PL apresentado pelo governo foi aprovado por deputados por unanimidade; além de indenização, será paga pensão para sobreviventes
O governo do Ceará vai indenizar vítimas e familiares da Chacina do Curió. O Projeto de lei 94/2023, que prevê pagamento de até R$ 150 mil e pensão, foi aprovado nesta quarta-feira (11/10) por unanimidade da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). A contrapartida, no entanto, é o fim de processos judiciais contra o estado em relação à responsabilização.
A proposta foi apresentada pelo próprio governo do CEará no dia 22 de setembro e recebeu relatoria do deputado estadual Renato Roseno (PSOL). Com parecer favorável de Roseno, o PL foi aprovado sem adição de emendas.
“Hoje se fez história. O reconhecimento da responsabilidade do estado na Chacina do Curió por via dessa indenização. Na minha trajetória é a primeira vez que vejo isso. Para mim é muito importante. Nada paga a vida de um filho morto por agentes do Estado, nada paga a vida de ninguém. Nada paga a vida e a dor que essas mulheres têm sofrido. Essas mães, sobretudo, eu quero registrar o meu elogio às mães, em especial às mães do Curió, as mães da periferia. Mas, a indenização tem um papel muito importante do ponto de vista jurídico: o Estado assume, na Casa do Povo, na política, portanto ele assume no Parlamento, a sua responsabilidade. Ele não esperou para assumir no Judiciário, ele assumiu aqui por via de uma lei”, disse Renato em plenário.
A Chacina do Curió foi o massacre onde 11 pessoas foram mortas e sete torturadas entre os dias 11 e 12 de novembro de 2015 na região da Grande Messejana, em Fortaleza.
As famílias terão cinco anos para requerer os valores a partir da data de publicação da lei. O recebimento dos valores fica condicionado à aceitação de um termo que dá ao Estado, “plena quitação por débitos decorrentes do evento doloso”.
Conforme prevê o texto, a indenização será paga de três maneiras:
1) R$ 150 mil ao núcleo familiar de vítima falecida ou vítima invalida totalmente;
2) R$ 80 mil para vítima com com redução da capacidade laboral;
3) R$ 30 mil para vítima de abalo psicológico.
No caso das pensões, os valores serão pagos nos seguintes termos:
1) Ao viúvo (a), companheiro e filho: 2/3 do salário mínimo para a família até a data que a vítima completaria 65 anos;
2) Aos filhos, sem viúvos ou companheiros: 2/3 do salário mínimo até a data em que o beneficiário completar 25 anos;
3) Pai/mãe da vítima falecida, sem viúvo(a) ou filhos: 2/3 do salário mínimo até a data em que a vítima completaria 25 anos e, após esse momento, 1/3 do valor até a data em que a vítima faria 65 anos;
4) vítima inválida: 1 salário mínimo de forma vitalícia;
5) vítima com redução de capacidade laboral: 1/3 do salário mínimo até os 65 anos da vítima.
Na mensagem que apresentou o projeto ao legislativo, o governador Elmano de Freitas (PT) condenou a Chacina do Curió e os policiais militares envolvidos.
“Situações como essa são inadmissíveis sob qualquer contexto, ainda mais quando ocasionadas por pessoas incumbidas de zelar pela segurança e proteção do cidadão. O Governo do Ceará não compactua e jamais compactuará com esse tipo de ação, razão pela qual vem empreendendo todos os esforços, através de órgãos competentes, no sentido de punir os responsáveis pelo ocorrido, na forma da lei”, escreveu.
O coletivo Mães do Curió, que mobiliza parentes das vítimas da chacina, escreveu em nota que esse “é um momento histórico para a luta dos direitos humanos no Ceará”. O grupo classificou que a medida acelera o pagamentos e ajuda a pôr fim “à impunidade e ao esquecimento”.
Contudo, o coletivo escreveu que a luta por reparação é maior e passa por outras medidas, como um pedido formal de desculpas, oferecimento de tratamento psicológico às vítimas e familiares e a construção de um memorial. “Dinheiro nenhum vale a vida dos nossos filhos”, disse o texto [leia na íntegra ao final da reportagem].
Para Mara Carneiro, coordenadora-geral do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE), a aprovação do PL cumpre uma promessa feita pelo governador em abril.
Na data, ocorreu uma reunião entre familiares de vítimas da chacina, movimentos sociais e a pasta. Foram apresentadas demandas como, por exemplo, a responsabilização dos envolvidos. “Essa luta por indenizações compõem uma luta muito maior de reparação de memória e justiça”, comenta.
“Isso é histórico no Ceará, nunca tivemos uma situação como essa. Outras indenizações por violência do Estado tiveram que ser feitas por via judicial e depois de longos processos. Esse caso não é só inédito, mas ele é de verdade histórico. Um marco para a luta por memória e justiça não só do Ceará mas do Brasil”, celebra Mara Carneiro.
