A história de José, o adolescente negro que foi injustamente apreendido pela Polícia Militar de São Paulo e ficou 22 dias na Fundação Casa sem que a Justiça desse atenção, mesmo com todas as provas de inocência
No edifício onde vive, José*, que completou 18 anos na semana passada, é conhecido de todo mundo. Nasceu ali. Os vizinhos lembram quando a auxiliar de serviços gerais Valmira Duarte Gouveia, 48, carregava José na barriga. Eles dividem o apartamento de dois cômodos com a irmã, Carol, de 16. Três andares abaixo, fica o apartamento da irmã mais velha, Valquíria, 29, sua grande companheira de filmes na madrugada.
De boné com aba reta, skate na mão e fone de ouvido ligado no som do rapper Sabotage, José é cumprimentado com simpatia por quem o encontra. Dono de um sorriso largo, o menino negro distribui gentilezas, fruto da educação que recebeu dos pais. “Tentei passar aos meus filhos que o importante é ter caráter e honestidade. Uma vida digna”, afirma Valmira.
Engolido pelas falhas e pelo racismo arraigado no sistema de segurança pública e de Justiça, José foi levado para a Fundação Casa, onde permaneceu por 22 dias.
Injustiça
Mas, nos últimos meses, essa busca por dignidade tem passado por um enorme desafio, atropelada pela injustiça. Na madrugada de domingo, 16 de março, José foi levado de dentro de casa por policiais militares que o acusaram de um crime que não cometeu. Uma das vítimas, que sofreu um assalto a mão armada, indicou de dentro de um veículo em movimento que José teria sido um dos assaltantes. Disse que o reconheceu pela roupa, que trocou a pedido dos PMs. Na hora da ocorrência, José trajava chinelos, cueca samba-canção e camiseta branca. Fumava o último cigarro em frente ao prédio em que vive, antes de dormir. Para o reconhecimento, ele vestiu camiseta, boné, bermuda e tênis.
Havia dois suspeitos: José, negro, e um jovem branco. Enquanto José teve que passar a noite dentro da cela, o suspeito branco ficou do lado de fora e foi liberado no dia seguinte. Existem dez erros nesse processo, incluindo o reconhecimento, negado depois pela vítima, que foi um dos principais argumentos para manter José detido. Engolido pelas falhas e pelo racismo arraigado no sistema de segurança pública e de Justiça, José foi levado para a Fundação Casa, onde permaneceu por 22 dias. Os piores de sua vida e de sua família.
Durante o tempo em que José permaneceu na Fundação Casa, Valquíria deixou o emprego em um banco para se dedicar à defesa do irmão. Ela juntou as provas mostrando que José estava em casa naquela noite. Também precisou cuidar da saúde da mãe, que de tão preocupada não dormia e comia pouco. Como uma espiral, ela sabia que se a mãe estivesse bem, José ficaria firme também. Enfrentaram as revistas vexatórias mas nunca abriram mão de visitar o menino. No sábado 10 de maio, que antecedia o dia das mães, o encontrou choroso. Ele ainda não sabia por que estava privado de liberdade.
“Quero ser alguém que possa mostrar a realidade, abrir os olhos das pessoas”, José
Valquíria seguiu forte no propósito de provar a inocência do irmão. Apresentou os vídeos que mostravam que José estava em casa à Justiça, mas não teve sucesso. Procurou a ajuda de movimentos eclesiásticos e da imprensa. Os primeiros jornalistas a darem atenção à história de José foram os repórteres da Ponte André Caramante e Bruno Paes Manso. De posse do material e depois de conversar com os familiares e examinar o processo, a equipe da Ponte tomou a decisão de publicar a reportagem, mesmo antes do nascimento de seu próprio canal de jornalismo independente. O sofrimento vivido por Valmira, Valquíria, Carol e José – e por tantos outros na mesma condição – certamente valia o esforço conjunto e não dava espaço para omissões. “Todos os dias em que eu voltava para a casa do serviço, me perguntavam se o José tinha saído”, lembra a mãe. “Eu já vinha com o choro estourando, porque eu teria que dizer que não trouxe meu filho.”
De volta
Na manhã de quarta-feira, 21 de maio, a reportagem mostrando essa injustiça foi publicada no blog “SP no divã”. A partir daí, e com a pressão de movimentos sociais, a Justiça começou, finalmente, a se movimentar. E foi rápida: a notícia foi ao ar às 9 horas da manhã e repercutiu com força. A informação de que ele seria solto chegou por volta das 14h30.
Valmira e Valquíria nunca perderam a esperança de que ele seria solto. Nem José. Mas mal puderam acreditar na velocidade dos acontecimentos daquele dia. “Foi a maior felicidade do mundo”, desabafa a mãe. As duas seguiram para a Fundação Casa. Diante da obviedade da inocência de José, os funcionários da instituição se solidarizaram com a família e comemoram a sua liberdade. “Só acreditei quando vi minha irmã. Estava preparado para ficar lá por seis meses, pelo menos”, conta José. Naquela noite, já em casa, quase evitou dormir, com receio de acordar de novo na Fundação Casa.
Mas a volta para a casa não significou ainda o retorno à vida normal. José, que prefere História à Matemática, perdeu a matrícula no primeiro ano do Ensino Médio da escola Caetano de Campos. Como permaneceu internado, sua matrícula foi transferida para Fundação Casa e não se sabe quanto tempo levará para regularizar essa situação. O menino também perdeu o emprego de garçom e lida diariamente com explicações sobre a sua inocência, apesar de não querer mais falar do assunto.
Respeito é pra quem tem
Para a família, a angústia só terminará com o reconhecimento do promotor, do juiz e dos policiais pelo erro que cometeram, quando José for absolvido e se receberem indenização do Estado. “O sofrimento que passei com meu filho e a injustiça contra ele, nada vai apagar”, afirma Valmira. O medo de que ele passe novamente por uma situação como essa, persiste. “Se o tiraram do meu lado, de dentro da minha casa, não sei o que pode acontecer a ele quando estiver na rua, mas não sou eu que vou tirar a liberdade dele”, diz. “Não vou fazer com ele o que a polícia tentou fazer.”
José quer voltar à rotina normal e diz que o medo não o aflige. “Não devo nada a ninguém. Não posso ficar preso dentro de casa agora.” Porém, anda mais prevenido, deixou de fazer alguns programas e chega mais cedo em casa. Conseguiu um novo trabalho e continua andando de skate com os amigos. Está lendo “A revolução dos bichos”, de George Orwell, que ganhou do advogado.
Do futuro José espera se formar em Direito ou Engenharia. “Quero ser alguém que possa mostrar a realidade, abrir os olhos das pessoas”, conta. E nunca deixar de compor rap.
*Trocamos o nome para preservá-lo.
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Artigo de Dario de Negreiros: “Equivocam-se aqueles que repetem descuidadamente que as nossas Polícias Militares teriam sido criadas na ditadura. Ela surge, muito antes, durante o período colonial, criada para regular o negócio da escravidão. Ou seja: pode-se dizer, sem exageros, que o racismo institucional da Polícia Militar é literalmente congênito.”
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