Prefeitura quer multar usuários em R$ 412; juristas dizem que lei é incostitucional e que papel da gestão municipal é de assistência social no contexto de uso de entorpecentes
A prefeitura de Balneário Camboriú, no litoral de Santa Catarina, quer multar em R$ 412 quem for flagrado usando drogas em locais públicos. O PL 5/2024 é de autoria do prefeito Fabrício Oliveira (PL) e, após aprovação em regime de urgência, deve ser sancionado nos próximos dias. A proposta é avaliada por especialistas ouvidos pela Ponte como um “equívoco” e uma tentativa do município de ultrapassar o que prevê a Lei de Drogas. Para eles, há um público-alvo na medida: a população mais pobre. Outra cidades da região, como Itapema e Porto Belo, também aprovaram leis semelhantes no final de 2023.
A proposta de Fabrício Oliveira é imputar infração administrativa para quem “utilizar, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização” em locais públicos.
São considerados pelo PL locais públicos: avenidas, rodovias, pontes, viadutos e até mesmo hall de prédios comerciais que não estejam cercados e permitam acesso à rua. A multa será dobrada para quem for flagrado em locais como proximidade de escolas, hospitais, sedes de entidades estudantis.
A figura que fará esse trabalho é o “fiscal de posturas”, nome dado à gratificação oferecida aos guardas municipais que efetivarem as multas. A previsão da prefeitura de Balneário Camboriú, apresentada aos vereadores, é que o gasto previsto para a aplicação da lei seja de R$ 523.855,67 anuais.
Essa figura do “fiscal de posturas” também deverá fazer a apreensão das possíveis drogas, que passarão por análise em laboratório — o projeto prevê que a prefeitura poderá fazer convênio com o Instituto Geral de Perícias de Santa Catarina (IGP/SC) para análise dos materiais. Não há descrição de prazos para esse trabalho.
Se for comprovado que se trata de drogas, o processo administrativo seguirá. Caso contrário, ele será arquivado. O penalizado poderá escapar da multa se aceitar e comprovar que se submeteu a um tratamento para dependência em drogas.
O PL também prevê a possibilidade de convênio com a Polícia Militar para que os agentes atuem na aplicação da sanção administrativa. Um representante da PM também deverá compor uma “Junta Administrativa de Julgamento de Defesa de Auto de Infração pelo Uso de Drogas Ilícitas”. Constituída ainda por um representante da Polícia Civil, o grupo é quem vai avaliar as defesas apresentadas pelos enquadrados.
O recesso parlamentar não foi impeditivo para o envio do projeto ao legislativo municipal. O PL foi juntado a um pacote de medidas avaliadas pelos vereadores em regime de urgência. Dos 19 parlamentares, apenas um não teve o voto registrado e os demais foram favoráveis em votação ocorrida na quarta-feira (10/1).
O PL ainda não foi sancionado pela prefeitura, algo que deve acontecer nos próximos dias. Por meio da assessoria, a administração municipal disse que avalia duas emendas apresentadas e que só comentará sobre o projeto após a sanção.
As emendas não mudam de forma substancial o texto original. Uma delas, de autoria do vereador Nilson Probst (MDB), pede que os guardas municipais tenham que comprovar aos comandantes por meio de relatório o cumprimento do serviço. Outro ponto é que a atividade só poderá ser feita pelos guardas durante o serviço. Probst também encaminhou emenda que inclui os “fiscais de postura” na composição da Junta julgadora.
Lei para os pobres
Para especialistas ouvidos pela Ponte, o projeto está endereçado a um público específico: a população pobre e marginalizada. O PL não vai coibir o uso de drogas, dizem, que vai continuar acontecendo nos prédios da cidade que tem o metro quadrado mais caro do Brasil.
