Membro dos Policiais Antifascismo, Alexandre Felix aponta que eleição do capitão reformado demonstra ausência de debate qualificado e exclusão dos policiais
Caso você trabalhasse na emergência de um hospital e chegassem duas vítimas, um traficante em estado grave ou um policial levemente ferido, quem você salvaria primeiro? Essa foi a enquete de uma das edições do programa “Encontro com Fátima Bernardes”, da Rede Globo, em novembro de 2016. O tema, baseado na estreia do filme “Sob Pressão” gerou uma série de críticas.
“Eu comecei a ver nas redes sociais promotores de justiça, juízes, políticos, artistas apareceram com uma plaquinha #EuEscolhoOPolicial. E eu fiquei pensando: ‘Cara, se eles escolhem o policial, por que eles não pagam um salário melhor para mim?’. ‘Por que eles não entendem que eu sou um trabalhador?’ Eu sou policial. ‘Eu também posso escolher?’ Porque se eu pudesse escolher, a minha vida e a do traficante são vidas, ambas importam, e a minha não pode importar só na hora que eu entro num pronto-socorro baleado. Se você se importa com a minha vida, então venha me ajudar na minha luta para construir uma situação melhor”, aponta.
O questionamento de Alexandre Felix Campos, investigador há 20 anos da Polícia Civil de São Paulo, fez com que ele se aproximasse de outros policiais. A contatação é que, no debate da elaboração de políticas de segurança pública, dois setores nunca estavam presentes: a esquerda e a própria base dos policiais. “O movimento surge nas redes sociais inicialmente como ‘Policiais Progressistas’, só que a gente percebeu que dizer ser ‘progressista’ ou ‘pela democracia’ era muito pouco. Ou nós tínhamos a coragem de expor, cortar na própria carne, demonstrar que a polícia é uma expressão do fascismo ou nós não vamos conseguir mudar a estrutura de dentro das instituições”, explica.
O movimento Policiais Antifascismo nasce em 2016 e engloba diversos profissionais da segurança pública: policiais civis, militares, guardas municipais, agentes dos sistemas penitenciário e socioeducativo e bombeiros. Para Alexandre, o distanciamento desses dois setores gerou uma lacuna que contribuiu para a eleição de diversos militares e com a promessa de que, a partir da posse de Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, haverá uma escalada autoritária no país.
“Hoje nós estamos caminhando para o fim da nova república e entrando em tempos sombrios com a posse de Bolsonaro, Doria [como governador de São Paulo], Witzel [governador eleito do Rio de Janeiro]. Esses caras se elegeram porque a esquerda se recusou a ver. Durante todo este ano, eu estive com movimentos sociais, com diversas candidaturas, algumas vitoriosas, que se recusaram a entender que a pauta da segurança pública é o que daria o tom das eleições e sem o debate de forma adequada do tema nenhuma outra pauta está garantida para 2019”, critica.
Alexandre participou de uma roda de conversa organizada pelo coletivo Santa Cecilia Sem Medo, que atua na região central da capital paulista, na quinta-feira (22/11), sobre o tema “Segurança Pública e Ameaça Autoritária no Brasil”. “Não é coincidência que nós temos hoje um presidente que diz que policial que não mata não é policial; que no primeiro dia ele vai dar carta branca pro policial matar; o governador de São Paulo reproduz o mesmo discurso de que no primeiro dia o policial vai atirar para matar; os governadores eleitos do Rio, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, a mesma coisa”, declarou durante a roda.
“Nós só tivemos uma pessoa que se propôs a fazer isso, que era Marielle [Franco, vereadora carioca assassinada em março de 2018] durante o mandato do Marcelo Freixo [deputado estadual do RJ]. Foi a única expressão da esquerda no Brasil que se aproximou do tema da segurança pública, ousou discutir segurança pública e trouxe o policial para o debate”, completa.
