Lei aprovada pela Câmara de Porto Alegre (RS) diz que vereadores não podem se sentar durante execução do hino do estado. Para o parlamentar Matheus Gomes (PSOL), regra é “ato autoritário”
“Tem preto no Sul” e, em Porto Alegre, capital gaúcha, uma bancada de vereadores negros tem sido alvo constante de ataques desde que assumiu. Na última semana, os cinco parlamentares foram impedidos de protestar contra o Hino do Rio Grande do Sul, considerado racista. Além disso, os vereadores da bancada negra receberam ameaças de morte pela internet.
A bancada negra da Câmara de Vereadores de Porto Alegre é formada por Bruna Rodrigues (PCdoB), Daiana Santos (PCdoB), Karen Santos (PSOL), Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSOL).
Os fatos não são isolados. Desde que assumiram, os vereadores têm passado por situações racistas e intolerantes que vão de afirmações de que eles “não têm tradição política, nem experiência e nem trabalho formal”, até a invasão de grupos antivacina e neonazistas na Câmara, com um dos envolvidos apresentando cartaz com uma suástica e uma mulher dizendo a uma das vereadoras negras que ela era sua “empregada”.
Aos novos fatos que se somam à rotina dos vereadores de reafirmar sua existência e trabalho na casa parlamentar, está um ato aprovado pela Mesa Diretora da Câmara Municipal de Porto Alegre que, na prática, proíbe o grupo de seguir protestando contra o racismo citado no hino gaúcho, que traz em um dos seus trechos:
“Mas não basta pra ser livre / Ser forte, aguerrido e bravo / Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo”
Com 22 votos favoráveis e 11 contrários, o projeto de resolução 002/21, de autoria da vereadora Mônica Leal (PP), acrescentou ao regimento interno da casa legislativa o dever dos vereadores de “postar-se de pé e tomar atitude de respeito durante a execução dos hinos brasileiros e rio-grandense”. Segundo a resolução, caso não seja cumprido o regimento, os vereadores estão sujeitos às medidas disciplinares cabíveis
A justificativa da proposta é de que os hinos “são símbolos que representam a nação brasileira, o Estado do Rio Grande do Sul, a pátria e a terra que amamos e respeitamos, expressando o espírito cívico dos brasileiros. Nesse sentido, impõe-se que todas as pessoas, especialmente os parlamentares, como representantes da população que são, devem guardar posição de respeito durante a sua execução”.
O protesto de continuar sentado durante a execução do hino começou no início da década por alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul nas formaturas. Desde 2018, segundo a universidade, o hino não é mais tocado,”em função de a execução do hino estadual não ser obrigatória em instituições federais”.
Para o defensor público federal e mestre em direito público, César Gomes, a vereadora Mônica Leal, ao justificar a proposta, desconhece o contexto histórico do protesto. “A nossa Constituição traz em um dos seus fundamentos o pluralismo político e, quando trago isso não falo somente da pluralidade de perspectivas partidárias e ideológicas, mas falo do Direito Fundamental à Diferença. E, enquanto a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai no sentido de reconhecer o colonialismo e o fim do comércio transatlântico de pessoas escravizadas negras, como um viés histórico que perpetua o racismo contemporâneo, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprova um regulamento totalmente contrário e avesso a um debate totalmente contemporâneo relacionado ao tema”, destacou.
Segundo Gomes, as questões simbólicas merecem debate e o que está acontecendo por parte da Câmara de Vereadores é uma tentativa de silenciamento. “O silenciamento não é só não se deixar falar, mas também esvaziar a fala daquele grupo. Se estão promovendo uma tentativa de silenciamento de um grupo não-hegemônico que se sente aviltado, a Câmara descumpre o papel democrático da pluralidade e coloca em xeque um símbolo que, para a bancada, representa uma manifestação clara de racismo. É preciso de um esforço efetivo em relação a superação do racismo e isso inclui sim discutir símbolos que, em uma certa época, representaram uma concepção hegemônica de mundo, mas que agora se encontram superadas, obsoletas e eivadas de preconceitos contra grupos historicamente invisibilizados”, conclui.
