Defesa afirma que uso do uniforme da carceragem pode induzir jurados e passar imagem de que acusados são culpados. Para especialista, decisão de juíza em manter réus com uniformes foi equivocada
Nesta quarta-feira (24/2), o julgamento do ex-cabo da Polícia Militar (PM) Victor Cristilder Silva dos Santos, de 37 anos, e do guarda-civil municipal Sérgio Manhanhã, de 48, chegou ao terceiro dia.
Os dois, que estão presos em regime fechado, são julgados pelo júri popular pelo envolvimento na chacina de Osasco de 2015 e são acusados de cometer os crimes de homicídio doloso qualificado, formação de quadrilha e tentativa de homicídio.
Ambos os policiais tiveram seus julgamentos anulados em 2019. Na época o Tribunal de Justiça anulou as sentenças de 119 anos, 4 meses e 4 dias de Cristilder e a de 100 anos e 10 meses de Manhanhã, alegando que as provas usadas pela acusação são insuficientes para confirmar a sua participação na chacina. Com isso, o Tribunal de Justiça determinou que os acusados fossem julgados novamente.
O dia foi marcado pela escuta das oito testemunhas da defesa dos policiais que faltavam para completar essa primeira fase e contou com a presença dos dois réus, que estavam vestidos com o uniforme da carceragem. Sérgio Manhanhã iniciou o julgamento utilizando algemas, que depois foram retiradas. O pedido de uso de roupas civis foi negado pela juíza da Vara do Tribunal do Júri de Osasco, Élia Kinosita.
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O uso das algemas em um dos ex-agentes de segurança pública causou polêmica no meio jurídico, uma vez que a súmula 11 do Supremo Tribunal Federal (STF) determina que “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.
A súmula vinculante também aponta que a autoridade deve justificar por escrito a excepcionalidade da mesma, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual – ou seja, pode servir de desculpa para a defesa pedir novamente a anulação do julgamento.
Procurada pela Ponte, a assessoria do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) alegou que a juíza Élia Kinosita não pode explicar à imprensa a razão pela qual foi negado o uso de roupas levadas pelas famílias dos réus. A Lei Orgânica da Magistratura determina que é vedado ao magistrado se manifestar sobre o processo durante o julgamento.
Além da determinação do STF que tem força de lei, o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU) também estabeleceu 13 procedimentos para a aplicação de regras mínimas para o tratamento de presos por meio da Resolução 1984/47.
Uma das normas aponta que o preso, ao sair da unidade prisional, tem o direito de utilizar suas vestimentas civis: “Em circunstâncias excepcionais, quando o preso necessitar afastar-se do estabelecimento penitenciário para fins autorizados, ele poderá usar suas próprias roupas, que não chamem atenção sobre si”.
Apesar das garantias colocadas em resoluções, o promotor Marcelo Alexandre de Oliveira, que faz a acusação no processo da chacina de Osasco e atua com assistência da defensora pública Maíra Coraci Diniz, diz que a decisão da juíza foi correta. “Essa questão de tirar a algema e a roupa é muito delicada, se o juiz permite tirar a algema e a roupa impedindo a identificação de que o réu está preso, ele é irresponsável, portanto a juíza foi correta”.
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Marcelo ainda nega a possibilidade de anulação do julgamento por conta das roupas dos acusados. “O uso da algema de fato é proibido por súmula do STF. Em todo fórum, dada a escassez de segurança, se faz uma escolha, ou a algema, ou a roupa. Isso permite que o policial, em caso de fuga, consiga identificar a pessoa”.
Ao jornal Folha de S.Paulo, João Carlos Campanini, defensor de ambos os réus, disse que conversou com a magistrada na segunda-feira (22/2).
Ele afirmou ao jornal que pode pedir a anulação do júri. “Entrar algemado é a mesma coisa que permanecer algemado, pois os jurados já o recebem com a pecha de um criminoso de extrema periculosidade, embora ainda nem tenha sido julgado. Está registrado em ata, e caso algum réu seja condenado, logicamente vamos pedir a anulação de julgamento”. A Ponte procurou Campanini, mas ele não retornou as tentativas de contato até a publicação deste texto.
Na visão do advogado Humberto Fabretti, professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o uso da roupa carcerária pelos réus traz grande prejuízo para suas respectivas defesas. “A forma como os acusados são apresentados aos jurados pode influenciar na tomada de decisão. O Ministério Público como fiscal da lei pode requerer que a juíza permita o uso das roupas civis, como pode pedir para que algemas sejam retiradas”.
“A ampla defesa permite que os acusados vistam-se da maneira que acharem mais importante para a sua defesa, portanto entendo que foi uma decisão equivocada por parte da juíza”, considera o professor em entrevista à Ponte.
Fabretti explica que a única forma de impedir a nulidade do julgamento é “permitindo que os réus utilizem as roupas que acharem adequadas, que concordem em não mudar roupas, ou então se a juíza decidir pela roupa que a defesa achar conveniente. Existe um fundamento para essa nulidade como mostra a uma decisão do STJ [Supremo Tribunal de Justiça]”.
O advogado se refere ao Recurso em Mandado de Segurança de número 60.575, julgado em 2019, que reformou uma decisão de segunda instância do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), que havia impedido o réu de usar suas próprias roupas.
Na época, o ministro Ribeiro Dantas declarou: “A par das algemas, tem-se nos uniformes prisionais outro símbolo da massa carcerária brasileira, sendo, assim, plausível a preocupação da defesa com as possíveis preconcepções que a imagem do réu, com as vestes do presídio, possa causar ao ânimo dos jurados leigos”.
Na sessão desta quarta, as últimas oito das 24 testemunhas no processo foram ouvidas. Nesta quinta-feira (25) os réus serão interrogados, na sequência a acusação e a defesa apresentam suas alegações finais. Ao final, uma reunião dos jurados dará o veredito.