O investigador também destaca que, apesar de partidos como PSOL e PT terem aumentado suas bancadas nas casas legislativas, há uma grande expressividade de policiais e militares também nesses espaços. “Nós tivemos conquistas importantes como a eleição da primeira mulher trans na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Só que a esquerda está festejando demais. Hoje temos 62 pessoas eleitas ligadas à segurança pública, numa assembleia que vai estar tomada por policiais de extrema direita que vão pautar o tema do primeiro ao último dia de legislatura e que não vão dar espaço para candidaturas como a da Erica Malunguinho. Os partidos progressistas estão se preocupando com isso? Porque não estou vendo se qualificarem para isso”, contesta.
Falta de diálogo
De acordo com Alexandre, a principal dificuldade que o movimento Policiais Antifacismo enfrenta é desconstruir a imagem de que o policial é um inimigo das pessoas. “Nós fomos muito aplaudidos e aceitos quando trouxemos as pautas da legalização das drogas e da desmilitarização das polícias, mas quando colocamos que o ponto essencial para caminhar essas questões é discutir com o policial a sua condição de trabalho, aí tivemos resistência. Para que o policial entenda as pautas dos movimentos de trabalhadores, ele também deve ser reconhecido como um. Quantos de nós está disposto a mostrar quanto sofre um policial militar na sua formação e no seu cotidiano de trabalho, sendo que o policial militar não pode se expressar nem se sindicalizar e exigir direitos porque é proibido por lei?”, aponta.
Outro ponto que o investigador enfatiza que não é discutido é a origem dos policiais, especialmente os soldados que são praças. “Nós constatamos no nosso dia a dia que sempre falamos de guerra às drogas, é o policial prendendo o neguinho da favela porque o grande empresário do tráfico nunca é afetado. É uma construção de uma ideia de combate para justificar o genocídio e o encarceramento em massa da população negra e periférica. A constatação mais difícil de fazer é que o cara que está fardado também é um neguinho da favela. Não existe uma guerra e não existem dois lados morrendo numa guerra. É um lado só”.
Para reverter esse cenário, o policial aponta que é necessário aproximar a população, os mandatos, os movimentos sociais sobre a questão e qualificar as pautas tanto nos espaços de poder quanto nas ruas. E, inclusive, adotar pautas que envolvam os policiais. “A esquerda precisa assumir a responsabilidade pela transformação e parar de pedir desculpas. Se a Erica Malunguinho, por exemplo, propor a carreira única para os policiais, a Bancada da Bala vai votar contra porque ela quer a manutenção do sistema como está, como um sistema de castas onde são privilegiados em que quem está no comando entra por uma via lateral e nunca cumpriu ordens”, sustenta.
Segundo o policial antifacismo, esta estrategia faria com que os eleitores questionassem as ações da Bancada da Bala. “Quando os deputados da bancada votarem contra, isso vai estar exposto. Eu vou poder conversar com o policial e dizer: “olha, seu candidato votou contra, a minha não, ela propôs”. É o que precisa ser feito para chegar no policial para ele pensar em colocar na próxima legislatura mais gente que vai fazer passar. E aí, na rua, o policial vai entender que a esquerda não está lá apenas para gritar “Não acabou tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”. O policial da rua só pega o final da frase, não entende o que está por trás e acha que esse grito significa o fim dele, sendo que ele também quer a desmilitarização”, analisa.
Alexandre aponta o motivo do PM de rua não entender as críticas feitas à corporação. “Esse policial não consegue ter a noção real porque de um lado tem um cara que coloca ele para trabalhar 24h por dia, o cara não pode ter um arranhãzinho na farda, tem que estar com a barba bem feita. Mas desse mesmo lado, tem gente dizendo “você é um herói, você foi escolhido para isso, isso não é profissão, isso é uma vocação divina”. A gente precisa entender que o cara que mora do meu lado em Guaianazes [periferia da zona leste de SP] é o mesmo cara que pode ir pro tráfico ou vai pra PM”, diz.
“A gente tem que tomar cuidado em como lidamos na rua porque um grito desse que se fez nos últimos 20 anos pode levar você para cadeia. “Não acabou tem que acabar, quero o fim da polícia militar” não construiu nada e agora vai se tornar um totem de perigo porque a repressão vai aumentar. Nós já somos perdedores e a pauta da desmilitarização não vai passar em dois anos, mas a gente precisa construir isso”, sustenta.