Denunciados por homicídio qualificado, abuso de autoridade e adulteração da cena do crime, três policiais passam por primeira audiência em 13 de março. “Me sinto vitoriosa”, diz mãe de vítima
A morte de três jovens negros por policiais militares na Gamboa de Baixo, bairro pobre de Salvador, na Bahia, completa dois anos nesta sexta-feira (1º/3). O caso, que ficou conhecido como Chacina da Gamboa, tomou novos rumos no ano passado, quando três PMs se tornaram réus pelos homicídios. O avanço trouxe esperança para os familiares de Alexandre Santos dos Reis, 20 anos, Cléverson Guimarães Cruz, 22, e Patrick Sousa Sapucaia, 16.
“Eu me sinto vitoriosa por não me calar do início até agora”, diz Silvana dos Santos, 49, mãe de Alexandre. Ela, que nunca perdeu a fé em uma resposta divina ao crime, se disse surpresa com o andamento do processo “na justiça dos homens”, já que “é difícil a justiça enxergar a realidade, a verdade do que a família fala quando acontece um caso desses em um bairro periférico”.
Em novembro do ano passado, uma força-tarefa de promotores do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) denunciou os cabos Tárcio Oliveira Nascimento, Thiago Leon Pereira Santos e Lucas dos Anjos Bacelar Dias por homicídio qualificado, abuso de autoridade e adulteração da cena do crime. Eles foram afastados por 180 dias das rondas ostensivas e proibidos de ir até a Gamboa e de manter contato com testemunhas e vítimas.
A denúncia apontou que os três jovens foram executados por motivo torpe. Sem provas que justificassem qualquer ação, os PMs teriam presumido que o trio era criminoso. Na versão dos policiais, houve troca de tiros com os jovens, o que sempre foi negado pelas famílias e acabou desmentida por perícia.
Conforme o MP-BA, os PMs “plantaram” armas de fogo como se estivessem em posse das vítimas. Os agentes também teriam lavado com baldes e vassouras uma escadaria da Gamboa de Baixo na tentativa de apagar os rastros dos homicídios.
A perícia mostrou que Alexandre e Patrick foram mortos nessa escadaria. Na sequência, os corpos foram removidos para uma casa abandonada. Cléverson foi morto com tiros de uma submetralhadora dentro do imóvel.
O MP-BA afirmou que os policiais removeram os corpos dos três jovens da casa, os cobriram com lençóis e os encaminharam até o Hospital Geral do Estado. Contudo, naquela altura, o trio já estava sem vida.
Um quarto policial, Marinelson Mendes Alves da Cruz, não foi incluído na acusação de homicídio, mas se tornou réu por supostamente ter ajudado a alterar a cena do crime.
A primeira audiência do caso está marcada para o dia 13 de março. Na ocasião, devem ser ouvidas testemunhas e familiares das vítimas.
Os quatro policiais também foram denunciados por fraude processual no último dia 19. O processo corre no âmbito da Justiça Militar e não será alvo de análise da audiência já prevista. Neste caso, a denúncia do MP incluiu os quatro policiais.
Silvana espera ficar cara a cara com os policiais. Ela conta que ensaia o que quer perguntar aos algozes do filho, mas sabe que a resposta, se vier, não será capaz de aliviar a dor.
“Nós nunca pensamos que uma coisa dessa vai acontecer com a gente. Quando acontece, é muito doloroso. Ficamos de mãos atadas”, diz.
Mãe de oito filhos e avó de cinco netos, Silvana credita à fé o fato de ainda estar viva. Poderia ter morrido de tristeza ou da arritmia cardíaca que desenvolveu. A ânsia por justiça também é elemento que a mantém de pé. “Penso que não posso morrer antes de ver esse julgamento”, diz.
O que não abandona os pensamentos de Silvana são as lembranças do filho Alexandre. Carinhoso e alegre, ele sempre enchia a mãe de esperança sobre o futuro. Se faltava carne para uma refeição, Alexandre pregava que aquela fase de tormenta passaria. “Esses são os primeiros dois anos de uma vida sem meu filho”, diz Silvana, emocionada.
