Propostas de lei anunciadas pelo governador do RS e corroboradas por Tarcísio, Castro, Zema e demais chefes do Executivo do Sul e Sudeste dão mais poder aos policiais e questionam decisões do STF e do STJ. “Isso é grave”, diz especialista
O 10º encontro do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) terminou com a leitura da Carta de Porto Alegre. Ali foram assinalados compromissos assumidos pelos governadores (que vão ideologicamente da direita à extrema-direita) dos sete estados que compõem as duas regiões. Entre eles, propostas para segurança pública. Tarcísio de Freitas (Republicanos), Cláudio Castro (PL), Eduardo Leite (PSDB) e companhia querem mexer nas legislações que tratam das abordagens policiais, das audiências de custódia e do monitoramento eletrônico. Para especialistas ouvidos pela Ponte, as propostas são como uma “bomba encarceradora”.
No X (antigo Twitter), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, compartilhou uma minuta com os quatro projetos encabeçados pelo Cosud. Leite informou que o documento foi entregue aos presidentes da Câmara e do Senado e também ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. “São propostas com um potencial de auxiliar muito no enfrentamento à criminalidade e melhorar a segurança para todos”, escreveu.
Para os governadores, as audiências de custódia soltam presos demais. Quem já foi detido em outras ocasiões, para os gestores, deve seguir atrás das grades. Outra proposta, sobre as abordagens, sugere dar mais poder aos policiais. Comportamento, tempo, lugar e outras quaisquer coisas que o agente quiser podem justificar um enquadro. É proposto também que, sem autorização judicial, forças policiais acessem dados de monitoramento eletrônico.
A fórmula apresentada está batida, desgastada e não traz novidade, diz Nathalie Drummond, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz. Em ano eleitoral, argumenta Vivian Peres, coordenadora de programas do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), além das obras na rua, pipocam também discursos alinhados ao populismo penal, como neste caso. Os projetos também beiram a inconstitucionalidade, diz Felippe Angeli, coordenador de advocacy do JUSTA. “Você está querendo afastar com uma lei o que diz a Constituição”, afirma.
Para os especialistas, os projetos mergulham na discussão sobre segurança pública pelo viés punitivista. A busca é por dividendos políticos, dizem. Os PLs também trazem oposição a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cortes que chegam a ser citadas em justificativas das proposições.
“São todos projetos contrários ao Judiciário. Do ataque ao zelo, à interpretação que o Judiciário está dando à Constituição. Isso é muito grave”, diz Angeli. “Todas as medidas apresentadas neste projeto são uma ‘bomba encarceradora’”, acrescenta.
O que dizem os PLs?
Propondo mudanças no Código de Processo Penal e no Código Penal, os governadores trazem mais circunstâncias para a manutenção de prisões que cheguem à audiências de custódia, ao passo que tornam menos claros os motivos que justificam abordagens policiais.
No caso das audiências de custódia, a proposta é criar circunstância para a justiça manter em prisão preventiva pessoas que já cometeram infrações ou que são respondem por crimes com violência. O texto é semelhante à proposta do PL 10/2024 de Sérgio Moro (União Brasil), mas vai além: dá margem para que denúncias de tortura praticadas por agentes públicos sejam transformadas em processos por calúnia.
Na prática, diz Vivian Peres do IDDD, o projeto ataca uma das principais questões da audiência de custódia, o combate à tortura. “A quem interessa que não exista ali um controle da atividade policial? Ele é um servidor público que precisa prestar o serviço na medida daquilo que está na legalidade”, diz.
Quanto às abordagens, os governadores falam em criar parâmetros mais objetivos para evitar que decisões judiciais invalidem a busca pessoal baseada em “atitude suspeita”. Para os especialistas, o projeto torna a situação ainda mais problemática.
Comportamento, tempo, lugar, “ou outras que despertem no policial uma percepção de ameaça às pessoas” podem justificar a abordagem. Felippe Angeli diz que o PL faz com que só a palavra do policial tenha validade. Nenhuma instituição no mundo, argumenta, poderia ter esse tipo de poder. No caso da polícia brasileira, a situação é ainda mais grave. “É uma polícia que, por exemplo, agora na Operação Verão, tem altos índices de letalidade. Uma polícia cujo chefe é o planejador do assassinato da Marielle e do Anderson”, afirma.
Vivian Peres diz que o PL amplia a subjetividade. O texto dá expressamente poder para o policial escolher quem serão as pessoas abordadas. “E nós sabemos que serão as pessoas abordadas”, diz.
Felippe Angeli também critica a permissividade dada ao monitoramento eletrônico. Ele diz que o PL abre brechas para que, por meio de decreto, seja possível que essa autorização passe a englobar outros equipamentos que não só tornozeleiras eletrônicas.
O especialista aponta ainda que faltam aos projetos projeções sobre gastos. Ele lembra que manter uma pessoa presa gera custos (de vaga, alimentação, transporte, por exemplo). “Nada disso é abordado”, fala.
“Quanto à solução que os governadores do consórcio acharam para a segurança pública brasileira, quanto custa? Quanto a gente vai colocar na cadeia? Quanto isso vai custar? Quantas vagas vão precisar construir?”, diz Angeli.
Legislativo em foco
O legislativo tem sido protagonista em pautas com impacto na segurança pública. Para Nathalie Drummond, a “fauna” partidária e os projetos terem partido de governadores do Sul e Sudeste favorecem que as propostas tenham simpatia do legislativo. Contudo, por ser um ano eleitoral, pode haver demora no andamento dos projetos.
No segundo semestre deste ano, explica Nathalie, os parlamentares devem fazer semanas de esforço concentrado. Nestes períodos são feitas as reuniões e demais atividades parlamentares. Não trabalham durante o mês todo, o que gera impacto no andamento das comissões, que acabam não acontecendo ou ocorrendo em fechamentos especiais.
Se apresentados agora, os projetos precisam passar por pelo menos duas comissões antes de serem votadas em plenário. O documento divulgado por Eduardo Leite não traz números dos PLs, o que não permite saber o status deles no legislativo.
O perigo é a inércia do presidente Lula (PT). Enquanto avança esse tipo de projeto no legislativo, o governo federal está acovardado, diz Angeli. “Ele caiu nessa armadilha de ser duro contra o crime, desse tipo de fala e de narrativa que outros grupos conseguem muito bem usar.”
O que diz o Cosud
A Ponte procurou o Cosud para comentar os pontos trazidos pelos especialistas e também solicitou entrevista com os governadores ou porta-voz do consórcio. Não houve retorno.