‘Cena de terror’: ação da PM deixa moradores baleados e crianças atropeladas em Paraisópolis

    Uma mulher e um idoso foram baleados dentro de casa e duas crianças foram atingidas por moto de policial em perseguição a dois homens em comunidade da zona sul de São Paulo na segunda-feira (3)

    “As crianças estão traumatizadas”, lamenta a mãe de um garoto de cinco anos que foi atropelado, junto com a outra criança da mesma idade e a prima dele, pela motocicleta de um policial militar quando estava a caminho da escola, na comunidade de Paraisópolis, na zona sul da cidade de São Paulo, na tarde desta segunda-feira (3/4). A ação da PM, que teria perseguido dois suspeitos de roubar celulares montados em uma motocicleta, deixou, além das crianças, outros cinco feridos a tiros.

    Inicialmente, a assessoria da Polícia Militar não havia contabilizado o atropelamento entre as vítimas e apontou que havia se deparado com dois suspeitos roubando pessoas e se iniciou uma perseguição policial que deixou cinco feridos após uma troca de tiros.

    Apenas na tarde desta terça-feira (4/4), a assessoria da PM emitiu uma nova nota dizendo que, após ser alertada pela imprensa, identificou, pela análise da câmera na farda, que “houve o contato não intencional” de um soldado com um garoto que passava próximo e que não havia se dado conta da situação. “A Polícia Militar oferece apoio à família da criança que teve escoriações”, disse.

    A mãe da criança, porém, desmente que lhe foi prestado auxílio pela corporação. “Não foi dada nenhuma assistência”, criticou à reportagem quando o menino foi levado à Assistência Médica Ambulatorial (AMA) de Paraisópolis pela família e que pegou atestado de três dias de repouso por causa das dores no corpo. Um vídeo mostra o garoto com mochila nas costas saindo debaixo da motocicleta do soldado Victor Corradini, do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M). A criança ficou com ferimentos no braço, cotovelo e queixo.

    “O policial se desequilibrou e bateu nas duas crianças e na mulher. Não teve troca de tiro”, relatou uma testemunha. “O policial não chamou ambulância para socorrer as crianças, chamou só mais viatura.”

    Em sequência: portão de moradora baleada, criança de cinco anos que teve ferimentos leves após ser atropelada por moto de PM e bala que a moradora encontrou na sua casa após disparo na comunidade de Paraisópolis | Fotos: arquivo pessoal

    Outra vítima que teve que contar com a ajuda de moradores para ser socorrida foi Monica (nome fictício), 20 anos, ao ter sido baleada na coxa dentro da própria residência. “Eu estava limpando a minha casa quando ouvi uns estrondos muito fortes. Eu me desesperei e fui tentar fechar o meu portão”, contou. “Meu cachorro se assustou e se aproximou do portão. No momento em que eu empurrei ele com a perna para proteger dos disparos, porque eu consegui ver um vindo na minha direção, [o tiro] pegou na minha coxa direita. Foi muito rápido.”

    Assim como a mãe da criança, ela afirma que os policiais não deram nenhuma assistência e que, inclusive, se recusaram a tirar a moto da rua para permitir a passagem, já que foi levada de carro à AMA pelo namorado e depois transferida ao Hospital do Campo Limpo. “Uma cena de terror! O PM atirou sem parar!”, denunciou à reportagem. “A bala passou por mim e depois atingiu a porta da minha casa”, lembra. “Deus foi maravilhoso na minha vida. Por pouco eu não estava aqui para contar a história porque faltou poucos milímetros para atingir a artéria femoral, que faz ligação com o coração”, desabafou.

    O sogro dela, de 62 anos, também foi alvejado de raspão. “Na hora que ele começou a ouvir os disparos, ele se abaixou no carro de uma garagem vizinha, e ainda assim pegou no pé”, relatou Monica. O idoso contou no 89º DP (Jardim Taboão) que estava em cima de uma escada, arrumando a janela de casa, e que ouviu tiros quando desceu dos degraus. Ele afirmou que “sentiu um negócio em sua perna esquerda” ao se esconder atrás de um carro e depois percebeu que era um tiro, mas não soube de onde partiu.

    Outros moradores ouvidos pelo site Espaço do Povo também disseram que não houve troca de tiros. “Um mano saiu correndo e entrou pra casa do meu irmão. Os caras já começaram a destratar a gente. Começou a tratar na ignorância, meu irmão trabalhador com criança dentro de casa. Chegou oprimindo todo mundo”, contou um morador.

    Alguns vídeos mostram um homem baleado em frente a um comércio e sendo carregado por moradores até um carro para ser socorrido. A reportagem não conseguiu identificá-lo.

    Algumas pessoas próximas ao local dos disparos contam que, poucos minutos após o início da perseguição, cerca de 12 viaturas da Polícia Militar chegaram na Rua Itamotinga, que dá acesso à comunidade. Por conta das vielas serem estreitas, apenas os policiais de motocicletas subiram a favela, enquanto as viaturas bloqueavam toda a rua.

    Durante toda a tarde e início da noite, um helicóptero da PM sobrevoou a comunidade e, após a chegada do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que levou os feridos mais graves para o hospital, as ruas que dão acesso à favela ficaram fechadas. Além de assustada, a comunidade se revoltou com a ação que deixou crianças e moradores feridos.

    Outras imagens de moradores de Paraisópolis chamando policiais militares de “lixo” e apontando o dedo do meio também foram compartilhados de forma isolada, sem referência à ação, em perfis de nomes como o deputado federal Coronel Telhada (PP-SP) e outros parlamentares da Bancada da Bala, formada deputados provenientes de carreiras das forças da segurança pública, apontando que a polícia estava sendo hostilizada pela população.

    Versão da PM

    De acordo com o boletim de ocorrência registrado no 89º DP, os soldados Jhonathan Ramos dos Santos e Victor Corradini, do 16º BPM/M, estavam em patrulhamento em motocicletas quando viram na Rua Larcio Corte dois homens em uma moto que teriam fugido quando avistaram os policiais. 

    A dupla teria saído em alta velocidade e, segundo os PMs, o garupa olhava para trás e mexia na cintura a todo o instante, parecendo estar armado, momento em que Ramos teria dado ordem de parada, o que não foi obedecido. 

    Durante a fuga, os suspeitos entraram na comunidade de Paraisópolis pela Travessa Luis Lopes Coelho. O soldado Corradini declarou que, ao passar pela Rua Pasquali Gallupi, um pedestre atravessou a rua na sua frente e “trombou o retrovisor com um senhor transeunte”, freou a motocicleta para a direita e caiu no chão. 

    Ele disse que se feriu no braço, mas o pedestre, não, e que solicitou apoio de outras viaturas. O policial não menciona ter atingido uma criança que ia para a escola nem que prestou socorro.

    Menino de cinco anos ficou com o queixo, braço e cotovelo feridos | Foto: arquivo pessoal

    Já o soldado Jhonathan Ramos seguiu a dupla sozinho. Ele afirma que os suspeitos caíram da motocicleta ao realizar uma manobra. Em seguida, afirmou que “o garupa se apoderou da arma de fogo que estava na cintura” e que ele “teve que se defender efetuando aproximadamente dez disparos de arma de fogo em direção aos infratores”. 

    Ramos disse que viu os dois serem atingidos pelos tiros, viu o garupa armado e atirou novamente, mas o homem correu e deixou a arma no local, que foi recolhida pelo PM, uma pistola calibre 9 mm, “com carregador alongado e com destrava para tiros intermitentes, e mira laser”.

    O PM disse que estava sozinho e que a comunidade estava “virando” após presenciar a situação e que o local estava “hostil”. Depois, ele afirma que percebeu que outras duas pessoas haviam sido baleadas. Ele relatou que não viu os suspeitos atirarem e que solicitou apoio de outras viaturas. Segundo ele, a dupla foi socorrida por moradores, que também teriam lavado o chão manchado de sangue.

    Quando o reforço chegou até a Rua Pasquale Gallupi, o soldado Corradini decidiu ir atrás de Ramos, que tinha continuado a perseguição. Segundo ele, quando passava pela Rua das Jangadas, um homem “sacou uma arma de sua cintura e apontou para a equipe”. Corradini disse que o soldado, identificado apenas como Jhone, que estava mais a frente, desembarcou da moto e se deparou com o suspeito apontando a arma e “efetuou aproximadamente cinco disparos em direção ao agressor”.

    O homem teria se virado de costas e atirado enquanto fugia. Outro soldado, Paulo Sérgio de Oliveira Junior, disparou quatro vezes em revide. O PM disse que outro homem que estava em companhia desse suspeito acabou atingido na perna e que a equipe acionou reforço e preservou o local. Esse homem baleado, de 23 anos, foi levado ao Hospital do Campo Limpo.

    Dois homens de 26 anos apontados como a dupla que fugiu foram localizados no hospital. O motorista levou um tiro no peito e segue internado. Já o garupa foi ferido na perna. 

    Segundo o boletim de ocorrência, o garupa foi apresentado no 89º DP (Jardim Taboão), depois de ter sido liberado pelo Hospital Universitário, onde foi reconhecido presencialmente por três pessoas que relataram que dois celulares foram roubados por uma dupla em uma motocicleta quando estavam sentados na calçada. 

    O local exato dessa calçada não é informado e as vítimas disseram que não poderiam descrever os assaltantes porque eles estavam de capacete. 

    Não há detalhes de como foi feito esse reconhecimento, mas o registro informa que os dois celulares roubados estavam no bolso do garupa e que a moto que a dupla dirigia era roubada. No DP, esse homem negou ter envolvimento com o crime e disse que foi baleado por estar “em um beco próximo” ao local.

    O cabo Jefferson Silva Enes Dias, que levou a ocorrência até a delegacia, disse que a equipe recolheu as cápsulas deflagradas no local por determinação de um superior que não é identificado sob a justificativa de que “não foi possível a preservação do local, por questões de segurança, sendo que a comunidade estava ‘virando’”.

    Ajude a Ponte!

    O delegado Luís Philippe B. Garcia Santos solicitou a prisão em flagrante do suposto garupa por ter sido o único reconhecido e liberado do hospital. Ele também requisitou perícia para o local, exames residuográficos (para detectar vestígios de disparo) nos PMs e nos três homens envolvidos, mas não pediu as imagens das câmeras acopladas às fardas dos policiais nem busca por possíveis câmeras de segurança. As armas dos PMs bem como a pistola 9 mm foram apreendidas para perícia.

    O que diz o governo

    A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), encaminhou a seguinte nota:

    A Polícia Militar prendeu dois homens em flagrante, após praticarem roubos de celulares na tarde desta segunda-feira (3), em Paraisópolis. Durante a ocorrência, os criminosos fizeram menção que iriam atirar contra os policiais, que intervieram. Além dos indiciados, outras três pessoas foram baleadas e socorridas aos hospitais da região. Um dos envolvidos recebeu alta e foi apresentado na delegacia. Já o segundo permanece internado, sob escolta policial.

    Os fatos foram registrados no 89º Distrito Policial (Jardim Taboão), que solicitou perícia no local. Os celulares roubados que estavam com os autores, bem como as armas utilizadas, foram apreendidas. As Polícias Civil e Militar apuram os desdobramentos, analisam as imagens e ouvem os envolvidos.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas