Câmara de Representantes aprova sem modificações lei que regulamenta ações afirmativas para pessoas trans votada pelo Senado uruguaio; texto segue para sanção do Presidente Tabaré Vázquez
Foram cerca de 10 horas de debate. Pedidos de modificações, considerações sobre pontos polêmicos, desacordos respeitosos, comentários e contestações regimentais. E, depois de tanta discussão, o 1º vice-presidente da Câmara de Representantes – como é chamada a Câmara de Deputados no Uruguai -, deputado Sebastián “Tati” Sabini (Partido Frente Amplio) anunciou por volta da 1h da manhã desta sexta-feira (19/10): “está aprovado o projeto, o que se comunicará ao Senado…”. É interrompido pelo fortes gritos e aplausos dos militantes que, noite adentro, portando seus pañuelos e bandeiras amarelas, não abandonaram as galerias do parlamento, sob os gritos de “Lei Trans já!”. A comemoração representa, de fato, a maioria da Câmara: 62 dos 88 deputados que, contando com apoio até mesmo da oposição, referendou o texto da lei, que já havia sido aprovado pelo Senado na última terça-feira (16/10).
#EsLey ? felicitaciones a todos los colectivos que dieron esta batalla. A mi partido el @Frente_Amplio y a algunos de la oposición que supieron estar a la altura histórica de reconocer a los más vulnerados! #leytransya pic.twitter.com/3BcFfcZfL8
— Tati Sabini (@tatisabini) 19 de outubro de 2018
“#ÉLei <3 parabéns a todos os coletivos que se entregaram a essa batalha. Ao meu partido o @Frente_Amplio e a alguns da oposição que souberam estar à altura histórica de reconhecer os mais vulneráveis” tuitou o Dep. Tati Sabini, que presidiu a sessão histórica na Câmara de Deputados uruguaia
Segundo nota emitida pela própria Câmara de Deputados após o término da votação, o projeto aprovado visa estabelecer uma série de ações que têm por objetivo reverter os mecanismos de discriminação e estigmatização e garantir às pessoas trans o pleno exercício de seus direitos. A iniciativa contempla também um regime reparatório para pessoas nascidas antes de dezembro de 1975 e que, por causas relacionadas à identidade de gênero, tenham sido vítimas de violência institucional ou tenham sida privadas de sua liberdade devido à Ditadura Militar no país, vigente entre 1973 e 1985.
O debate ganhou notoriedade na opinião pública uruguaia após a publicação, em 2016, do primeiro senso trans do país. A pesquisa, encabeçada pelo Ministério de Desenvolvimento Social do Uruguai (Mides), expôs os dados da vulnerabilidade dessa população: 67,5% tem ou teve que se prostituir para gerar renda; 25% teve de abandonar o lar antes dos 18 anos devido à não aceitação da família; 87,9% não termina a UTU (escola da preparação técnica no Uruguai) ou a secundária (equivalente ao Ensino Médio no Brasil); e enquanto a expectativa de vida de um uruguaio cisgênero é de 77 anos, a de um(a) trans é de apenas 35.
A deputada Bettiana Díaz, do Frente Amplio, afirmou, em discurso no plenário, que a notoriedade do tema se deu pelo elemento polêmico intrínseco ao tema. “Nos faz questionar estruturas hegemônicas do binarismo, fazem tremer algumas estruturas, porque o que temos feito [com as pessoas trans] é patologizar. E aí seguimos gerando estigmas, exclusão, preconceitos. Escutamos aqui, mais de uma vez, que essa lei cria privilégios ou que consolida a discriminação. Onde está o privilégio de ter expectativa de vida igual a dos países mais pobres do mundo? Ou a expectativa de vida que tinha o mundo vários séculos atrás”, declarou. Bettiana discorreu sobre o problema da prostituição como meio de vida. “Como isso pode ser um privilégio? A necessidade de se poder garantir direitos se expressou em outros direitos que foram garantidos: matrimônio igualitário, o acesso à interrupção voluntária da gravidez, o reconhecimento da jornada de trabalho para os peões ruais, para as empregadas domésticas… isso não estava escrito, mas tivemos que escrever para que se reconhecesse”, provocou.
Rodrigo Gañí, do Partido Nacional, que votou contra o projeto por considerar uma má solução para a questãi trans, discorda da forma impositiva com que o texto foi colocado em votação. “A forma como se buscou impor esse projeto em menos de 48h é porque realmente não se busca a melhor solução. Esse projeto tem ‘caranguejos debaixo da pedra’ e se chamam ideologia de gênero. Querem impor debaixo desse projeto, usando e manipulando determinadas pessoas que têm um sofrimento, ideologias que são muito mais profundas, impor visões individualistas das pessoas, destruir a família sob o eufemismo de ‘desconstrução'”, disse em seu discurso.
Representante do Partido Colorado, Ope Pasquet declarou que o Estado deve lutar e preservar os direitos das liberdades individuais. “Eu não acredito na existência de uma ordem natural. É humana, é natural e é histórica. Ela vai mudando com as épocas. Em outros tempos, a ordem natural dizia que havia amos e escravos e hoje isso nos parece absurdo, mas era assim. Em outras épocas, podia ser impensável a discordância entre o sexo biológico e a identidade de gênero e se considerar algo pecaminoso, culpável ou repreensível. Hoje, parece que estamos todos, por uma via ou por outra, chegando à conclusão de que não é assim, de que não deve ser assim”, declarou durante discurso na Câmara.
O projeto agora segue para sanção do presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez.