Após o fechamento de hotéis do programa De Braços Abertos, antigos beneficiados são levados a Centros Temporários de Acolhimento, que não têm atendimento individualizado
“Você quer usar meu paletó para sentar no chão? Eu prefiro conversar sentado”. Digo que não precisa e sentamos no asfalto, no cruzamento entre a Rua Helvétia e a Praça Julio Prestes, no centro da cidade de São Paulo. José Aparecido da Silva, 58 anos, tem a pele negra, cabelos crespos brancos curtos, barba do mesmo tom por fazer, camisa, calça e sapato um pouco desgastados. Carrega uma pequena mochila nas costas.
A Ponte conversou com ele em 27 de fevereiro, um mês após a Prefeitura ter fechado o Hotel Santa Maria e transferido os beneficiários do programa De Braços Abertos até CTAs (Centros Temporários de Acolhimento). Ao pensar nas pessoas que moravam com ele, Seu José afirma que “para se adaptarem de novo vai ser meio embaçado”. “Dos 30 que foram, com certeza, 25 vão sair [das unidades para as quais foram encaminhadas]”, prevê.
Ele conta que foi levado para um CTA centro de acolhimento em Santana, na zona norte, mas que ficou poucos dias. “Lá ninguém me tratou mal. Eu não quis ficar lá por entrosamento, o convívio não dava, era muita gente. Nós somos dependentes químicos, eles não tratam a gente como doente”, explica. Egresso do sistema prisional, há 29 anos o ex-caminhoneiro faz uso de drogas, tentou parar quatro vezes e diz que reduziu o consumo nos últimos anos com o programa De Braços Abertos.
Para o psiquiatra e coordenador do departamento jurídico do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), Mauro Aranha, o modo como ocorrem as transferências do De Braços Abertos para o programa Redenção, lançado em maio de 2017, representa um “retrocesso”. “Não se deve fechar um hotel sem implantar um equipamento que atenda as necessidades dessas pessoas”, declarou.
O psiquiatra aponta que o problema é manter esses beneficiários nos centros de acolhimento porque “não têm atendimento individualizado por serem equipamentos de caráter emergencial, que não se configuram como moradia social”. Segundo Aranha, “essas pessoas não têm privacidade, já que são pavilhões coletivos, e acompanhamento médico especializado”. O programa De Braços Abertos previa uma política de redução de danos por meio dos eixos de moradia, trabalho e assistência social.
O Cremesp recomenda que as moradias sociais não estejam localizadas na região da Cracolândia, mas em “equipamentos próximos aos seus vínculos, às suas origens, para que a pessoa possa ter uma reinserção na comunidade”. Aranha enfatiza que o diálogo com o então prefeito João Doria tem sido “difícil”.
Insalubridade
Seu José concorda que os hotéis eram melhores para sua situação do que os CTAs. “Num dos quartinhos da pensão vivia eu e mais quatro. Nós tínhamos nossa televisão, nosso DVD, nós tínhamos a postura de cobrar higiene um do outro, a nossa obrigação de sair limpo dali de dentro”, lembra. Na semana de transferência, relata que representantes da Prefeitura “apareceram cinco dias antes falando que tinha que sair, ir pra outro lugar e depois chegaram os homens forçando ‘você vai ter que sair’”.
Seu José disse que ainda mantém contato com a família e sonha se recuperar da dependência. “Eles moram no Jaraguá e às vezes vêm me ver aqui, mas machuca muito, machuca muito porque são uns meninos que poderiam ter um pai melhor. A gente quer andar de cabeça erguida, de passar na rua e você não ter que esconder o seu celular”. A reportagem não o localizou mais depois desse encontro.
Os hotéis Santa Maria e Impacto foram os dois primeiros a serem fechados, mas poderão ser reativados, já que, em 3 de abril, o juiz Randolfe Ferraz de Campos, da 14ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado, acolheu uma ação civil pública movida pela Defensoria Pública e determinou que a Prefeitura volte a fornecer os serviços nos prédios. A decisão também prevê que sejam realizados serviços e obras de manutenção e reparos nos prédios para promover condições mínimas de moradia. Em caso de “absoluta impossibilidade de restabelecimento de funcionamento de ditos hotéis”, a Prefeitura terá que disponibilizar uma alternativa habitacional para os beneficiários “no mesmo território onde mantêm seus vínculos comunitários e recebe atendimento psicossocial”. Uma audiência no dia 9 de maio vai determinar se a decisão será mantida ou não.
A determinação destaca que os CTAs e as repúblicas não são unidades adequadas para as necessidades dessa população. “É exigido que não esteja o beneficiário a usar substância entorpecente, o que não é requisito para a acolhida nos hotéis sociais”, afirma. Segundo o magistrado, as ações da administração municipal foram “abruptas, não pautadas pelo prévio debate com amplo acesso à informação e que representam rupturas de políticas públicas sem implementação imediata de alternativa de política tão ou mais eficaz”.
Segundo o chefe de gabinete da Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social), José Antônio de Almeida Castro, os dois hotéis objetos da ação civil pública não têm condições de receber novamente as pessoas por questões de insegurança e insalubridade.
