Catador é preso em casa por roubo de celular que afirma ter encontrado na rua

    Imagens mostram que, minutos antes do crime ocorrido dentro de um ônibus, Kaique Alves da Silva estava voltando a pé para a casa com a família

    Kaique foi preso dentro de casa enquanto dormia com a família | Foto: Arquivo pessoal

    Era dia 19 de julho, um domingo comum para o catador de recicláveis Kaique Alves da Silva, 27 anos. Ele passou a tarde na casa de sua mãe Sheila Maria Alves Juca, 52 anos, com a esposa Nayara Aparecida Borges, 22 anos, os dois filhos, de 3 e 5 anos, e o sobrinho.

    Voltou para casa, um barraco na Ocupação do Jardim Corisco, periferia da zona norte da cidade de São Paulo, e saiu novamente por volta das 21h para levar o sobrinho para casa da cunhada, na mesma região. Voltou às 22h e foi dormir, já que na manhã seguinte levantaria cedo para trabalhar. Quando o relógio marcou 00h50, foi acordado por PMs, informando que ele estava sendo preso pelo roubo de um celular. Desde então, Kaique está no CDP de Belém I, na zona leste da cidade.

    O roubo do celular aconteceu por volta das 22h30 do dia 19, dentro de um ônibus da linha 1705, que faz o trajeto do Terminal Tucuruvi até o bairro São João, ambos na zona norte.

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    O caso foi registrado no 73º DP (Jaçanã) pelo delegado Denis Kiss, que também cuidou do registro de dois casos noticiados recentemente pela Ponte na zona norte de SP: quando PMs abordaram e torturaram um jovem negro e a prisão de Jonathas Silva de Paula Ribeiro, preso por tráfico quando foi pego pela PM com R$ 600 no bolso.

    Segundo a versão dos PMs, eles foram acionados pelo COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar) e seguiram para o endereço fornecido pela vítima. Ao chegar lá, pediram para a vítima ligar no celular, que tocou e eles puderam localizar o aparelho com Kaique, que estava na porta do seu barraco.

    No boletim de ocorrência, o delegado aponta que Kaique negou que roubou o celular e contou que encontrou o aparelho no chão. No momento da abordagem, o jovem questionou os policiais sobre o motivo pelo qual estava sendo preso e, como isso causou aglomeração dos vizinhos, os PMs o algemaram.

    Além dos PMs responsáveis pela prisão, o delegado ouviu outros dois PMs que atenderam a ocorrência, Everton Yankee Cavalcante Pereira de Barros e Lucas Rodrigo Moreira da Silva, ambos da 1ª companhia do 43º batalhão da PM paulista, a vítima e uma amiga que estava junto na hora do roubo.

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    Segundo a vítima, um homem entrou no ônibus quando faltavam dois pontos para o final da linha, a ameaçou e roubou seu celular. Ainda segundo ela, o suspeito disse “já era, perdeu”, enfiou a mão no bolso do moletom da vítima e pegou o celular. Ela e a amiga, então, começaram a rastrear o aparelho a acionaram a PM.

    Na delegacia, a vítima e a amiga reconheceram Kaique. “A vítima procedeu a reconhecimento pessoal em sala apropriada e reconheceu com certeza o indiciado Kaique como o autor do delito”, detalhou o delegado no documento.

    A família de Kaique contesta a versão. Nayara Aparecida Borges, esposa de Kaique que também trabalha como catadora, disse que, no momento do roubo, o marido estava com ela, os filhos e o sobrinho. Naquele dia, eles passaram a tarde na casa da mãe de Kaique, a catadora Sheila Maria Alves Juca, 52 anos.

    De lá, foram para casa por volta das 18h. Nayara então fez o jantar da família, após pedir uma panela emprestada para uma vizinha. Por volta das 20h, sua irmã ligou para que eles levassem seu filho para casa. Todos jantaram e o sobrinho foi tomar banho. Saíram por volta das 21h e um pouco depois das 22h já estavam em casa.

