Para advogados antirracistas, ações de bolsonaristas como Zambelli e Roberto Jefferson revelam ‘o privilégio branco de poder pegar uma arma e sair atirando nas pessoas pela rua’
A imagem de um grupo de pessoas brancas armadas, que chegaram a disparar um tiro, correndo à luz do dia pelas ruas do Jardins, bairro rico da cidade de São Paulo, atrás de um homem negro desarmado, revoltou a advogada e feminista negra Dina Alves. “Essa imagem é um retrato do racismo estrutural e sistêmico que existe no Brasil”, afirmou à Ponte.
A indignação de Dina, que é pesquisadora visitante da Universidade de Indiana, EUA, e autora da pesquisa “Rés Negras, juízes brancos”, aumentou ainda mais quando viu como a maior parte dos meios comunicação ignorou a questão racial ao contar o episódio em que a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), 42 anos, e um de seus seguranças perseguiram, com armas em punho, o jornalista negro Luan Araújo, 29, na tarde deste sábado (29/10). “A mídia invisibilizou o racismo. A deputada admitiu que cometeu crime eleitoral, mas é o que menos importa. Carla Zambelli cometeu crime de racismo e deve responder por esse crime também”, aponta.
Luan relatou a jornalistas que, na tarde de ontem, voltava de um chá de bebê quando viu a deputada e seus apoiadores pedindo votos para o candidato bolsonarista ao governo paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos). A deputada afirma que estava almoçando com o filho de 14 anos quando foi abordada por Luan. Zambelli e o jornalista discutiram. “Amanhã é Lula, papai”, afirmou o jornalista negro durante o bate-boca, num vídeo gravado pela deputada, acrescentando: “Vocês vão voltar para o bueiro de onde não deveriam ter saído, seus filhos da puta”.
Um outro vídeo mostra Luan se afastando e dizendo “te amo, espanhola”, numa referência ao boato, mencionado pela deputada Joice Hasselmann (PSDB-SP), de que Carla teria trabalhado como garota de programa na Espanha. Neste momento, é possível ver que a deputada tropeça em si mesma e cai no chão, enquanto Luan se afasta. Em seguida, o jovem negro é perseguido pelo grupo de brancos, que saca as armas. Um dos brancos, que atuaria como segurança da deputada e seria policial militar, atira.
Em outro vídeo, a deputada aparece encurralando Luan, com a arma na mão, dentro de um bar na esquina da Alameda Lorena com Rua Capitão Pinto Ferreira, e ordenando que ele pedisse desculpas. “Ela tentou obrigar o jovem a pedir desculpas, numa condição de subordinação racial que nós sabemos que é o lugar que as elites brasileiras querem que nós estejamos historicamente”, denuncia Dina.
No 78º DP (Jardins), a Polícia Civil prendeu o segurança de Carla, o PM Valdecir Silva de Lima Dias, 46 anos, por ter atirado, mas ele foi liberado após pagar uma fiança no valor de um salário mínimo (R$ 1.212). O caso foi registrado como disparo de arma de fogo, injúria, ameaça e lesão corporal, sem menção a crime racial. Em vídeo postado no seu Instagram, Zambelli disse que havia sido empurrada por Luan (o que as imagens não mostram): “Me empurraram no chão, um homem negro. Eles usaram um negro para vir em cima de mim”.
A deputada foi liberada na delegacia, embora tenha admitido, em entrevista, que havia desrespeitado uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que proíbe o transporte de armas por CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador) 24 horas antes da eleição. Não está claro, contudo, se ela violou mesmo essa determinação, porque, segundo esta reportagem do G1, Zambelli não tem registro de arma como CAC, mas como deputada federal — os parlamentares podem ter porte de arma autorizado pelo ministro da Justiça. Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que a deputada “possui porte de arma e apresentou a documentação” e que não cometeu crime eleitoral.
Dina Alves relaciona a postura de Zambelli com a de outro bolsonarista, o ex-deputado federal Roberto Jefferson, ex-presidente do PTB e aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL), que atirou duas granadas e disparou mais de 20 tiros de fuzil contra policiais federais que buscavam prendê-lo no último dia 23, e com a campanha de Tarcísio, que deixou um homem negro morto durante um ato de campanha na favela de Paraisópolis, com indícios de execução, em 17 de outubro. Para a advogada, os três casos têm algo em comum: “mostram o privilégio branco de poder pegar uma arma e sair atirando no meio da rua”.
“Luan representa tantos jovens negros brasileiros que morrem em circunstâncias semelhantes, em um país onde os negros são 84% dos mortos pela polícia”, afirma. Tanto para Zambelli como para os policiais que matam, “o uso da força se destina à manutenção de privilégios”.
Outro advogado negro ouvido pela Ponte, Flávio Campos, que é ativista do movimento negro e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), aponta racismo declaração da deputada de que Luan teria sido “um negro usado” contra ele, como se fosse um objeto. “Na visão dela, ele seria um objeto, não uma pessoa ali fazendo uma discussão política, seria um mandatário ou representante de um grupo de esquerda”, afirma.
Essa visão, segundo Campos, reflete o modo de ver da extrema-direita bolsonarista, que costuma fazer uso da imagem de pessoas negras, sem voz nem poder real, em suas estratégias políticas. “A extrema-direita usa pessoas negras, como Fernando Holiday ou Helio Bolsonaro, não como parte do seu grupo, mas para usar o recorte de raça, o lugar de fala, para justificar uma tese de conspiração que apaga o seu racismo.”
Outro lado
Procurada pela Ponte, as assessorias da deputada Carla Zambelli e da Secretaria da Segurança Pública não se manifestaram até o momento.