Militares patrulham as ruas. Junto com eles voltaram as balas. A reportagem descreve o que sentem os que viveram a ditadura e como essa história de esconder fatos parece se repetir como um dejavú do medo
As ruas de Santiago têm cheiro de um passado triste. Há barricadas. Há gás lacrimogêneo. Há suor de vários dias de marcha. Há esperança. Mas as ruas de Santiago cheiram, sobretudo, medo. Desde que o presidente Sebastián Piñera anunciou que os militares sairiam para as ruas, foi inevitável pensar que mais de 40 anos depois do Golpe de Estado, que deixou milhares de casas órfãs, há ainda quem se sinta seguro quando homens e mulheres do Exército saem dos seus regimentos para impor ordem com violência. Porque vão usar a bala ainda que saibam que, ao atirar em um cidadão desarmado e quieto, não receberão um revide. É como se tivessem ido viajar e agora estão regressando para serem anfitriões impunes de uma festa que não terminou.
Marcham em tanques por La Alameda. Disparam à queima-roupa contra os saqueadores de lojas. Disparam contra a massa revoltada, esse produto que o modelo econômico chileno segregou e preferiu esconder em bolsões de precariedade em vez de educar. Esses “lumpens” [como tem se referido aos grupos que estão promovendo o levante contra o governo] esquecidos e pálidos na comparação com a luminosidade dos ônibus concedidos à iniciativa privada. Esses grupos esquecidos na periferia de Santiago e que foram alijados dos parques e espaços onde as classes ABC podem ficar sem qualquer problema, porque as áreas verdes de Santiago são apenas para os mais ricos. Em algumas cidades quase não há possibilidades de pegar um ônibus ou caminhar sem ter que desviar dos automóveis nas ruas.
Em muitas casas de Santiago, o mesmo que acontece no restante do Chile, a comida principal é o almoço e à noite se toma chá com pão. Chile lidera o consumo de chá na região; uma das razões para que todos nós nos sintamos os ingleses da América Latina, sem nos darmos conta de que uma xícara de chá também pode camuflar a fome. Porque o Chile é o país da camuflagem. A dificuldade de pagar por educação, onde um colégio privado médio custa 600 dólares, se esconde no lema da meritocracia.
Comprar um automóvel em 60 parcelas é parte do esforço próprio de qualquer pessoa ainda que isso signifique noites mal dormidas por temer as dívidas. Resistir diante de uma situação adversa, sem psiquiatra nem psicólogo, é uma atitude louvável, uma conquista espiritual, ainda que o suicídio seja a segunda causa de morte de adolescentes no país.
E no meio dessa camuflagem bulímica, onde a todo momento a gente vomita ódio, os militares se movem livremente. Junto com os civis da ditadura, converteram o Chile em um lego de titânio repleto de rachaduras que agora estão rangendo. Nos últimos anos, aconteceram marchas pelo país contra o aumento do preço do combustível, pela saúde, pela educação e, em algumas regiões, até pelo abandono. Nada foi ouvido. Os governos estavam muito ocupados polindo a ponta do iceberg, enquanto abaixo todos estavam afogando.
Esse modelo econômico, que mudou tão pouco desde a sua concepção original, é o que estão defendendo os militares que saíram às ruas, que voltaram a sua festa. Mas para essa festa nem todos estão convidados.
Não estava convidado José Miguel Uribe, um jovem de Curicó – uma cidade a poucos quilômetros ao sul de Santiago – que foi baleado mesmo estando em um lugar que não estava em Estado de Emergência. Uma morte que nos faz recordar que os militares só parecem ser um rio que sempre busca o seu canal original. Acordar com a notícia foi como voltar aos anos 80. Como quando eu era uma criança e ouvia os disparos amplificados pelos eco da população na Estação Central onde eu vivia, ao sudeste da capital. Foi como voltar a sentir medo dos meus vizinhos de Villa Portales, novamente, que perderam vários dos seus em noites de rajadas de tiros sem culpados. Naquela época, gritos de terror foram guardados na garganta para não fazer barulho.
Não sei quantos vizinhos eu perdi. Também não sei quantos foram os que denunciaram o seu vizinho, mas em qualquer marco sangrento, existe a mão dos militares. Assim como em 31 de janeiro de 1988, por volta das 22h30, quando o apartamento 409 do Bloco 10 explodiu. Eu morava a 7.500 metros de distância. Ninguém saber, até hoje, se foi um acidente ou assassinato. Três jovens morreram: Fernardo Nolberto Villalón Pérez, Claudio Andrés Paredes Tapia e Nelson Eric Garrido Cabrera. Um promotor militar disse que eles estavam lidando com explosivos dentro do apartamento. As crianças da população pareciam chocadas, mas ao mesmo tempo acostumadas.
Estas noites de toque de recolher, essas imagens de balas, corpos sem nome, membros sem dono pendurados nas árvores, que retornam na mente repetidamente.
Piñera disse que o que estamos vivendo “é uma guerra”. Mas está não é uma guerra. É a construção de um modelo cívico-militar que apoiamos, alimentamos, votamos, aplaudimos, dos quais nos orgulhamos. Enquanto estávamos andando pelos shoppings de Paullman, a tristeza diminuiu como um vulcão.
O pior de tudo é que está muito longe do fim. Você pode camuflar perfeitamente o final de um levante social com alguns bônus ou medidas de emergência com letras minúsculas. O Chile é um país onde tudo se camufla.
A Cosecha Roja é uma rede de comunicação, intercâmbio e formação de jornalistas que se propõe a pensar a violência e a segurança a partir de uma perspectiva ampla, valorizando os direitos humanos e a igualdade de gênero.
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Alejandra Carmona é jornalista independente chilena. Professora da Escola de Jornalismo da Universidade do Chile.
Esta reportagem foi publicada originalmente na Cosecha Roja e traduzida por Maria Teresa Cruz