PMs condenados
Os julgamentos da Chacina do Curió começaram neste ano e seis PMs já foram condenados. O primeiro júri ocorreu em junho e os demais nos meses de agosto e setembro.
Segundo a denúncia do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), a chacina foi motivada por vingança pela morte do soldado Valtemberg Chaves Serpa, 32 anos, assassinado horas antes dos primeiros atos de retaliação. O órgão ofereceu denúncia contra 45 policiais militares, sendo que 44 foram aceitas pela Justiça.
As vítimas mortas são Álef Souza Cavalcante, 17 anos, Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41; Jandson Alexandre de Sousa, 19; Jardel Lima dos Santos, 17; José Gilvan Pinto Barbosa, 41; Marcelo da Silva Mendes, 17; Patrício João Pinho Leite, 16; Pedro Alcântara Barroso, 18; Renayson Girão da Silva, 17; e Valmir Ferreira da Conceição, 37.
Foram condenados pelos crimes os policiais militares Marcus Vinícius Sousa da Costa, Antônio José de Abreu Vidal Filho, Wellington Veras Chagas, Ideraldo Amâncio, José Oliveira do Nascimento e José Wagner Silva de Souza.
Os cinco primeiros receberam penas de mais de 200 anos de prisão por crimes como homicídio e tortura física e psicológica.
Outros 15 foram absolvidos dos crimes, mas o MPCE entrou com recurso para reverter a decisão. Para 2024, outros dois júris estão previstos para julgar os dez réus que ainda restam.
Outro lado
A Ponte procurou a Procuradoria Geral do Ceará para comentar sobre as indenizações. Por e-mail, o órgão confirmou o contato com as famílias e que a estimativa é atender todas as pessoas afetadas pela Chacina do Curió.
Já em relação ao documento que abdica de processo judicial, a PGE afirmou que ele será elaborado em conjunto. “Esse processo será guiado por uma análise detalhada de documentos que comprovem o parentesco e o enquadramento na lei. O objetivo é garantir que todas as exigências legais sejam cumpridas, respeitando os fluxos instituídos pela lei e assegurando que as famílias recebam suas indenizações de forma justa e transparente”, escreveu a PGE-CE via assessoria.
Leia nota das Mães do Curió na íntegra
NOTA DO COLETIVO MÃES DO CURIÓ SOBRE INDENIZAÇÃO APROVADA NA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ EM 11/10/2023
O coletivo Mães e Familiares do Curió, que há oito anos luta por memória e justiça pelas vítimas e sobreviventes da chacina do Curió, no Ceará, vem por meio desta NOTA, dizer que a aprovação do Projeto de Lei que trata da indenização do Caso Curió é um momento histórico para a luta dos direitos humanos no Ceará, por ser a primeira vez em que o Estado reconhece e indeniza as vítimas de violência cometida por seu agentes sem que o pedido seja necessariamente judicializado. Além de acelerar o pagamento da indenizações, isso ajuda a pôr um fim à impunidade e ao esquecimento.
Mas ressaltamos que a luta por reparação e justiça é muito maior que as indenizações! Dinheiro nenhum vale a vida dos nossos filhos! Por isso, chamamos atenção para a Ação Civil Pública de autoria da Defensoria Pública do Estado do Ceará que, dentre seus pedidos, destaca algumas medidas de reparação a serem tomadas pelo poder público. São elas:
1. Um pedido formal de desculpas;
2. A construção de um memorial no Curió;
3. Oferecimento de tratamento psicológico e psiquiátrico para familiares e sobreviventes da chacina;
4. Publicação anual sobre mortes em operações policiais com informação atualizada sobre as investigações seja a vítima civil ou agente de segurança;
5. Que sejam estabelecidos atos normativos para que mortes, torturas ou violência sexual decorrente de intervenção policial seja investigada por órgão independente e diferente da força pública envolvida;
6. Que o Estado estabeleça metas e políticas para reduzir a letalidade e a violência policial, fortaleça a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário – CGD.
Por fim, dizemos que a caminhada até aqui se deu com apoio de movimentos sociais, coletivos e instituições locais, nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos. Trata-se de uma grande rede que fortalece a luta por direitos humanos e justiça no Brasil.
Todas as medidas de responsabilização dos autores, de indenizações e as demais reparações demandada pelas mães é para garantir a memória e justiça pelos nossos filhos, mas também para que não mais aconteçam nas periferias do Brasil.
Para que jamais se esqueça! Para que nunca mais aconteça! Memória e Justiça pelo Curió!
Movimento Mães e Familiares do Curió
Fortaleza, 11 de outubro de 2023