Caso pode representar um marco
A responsabilização dos PMs envolvidos na chacina da Gamboa pode representar um marco para esse tipo de situação no Estado. É o que avalia Wagner Moreira, advogado e coordenador do Ideas Assessoria Popular, entidade que acompanhou o caso desde as primeiras apurações.
Moreira avalia que a evolução do caso é consequência de ao menos dois fatores. O primeiro deles foi a pressão em torno da segurança pública na Bahia após a divulgação dos dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, em julho de 2023. O estado nordestino foi considerado o segundo mais violento do país.
Enquanto a média nacional de mortes violentas intencionais foi de 23,2 por 100 mil habitantes, a da Bahia ficou em 47,1. O estado também é o segundo pior na resolução de inquéritos policiais de homicídios. Apenas 17,24%.
O holofote colocado sobre o Estado permitiu maior debate sobre as chacinas e a atuação dos policiais baianos. É neste contexto, argumenta Wagner, que ganha fôlego a apuração sobre o caso da Gamboa.
O segundo ponto é a atuação de promotores do Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (Geosp) em conjunto com o já designado para o caso. Foram produzidas provas essenciais para o relatório final da denúncia, como a reconstituição, a perícia nas armas supostamente encontradas com os jovens e a apreensão de celulares dos PMs.
“Nós começamos a desmontar esse discurso e esse caso vira emblemático. Com essa nova cobrança que acontece a partir de julho do ano passado, vai ganhando força e caminhando para esse processo”, diz.
Para além do julgamento, Moreira também destaca a necessidade de reparação. Ele lembra que, ainda no primeiro ano após a chacina, a Corregedoria da Polícia Militar publicou um parecer que avaliava a atuação dos PMs como normal. A análise difere da Corregedoria-Geral que apontou indícios de execução sumária. A tese levantada foi importante, conta o advogado, para o resultado que tornou réus os policiais.
Comandada por Marcelo Werner, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) tem dado demonstrações de apoio ao trabalho da polícia. As falas de Werner não diferem das do governador petista Jerônimo Rodrigues. Herdeiro de dois governos do PT, Rodrigues não mostrou interesse em frear a violência policial na Bahia.
A escalada da violência foi intensificada no primeiro ano da gestão Rodrigues-Werner. A letalidade policial cresceu 15% na Bahia durante o ano passado. No segundo semestre, agentes da Força Nacional reforçaram o policiamento, que acabou intensificado após a morte de um agente federal.
O cenário posto torna improvável um pedido de desculpas por parte do Estado aos familiares dos mortos na Gamboa. “A luta por justiça e reparação passa, sobretudo, por esse pedido de desculpas. No entanto, não é algo que eu espero do governo do Estado da Bahia pela prática que nós temos assistido e vivenciado nos últimos anos”, fala Moreira.
Alta na letalidade em janeiro
Apesar de a gestão ter sido alvo de críticas, a violência continua presente. Em janeiro deste ano, segundo o Instituto Fogo Cruzado, houve aumento de 47% na letalidade na Grande Salvador em comparação com o período homólogo.
No primeiro mês do ano, 116 pessoas foram mortas nos nove municípios da região. O número é 103.5% maior que o registrado na região metropolitana do Rio de Janeiro, que concentrou 57 mortes por arma de fogo no mesmo período.
As 116 mortes ocorreram em 168 tiroteios, que deixaram, para além dos mortos, 36 feridos. Entre as trocas de tiros, 67 ocorreram em ações policiais que resultaram na morte de 38 pessoas.
“Esses dados falam por si só sobre a continuidade de um modelo de controle social da pobreza e da periferia e do povo negro todo a partir da letalidade”, avalia Moreira.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou o governo da Bahia e a Polícia Militar da Bahia para obter uma posição sobre o caso. A defesa dos policiais Tárcio Oliveira Nascimento, Thiago Leon Pereira Santos, Lucas dos Anjos Bacelar Dias e Marinelson Mendes Alves da Cruz não foi localizada. Não houve retorno.