    Posteriormente, a família conseguiu um vídeo de um circuito de segurança, na rua Nestor Veras, no Jardim São João, que mostra o momento em que a família passa pelo local, trajeto entre a casa de Kaique e da cunhada, próximo a Estrada da Cachoeira, para deixar o sobrinho na rua 7.

    Às 21h26, as imagens mostram Kaique, Nayara, os dois filhos e o sobrinho indo em direção a casa da cunhada. A volta aconteceu às 22h13. O roubo do qual Kaique é acusado aconteceu às 22h30, o que indica que ele não conseguiria estar no ônibus.

    “Quando viemos embora, minha filha de 5 anos achou um celular jogado no meio da rua”, conta Nayara. “Eu falei para ela parar de mentir, mas ela falou que não tava mentindo. Ela pegou o celular e mostrou pra gente. Eu ainda falei que era um celular que alguém tinha perdido e como a gente faz reciclagem, levaria o celular para perguntar se alguém perdeu”, explica a catadora.

    Sem imaginar o que poderia acontecer, a família foi para casa com o aparelho. Mas pouco antes de 1h do dia 20 de julho, Nayara foi acordada com o celular tocando e os policiais dentro de sua casa, um barraco, como ela explica, de dois cômodos: quarto e cozinha.

    “Meus dois filhos acordaram assustados. Já colocaram a arma na cabeça do meu marido, com uma lanterna. Puxaram o meu marido para fora falando que ele tinha roubado essa mulher, mas não foi ele”, relata Nayara. “A vítima fala que foi roubada dentro de uma lotação, mas meu marido não pega lotação e ficou todo momento comigo”.

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    Sheila ficou sabendo da prisão do filho quando ele já estava na delegacia. A matriarca detalha o momento em que viu a vítima e amiga conversarem com o delegado Denis Kiss. Na sequência, Kiss levou uma por vez até a sala do reconhecimento.

    “Kaique estava sozinho na sala, não tinha mais ninguém com ele”, afirma Sheila. “No dia seguinte, fui atrás de câmeras para provar que meu filho é inocente. Kaique trabalha comigo e com a esposa catando recicláveis. Ele é analfabeto e estava sozinho quando assinou aquele documento na delegacia”, denuncia.

    Quando foi atrás de provas, Sheila encontrou uma testemunha que estava no ônibus e afirmou que a vítima contou, posteriormente, que não tinha certeza no momento do reconhecimento, mas que os policiais pediram para ela confirmar isso.

    A vítima também teria afirmado para essa testemunha que tentou ir na delegacia retirar a queixa, mas ouviu que Kaique havia sido preso em flagrante e que nada mais poderia ser feito. A Ponte procurou a vítima, por WhatsApp, mas ela não quis se manifestar sobre o caso e declarou que tudo o que sabia foi dito na delegacia.

    Para defesa, MP criminalizou Kaique

    Quando solicitou a prisão preventiva de Kaique, a promotora Patrícia Takesaki Miyaji Nariçawa considerou que a “apreensão” do celular, a “prova oral colhida e o reconhecimento” eram suficientes para considerar que havia materialidade e que Kaique seria o autor do crime.

    Além disso, para a promotoria, os antecedentes pesaram contra ele. Kaique foi preso por tráfico em 2011 e por roubo em 2016 e, segundo o MP, “sua liberdade representa um sério risco para a ordem pública”.

    Esse foi o mesmo entendimento da juíza Tania da Silva Amorim Fiuza, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao converter a prisão de Kaique de temporária para preventiva (prisão de caráter provisório usada durante investigação ou antes da sentença em um processo).

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    O advogado Fabio Roberto de Lima Negrão, responsável pela defesa de Kaique, conta que foi chamado pela família ainda na madrugada do dia 20 de julho. Na delegacia, foi informado que o B.O. já estava pronto. “O delegado presente disse que era um caso de roubo e que as vítimas teriam reconhecido o Kaique”, relata.