Castro informou que dos 31 moradores do Hotel Santa Maria, 16 foram encaminhadas a equipamentos da secretaria e 15 não aceitaram acolhimento. Já no Hotel Impacto, dos 37, 19 foram transferidos a equipamentos municipais, três voltaram à família e 15 não aceitaram acolhimento.
Políticas de Estado e de governo
O terceiro hotel a ser fechado pela Smads foi o Dom Pedro, na Rua Carlos de Souza Nazaré, 630, também na região central, em 4 de abril. O encerramento das atividades nesse prédio, no entanto, aconteceu de maneira diferente dos dois anteriores, por contar com um acordo de envio de plano de atendimento individualizado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, Defensoria Pública, Ministério Público e outras entidades.
Para a defensora pública Fernanda Dutra, o acordo da remoção com um plano de atendimento tinha o objetivo de impedir uma “remoção abrupta” por meio de um acompanhamento do destino dos beneficiários, para saber se eles se adaptaram e querem permanecer nos equipamentos para os quais foram realocados, o que para ela não aconteceu nos outros dois hotéis. “Está havendo um redirecionamento da política sem que se atenta para equipamentos voltados para reabilitação psicossocial, que estejam atrelados ao trabalho, alimentação e estadia são aspectos fundamentais para uma política de atendimento efetivo de pessoas que necessitam desse atendimento mais especializado”, aponta.
Os três hotéis funcionavam a partir de um convênio com a organização social IABAS (Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde) desde outubro de 2016. No caso do Hotel Dom Pedro, o prédio estava sem luz, sem água, com o elevador quebrado e com risco iminente de acidente. Esse cenário foi alvo, em novembro do ano passado, de uma greve de funcionários contratados pela OS. Trabalhadores ouvidos pela Ponte informaram que os problemas permaneceram.
A defensora também enfatiza que o programa De Braços Abertos é “uma política de Estado” e não de governo, já que o decreto 55.067/2014, que regulamenta o programa De Braços Abertos, ainda está em vigor. “Com o encerramento simbólico do programa ‘De Braços Abertos’, porque na prática é vigente, se inicia a desconstrução desses equipamentos para justamente justificar o redirecionamento da política, o atendimento das pessoas em outros equipamentos já existentes ou aqueles que estão mudando de nome ou estão sendo propostos pela Prefeitura, mas que ainda com ruídos e que não foram implantados”, avalia.
“As pessoas que estão nesses hotéis já conseguiram sair daquela situação mais drástica da rua, mais sub-humana, já conseguiram alguma esperança de recuperação. Essa recuperação não é feita da noite para o dia, de forma violenta ou a partir de uma abstinência. É uma recuperação lenta”, disse à Ponte a presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Fabiana Severo, que visitou alguns CTAs e os outros dois hotéis em funcionamento na região central no início de março.
“O receio é de um aprofundamento cada vez mais drástico e violento dessas violações. No ano passado, nós estivemos aqui num momento em que tinham acabado de acontecer as desocupações forçadas, as demolições, na retirada dessas pessoas de uma forma muito violenta [após a operação de 21 de maio na Cracolândia]. Era um outro cenário. Agora, a gente vê que, ao longo desses meses, a política foi sendo paulatinamente fechada, desconstruída, e os poucos vínculos institucionais estão se perdendo”, analisa.
Outro lado
A Ponte procurou a Prefeitura e as secretarias de Saúde e de Assistência e Desenvolvimento Social sobre o encaminhamento do Seu José e a previsão de moradias sociais que estão presentes no projeto do programa Redenção, mas não teve retorno. Também não localizamos nenhum porta-voz da secretaria municipal de Saúde durante a desocupação do Hotel Dom Pedro.
Em nota oficial à imprensa, a administração declarou que “diante das falhas graves de segurança e higiene dos hotéis e do fracasso da política de bolsas, o programa De Braços Abertos se mostrou totalmente inadequado para a efetiva recuperação dos dependentes químicos, que nunca deixaram de frequentar o fluxo”, que teria dobrado de 900 para 1800 pessoas entre janeiro de 2016 e 2017.
O texto também anuncia o cancelamento do POT (Programa Operação Trabalho), ligado ao “De Braços Abertos”, em que beneficiários ganhavam um valor em dinheiro por serviços de varrição e zeladoria. Segundo a nota, 220 das 263 pessoas que estavam no POT “não poderiam continuar recebendo a bolsa, pois a legislação que regulamenta o programa, criada na gestão anterior, limita o benefício a 24 meses” e que as 43 restantes serão encaminhadas a outras frentes de trabalho sujeitas a remuneração.
E afirma que o programa Redenção visa a “substituir o modelo equivocado da gestão anterior” e “tratar o paciente com dependência química em sua integralidade, durante e após a desintoxicação, e disponibilizar equipes de abordagem e acolhimento no território, permanentemente”.
Já a Iabas informou, por meio de nota, que o Hotel Dom Pedro “já apresentava problemas estruturais e sociais crônicos” quando passou a administrar o local, em outubro de 2016, e que realiza “constantemente” manutenções e vistorias no imóvel. Também disse que, após a retirada da GCM para controlar o acesso do prédio e atuar como mediadora de conflito, em fevereiro do ano passado, houve “aumento gradativo da violência” e que desde então “a degradação do espaço foi intensificada”.