabalho das polícias tivesse se perdido”.
Porte velado
Além de apontar que já havia previsão legal para civis terem armas no Brasil, Natália Pollachi, coordenador de projetos do Sou da Paz, chama atenção para outro quadro grave que vinha se arrastando e tende a piorar: a flexibilização de permissão concedida pelo Exército à civis, os enquadrados nos CACs (Colecionador, atirador ou caçador) e o artigo 2º do decreto que automatiza as permissões anteriores. “Não só os registros novos que vão durar dez anos, você pega os registros antigos que inclusive estão expirados e simplesmente renova sem checar se os requisitos de antecedentes criminais, de atestado psicológico, qualquer dessas outras coisas continuam vigentes. Vai vir de baciada. Até mesmo a renovação passar de 5 para 10 anos é bem preocupante. O laudo de aptidão psicológica e técnica não tem validade de 10 anos”, critica.
Sobre o chamado ‘porte velado’, Natália cita uma portaria do Exército, que permite que atiradores esportivos carreguem a arma da sua casa até o clube ou stand de tiro. Isso alterou significativamente os registros e de 2015 para 2016 houve aumento de mais de 200% nos registros feitos via Exército. Em 2017, foram mais de 57 mil registros, o maior número desde 2012, segundo dados fornecidos pelo Exército via LAI ao Sou da Paz. “É um porte velado. Como fiscalizar se a pessoa está fazendo mesmo esse trajeto? Abriu-se como uma janela, um atalho para conseguir o acesso a armas pelo Exército e isso é grave. Principalmente nos últimos tempos que o Exército tem se envolvido tanto na segurança pública. É muito comum ouvir: basta se filiar a um clube de tiro que consegue a arma”, conta.
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