Segundo Laura Sito, o fato de ter a primeira bancada negra na Câmara traz tensões diferentes ao ambiente. “Eu fui vereadora suplente em outra legislatura e tem sido um desafio. De fato, trouxemos esse recorte transversal em todos os debates como acesso à cidade, Plano Diretor, orçamento municipal e temos conseguido transpor a questão racial de maneira qualificada ao longo deste ano. Mas tem sido bastante desafiador. Sinto violência que, ainda que tenha sofrido a vida toda, nunca passei por isso em um curto espaço de tempo”, conta.
O vereador Matheus Gomes reforça que a bancada não irá acatar a decisão pois a Câmara é um espaço da política. “A nossa manifestação é política e nós representamos um apelo que o racismo não pode mais ser tradição no nosso estado. Somos mais de 20% da população gaúcha e isso é um ato autoritário que visa interditar o debate e atacar o que já conquistamos. Trazer essa normativa de não protesto é uma concretização do espírito de tutela sobre os corpos negros e reivindicações dos nossos”, diz.
A vereadora Mônica Leal, autora da lei, foi procurada, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
O mito do Rio Grande do Sul branco
Para o professor e historiador Orson Soares, o pensamento eurocêntrico está no cerne do hino e aponta para um Rio Grande do Sul branco. “O hino tende a ser um símbolo na qual as pessoas acabam se identificando com a letra que está sendo cantada. Nesse sentido, a bancada negra faz bem em problematizá-lo, porque é preciso pensar como é o Rio Grande do Sul histórico e não o imaginário. O estado foi uma das maiores praças de mão de obra escravizada do país, a quinta maior no uso de mão de obra cativa, então quer dizer que a presença negra foi e é muito forte e essencial para o desenvolvimento econômico, cultural e civilizatório aqui do Rio Grande do Sul”, explica.
Orson reforça ainda a necessidade de explicar que a população negra foi e é significativa em todo o estado. “Os processos migratórios foram dando uma característica branca ao local, mas a história, raiz e formação rio grandense é indígena, portuguesa e negra e isso não pode ser perdido. Hoje, o trabalho dos historiadores é justamente de desmistificar essa construção do Rio Grande do Sul branco, que foi uma imagem vendida para todo o Brasil, de que aqui é um pedaço da Europa”, disse.
Ameaça de morte
Outro acontecimento da última semana que atacou a bancada negra da Câmara dos Vereadores foi uma ameaça de morte enviada por e-mail a cada um dos vereadores. Além do ataque à integridade física dos parlamentares com o teor racial, o conteúdo do e-mail trouxe ofensas de sexualidade e gênero. No conteúdo, são mencionadas as vereadoras Daiana Santos, Laura Sito e Karen Santos.
Segundo Daiana, o email foi enviado para o endereço eletrônico institucional. “Primeiro eles falam no e-mail da ‘tríplice desgraça’ por eu ser preta de periferia, sapatão e comunista e só por isso merece morrer. Eu me senti completamente enojada olhando aquilo, um conteúdo muito pesado, que optamos não publicar. Mas foi muito duro e triste ver o nível de ódio diante da diversidade e pluralidade que a gente é e que eles não conseguem conceber para além. E falo isso também como mulher LGBT”, explicou.
Para Daiana, as ameaças têm a ver com o trabalho que vem sendo executado pela bancada. “Tem a ver com o trabalho que a gente vem executando e com essa diversidade que agora está presente na Câmara, tem a ver com a pluralidade que temos em um espaço que sempre foi, majoritariamente hetero-cis-normativo, branco e composto por homens. Então fico muito ultrajada e violentada por conta disso, mas também fico pensando que estamos num caminho certo. Do luto à luta. Já perdemos muitos e não é isso que vai me tirar do debate e da luta por uma sociedade mais igual”, disse.
Os vereadores registraram um boletim de ocorrência na Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos e Defraudações do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil e também exigiram da Câmara providências de segurança.
Segundo o presidente da Câmara, vereador Bins Ely (PDT), os agentes de segurança da Casa serão reorientados para que haja mais rigor nos controles de entrada, saída e circulação na Câmara e que os equipamentos de segurança, como câmeras de monitoramento e detector de metais serão vistoriados para que seja mantido o pleno funcionamento, assim como atenção especial nas identificações das pessoas. “De nossa parte, repudiamos qualquer insinuação ou manifestação de violência, independente de quem seja, e já estamos tomando todas as providências e medidas para a manutenção da segurança de todos que trabalham ou vêm até a Casa do Povo”, ressaltou o presidente.