Sete dos oito suspeitos de participar da Chacina do Guamá, no dia 19 de maio, estão presos e Polícia Civil investiga relação do crime com a morte de 3 PMs dois dias antes. Para pesquisador, versão que ligava bar onde as 11 pessoas foram mortas ao tráfico de drogas é tentativa de criminalizar vítimas
A tarde de sexta-feira (24/5) parecia normal em Belém (PA), com seu calor e umidade típicos. Enquanto as ruas desertas da passagem Jambu tentavam voltar à normalidade, cinco dias após a chacina ocorrida na tarde do domingo passado (19/5), a Polícia Civil do Pará (PC-PA) prendia preventivamente, ainda em serviço, o cabo da Polícia Militar (PM-PA) Wellington Almeida Oliveira, acusado de envolvimento na ação criminosa com outros três policiais militares – sendo um aposentado – e quatro civis. O Wanda’s Bar e Recepções, no bairro do Guamá, zona periférica da capital paraense, foi o local onde 11 pessoas foram assassinadas.
Os outros dois policiais militares José Maria da Silva Noronha (da reserva) e Pedro Josmar Nogueira da Silva se entregaram no final de semana. O quarto policial envolvido, Cabo Leonardo Fernandes Lima, se entregou na madrugada deste domingo (26/5). O último suspeito que ainda segue foragido é um homem apenas conhecido como “Diel”.
Ainda não está esclarecido o motivo dos crimes e se há mandantes, no entanto, uma das linhas de investigação da Polícia Civil do Pará aponta para possível retaliação da morte de três PMs nos dias 16 e 17 de maio.
Logo após a prisão do agente Oliveira, na operação batizada de Kratos, em uma entrevista coletiva, autoridades da segurança pública do estado afirmaram desconhecer a motivação do crime. “Os delegados que conduzem a investigação irão se debruçar agora sobre isso. Temos duas linhas de investigação, mas não podemos falar para não atrapalhar o andamento do processo. Só vamos poder falar algo sobre a motivação ou se há alguém mais envolvido ao fim do inquérito, depois de 10 dias. Podemos dar certeza que as oito pessoas que foram identificadas até aqui têm algum tipo de participação no ocorrido, ou na execução em si ou no apoio”, explicou Uálame Machado, secretário de estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará.
No dia da chacina, a PM-PA veio a público e chegou a afirmar que o caso teria relação com o tráfico de drogas no território. A versão foi amplamente divulgada na imprensa local e espalhada pelas mídias sociais, mas colocada em segundo plano pelo secretário. “Não podemos descartar nenhuma hipótese até o final do inquérito, porém a linha mais possível é de que um grupo formado por pessoas do povo e policiais praticaram a ação pelo motivo que ainda vai ser esclarecido ao final dos 10 dias”, confirmou Machado.
Divergências no discurso da Polícia Militar
Ainda na tarde do domingo (19/5), em declaração à imprensa, o comandante do 20º Batalhão da Polícia Militar do Pará (PM-PA), tenente- coronel Araújo, falou que o local já era conhecido da instituição pela sua relação com o tráfico de entorpecentes. “O espaço funciona como fachada e é utilizado para o consumo de drogas”, disse. No entanto, o comandante geral da PM-PA, coronel Dilson Júnior, em entrevista coletiva à imprensa na terça-feira (21/5), disse desconhecer essa relação. “O bar já havia sido fiscalizado em outras ocasiões, inclusive já havia sido fechado por poluição sonora e perturbação do sossego, mas não tínhamos essa informação de que lá era um ponto de venda de drogas, pois se tivéssemos, teríamos autuado”.
Segundo Aiala Colares, geógrafo e pesquisador da área de segurança e geografia urbana, a criação de narrativas prévias visam criminalizar o espaço para justificar as mortes. “Isso é histórico porque os bairros periféricos sofrem cotidianamente com essa produção de estigmas. São criminalizados pela própria polícia junto com alguns jornais que trabalham essa questão da violência e acabam produzindo essa lógica preconceituosa e discriminatória, até mesmo racista, culpabilizando as próprias pessoas, dizendo que é um local onde havia consumidores de drogas, onde se vendia drogas”, opina.
Com medo e desconfiança, dois moradores da passagem Jambu, que falaram com a reportagem da Ponte sob a condição de anonimato, discordaram da posição inicial divulgada pela PM. Um homem de aproximadamente 40 anos disse ter sido frequentador do local. “Por favor não grava, nem posso falar muito, mas disseram que no Bar da Wanda tinha rota de fuga. Como? Lá atrás tem dois muros de 10 metros de altura”, afirmou.
Ao mesmo tempo que trabalhava, uma mulher de 50 anos rompeu o silêncio para defender a dona do estabelecimento. “A Wanda não vendia droga, só trabalhava com a cerveja dela mesmo”, reforçou.
A Polícia Civil confirmou que o local tinha permissão da Divisão de Polícia Administrativa (DPA) para funcionar enquanto bar até o final de junho de 2019 e que nunca havia sido registrada investigação no DENARC (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) e nenhum boletim de ocorrência relacionando o local e a dona, Maria Ivanilza Pinheiro Monteiro – a Wanda -, ao tráfico de drogas. Ivanilza, 52 anos, foi uma das 11 pessoas assassinadas na ação.
Motivações para o crime
Em vídeo divulgado nas redes sociais no dia da chacina, o governador do Pará, Helder Barbalho, declarou um possível motivo do crime. “A minha solidariedade às famílias e acima de tudo a minha mensagem ao Estado do Pará: nós não vamos recuar. Se essa iniciativa, se este sinistro ocorrido, no bairro do Guamá, é para intimidar as ações de segurança pública do governo, esqueçam. Nós vamos continuar firmes trabalhando para garantir o direito da população a ter paz, a ter segurança pública com qualidade. Esta é a diretriz”, frisou.
Aiala Colares avalia que a motivação pode ser uma tentativa de mostrar poder de grupos milicianos. “Essa ação representa uma resposta ao fato de que nas últimas semanas aconteceram assassinatos e atentados contra agentes de segurança pública. Então é uma resposta das milícias a esses ataques e a essa perseguição, mas ao mesmo tempo também uma ação política. Demonstrando relação de poder de um grupo sobre determinado bairro, mostrando a ideia de quem manda no território, de certa forma isso atinge politicamente toda a estrutura do sistema de segurança pública, que vinha apresentando no início do ano dados que apontavam a ideia de redução do índice de criminalidade”, completa.
Apesar de em nenhum momento o secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Estado, Uálame Machado, citar diretamente o nome “milícias” para tratar do “grupo de pessoas do povo e policiais militares” que cometeram o ataque, o delegado geral da Polícia Civil, Alberto Teixeira, falou sobre o assunto. “Nós não vamos admitir quem quer seja, sejam milicianos ou facções, fazer o enfrentamento contra a segurança pública. A resposta será imediata como vimos fazendo desde o início do ano de forma conjunta”.
A Divisão de Homicídios da Polícia Civil investiga se o fato ocorrido no bairro do Guamá pode ter relação com as mortes de três policiais militares ocorridas entre os dias 16 e 17 de maio. Só em 2019, foram assassinados 21 agentes da PM no Pará.
Dados da SEGUP-PA (Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará) dão conta que aconteceram seis chacinas entre 2017 e 2019. Em matéria veiculada na quinta-feira (23), a TV Liberal, afiliada à Rede Globo, apresenta outros números. Segundo a empresa teriam ocorrido 12 chacinas em todo o Estado nos últimos oito anos.
Em 2014, após a morte do cabo da PM-PA Antonio Marco da Silva Figueiredo, conhecido por Cabo PET, também no Guamá, 11 pessoas foram mortas em quatro bairros diferentes. A comoção popular gerou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Alepa (Assembleia Legislativa do Estado do Pará) que constatou a existência de vários grupos de milícias e de extermínios, seu modus operandi, funcionamento e recomendou a investigação e processo de vários de seus membros.
Entenda a chacina
De acordo com a polícia, sete homens encapuzados chegaram em frente ao Wanda’s Bar e Recepções com um carro e três motos e entraram no recinto atirando. Foram mortas 11 pessoas, a maioria com tiros na cabeça. Uma outra vítima do atentado segue internada em estado grave. O nome do hospital não foi divulgado por questões de segurança.
As vítimas são: Alex Rubens Roque Silva, 41 anos; Flávia Teles Farias da Silva, 32; Leandro Breno Tavares da Silva, 21; Márcio Rogério Silveira Assunção, 36; Maria Ivanilza Pinheiro Monteiro, 52 (dona do bar onde ocorreu o crime); Meire Helen Sousa Fonseca, 35; Paulo Henrique Passos Ferreira, 24; Samara Silva Maciel, 23; Samira Tavares Cavalcante, 36; Sérgio dos Santos Oliveira, 38; Tereza Raquel Silva Franco, 33. Destes, apenas três têm antecedentes criminais. Ivanilza por poluição sonora e crime contra relações de consumo, Flávia Teles por abandono de incapaz e Alex Rubens por porte de documento falso e suspeita de estelionato.
O “Relatório da Situação dos Casos de Chacinas e Extermínios de Jovens Negros no Estado do Pará”, produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA), garante que “em sua maioria, as vítimas não têm relação com seus algozes, são incluídas aleatoriamente no evento”.
Até o momento estão presos Edivaldo dos Santos Santana – possuía uma identidade falsa de policial militar – e Agnaldo Torres Pinto, quando tentavam descaracterizar o carro que os investigadores alegam ter sido usado na no crime; Jaysson Costa Serra, dono de uma panificadora onde o grupo teria se reunido antes de cometer os assassinatos; os cabos Pedro Josimar Nogueira da Silva, que na quinta-feira (23/5) registrou Boletim de Ocorrência alegando o furto de sua arma, e Wellington Almeida Oliveira, presos na sexta-feira (24/5); e o policial da reserva José Maria da Silva Noronha, que se apresentou na Divisão de Homicídios no sábado (25/5). O cabo Leonardo Fernandes de Lima se apresentou na madrugada de domingo e um homem apenas identificado como “Diel” ainda está foragido.
De acordo com o G1, Edivaldo, que trabalha de segurança em uma escola pública, negou envolvimento no crime. Os outros dois suspeitos presos prestaram depoimento à Polícia Civil, que, no entanto, está sob sigilo.
A Ponte procurou a Segup-PA para questionar sobre o que acontecerá aos policiais militares presos preventivamente e se a PM-PA pretende abrir alguma investigação interna para apurar a conduta dos agentes. Além disso, a reportagem questionou sobre a divergência de versões dadas pela PM. Em nota, a pasta confirmou a identidade dos suspeitos e as datas das prisões.
“Informamos ainda, que estão sendo realizados investimentos para fortalecer e intensificar as ações dos setores de inteligência, com o objetivo de prevenir e implementar medidas para evitar atos criminosos, garantindo assim, a segurança e proteção da população. Em todos os atos de violência ocorridos este ano, tanto às polícias Civil e Militar, além dos órgãos de inteligência, que compõe a segurança pública do Estado, trabalham na investigação, elucidação e, posteriormente, na prisão dos envolvidos, sejam cidadãos comuns ou agentes de segurança pública”, diz trecho da nota.