    A partir daí, disse para a família que montaria a defesa, mas que precisaria de provas para construir isso. Foi quando as imagens das câmeras de segurança chegaram, logo nos primeiros dias após a prisão. “Tinha também as testemunhas que presenciaram. Eu tive acesso a uma delas, que disse que, na verdade, a vítima não foi roubada, mas perdeu o celular e pediu ajuda para esse rapaz”, aponta.

    Carro que a família de Kaique usa para trabalhar | Foto: Arquivo pessoal

    Para o defensor, o grande problema do caso é a forma com que o Ministério Público “enxerga os mais vulneráveis”. “O MP simplesmente ignora toda essa dúvida, acusa o Kaique de ter praticado isso, alega que Kaique não tem residência fixa e que não tem profissão. Já mostrei que ele tem residência fixa e que tem uma profissão, mas, mesmo assim, o MP enxerga ele como ladrão e não verifica os vídeos, não toma nenhum tipo de cuidado”, argumenta.

    O defensor incluiu o vídeo do trajeto no processo, assim como duas testemunhas: a irmã de Nayara, que afirma Kaique esteve em sua casa para levar seu filho, e a vizinha, que confirma o horário que Nayara pediu a panela emprestada e que Kaique negou ter roubado o celular quando foi preso pelos PMs.

    Culpado até que prove sua inocência

    A advogada criminalista Izabella Gomes analisou o processo a pedido da Ponte e apontou que, mesmo com testemunhas e vídeo, as versões de Kaique e das testemunhas foram deixadas de lado.

    “Ignora-se ele, a família, a defesa, é tudo muito desvantajoso. Ele está preso em um contexto de pandemia porque foi encontrado com o celular e acreditou-se na sobrevalorização da palavra da vítima e da palavra dos policiais”, aponta.

    Para a advogada, o Estado não permitiu que Kaique pudesse ser visto como inocente até que se provasse o contrário. “O Estado, na hora de denunciá-lo, não pede provas, simplesmente a vítima falou que foi ele, os policiais o pegaram com o aparelho e isso é o suficiente. Mas isso não deveria ser o suficiente”, aponta.

    “Ele está sendo acusado por um crime de roubo com grave ameaça. Como se deu essa grave ameaça? Somente com o ‘já era, perdeu’? Essa pessoa que se apoderou do aparelho estava com algo que pudesse colocar a vítima em perigo? A ameaçou realmente? ‘Já era, perdeu’ me parece que puxou o aparelho e saiu andando”, analisa.

    Izabella aponta que, assim como Kaique, muitos outros jovens passam por isso. “Isso é um problema sério e extremamente grave que precisa ser revisto no processo penal brasileiro, a forma de condução da investigação”, afirma. Para ela, é preciso garantir o exercício do contraditório e o efetivo direito à defesa. “Em um contexto em que não se ignora a palavra do réu de maneira que a gente faça Justiça e não exista mais injustiça como acontece”, completa.

    Apoie a Ponte!

    O advogado criminalista André Lozano Andrade, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e integrante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), também analisou o processo a pedido da reportagem e destacou a falha no reconhecimento, que, na visão dele, pode ter sido induzido, por não ter seguido o previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal.

    “Me parece que não foi feito com outras pessoas ao lado para evitar um reconhecimento induzido. Me parece que foi colocado somente ele sem outras pessoas semelhantes. Isso por si só invalidaria o reconhecimento”, aponta.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Público e a Polícia Militar e solicitou entrevista com os PMs citados e com o delegado Denis Kiss. Até o momento da publicação, não houve retorno.

    Por e-mail, o Tribunal de Justiça de São Paulo informou que não se posiciona sobre questão jurisdicional. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.

    Também acionamos Ministério Público e aguardamos retorno.

    Matéria atualizada para inclusão do posicionamento do TJ-SP às 12h30 do dia 30/7

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