Cristiano Maronna, diretor da Plataforma JUSTA, é enfático ao dizer que a legislação não será capaz de atravessar as classes sociais. “Nós sabemos quem são os alvos, a quem essa lei se endereça. É uma lei que é endereçada a pessoas que vivem em situação de rua. Não é uma lei endereçada para qualquer pessoa porque a maioria das pessoas que usam drogas consegue fazer isso sem se incomodar, dentro de casa, no ambiente privado. Quem não tem onde morar, quem mora na rua, naturalmente, quando forem usar drogas, farão uso de drogas em público, em locais públicos. Parece-me que essa é uma lei voltada para pessoas em situação de rua, para a ‘cracolândia’, que são situações de extrema exclusão, em que as pessoas vivem em situação de rua, não têm acesso à moradia, à alimentação, não têm acesso ao básico, à dignidade humana mínima. Essa é uma lei voltada para quem já está excluído”, afirma.
Mestre e doutor em direito penal pela USP, o juiz Luís Carlos Valois concorda. “[Essa ação] Vai pegar os pobres. Os ricos, as pessoas que têm em casa, que a polícia não entra, que têm apartamentos milionários, vão continuar cheirando cocaína, tomando ecstasy, tomando seu ácido, usando suas drogas e, quanto a isso, não vai acontecer nada. Sobra para o pobre que está na rua”, afirma.
Ambos avaliam que não cabe à prefeitura legislar sobre a política de drogas, já prevista na Lei de Drogas (11.343/2006). Valois explica que o procedimento legal no caso de flagrante de posse de drogas é o encaminhamento a uma delegacia e não a aplicação de multa pela prefeitura.
“O importante é ficar claro de que a punição para esse ato é uma punição penal, que não pode ser acrescentada a outra punição. Primeiro, que não é competência do município, segundo, que já há uma punição mais severa, porque é uma punição penal de lei federal a essa conduta. Se há uma punição federal mais severa, de um direito mais amplo e mais rígido do que o direito regulado pelo Código de Postura Municipal, o município não pode regular essa atividade”, afirma o magistrado.
Na prática, exemplifica Maronna, pessoas flagradas com drogas acabam fazendo transação penal, que é um acordo por meio do qual a punibilidade é extinta. Isso funciona a partir do artigo 27 da Lei de Drogas — que prevê crime de porte de drogas para uso pessoal.
A pessoa que é flagrada nessa situação é encaminhada a delegacia, é lavrado um termo circunstanciado que vai ao Ministério Público. Antes de oferecer denúncia, o MP propõe um acordo por meio de transação penal, no qual o Estado, por intermédio do órgão, renuncia a provar a culpa da pessoa que, por sua vez, deixa de ter que provar a inocência. Assim a punibilidade é extinta. Normalmente o acordo prevê o pagamento de uma multa.
Com a multa prevista para Balneário Camboriú, ocorre o que a justiça define como bis in idem, diz Maronna. Neste caso, a pessoa seria multada pelo mesmo crime duas vezes, o que o especialista diz que não é correto do ponto de vista do Direito.
“É uma lei equivocada por todos os aspectos, que promove higienismo, que, em nome da Guerra das Drogas, na verdade, foca um público-alvo muito específico. É um público-alvo das pessoas que vivem em situação de rua, pessoas que vivem em situação de extrema exclusão. E, assim como outras leis, no mesmo sentido, ela vai ser uma lei inócua, porque as pessoas não vão deixar de usar drogas em locais públicos simplesmente porque é proibido. Se a proibição tivesse algum valor, se tivesse eficácia, a lei federal já seria suficiente. Não vai ser uma lei municipal que vai alterar esse quadro”, afirma Maronna.
Assistência social
Nathália Oliveira, co-fundadora e diretora-executiva da Iniciativa Negra por uma Nova Polícia de Drogas, endossa as críticas ao projeto. Ela defende que o papel da gestão municipal não é o adotado pela prefeitura de Balneário, mas sim de assistência social.
“O município deve promover ações de saúde coletiva. Se o município entende que as cenas de uso de droga na cidade estão sendo prejudiciais para a população, ele deve fazer ações de saúde coletiva com campanhas de prevenção, conscientização, colocando funcionários da rede para fazer atendimentos e direcionando essas pessoas para o atendimento de saúde do município”, comenta Nathália.
Cristiano Maronna, da JUSTA, fala como exemplo positivo nesta linha o programa “De Braços Abertos” implementado pela prefeitura de São Paulo na gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT).
A iniciativa atuava em pelo menos três frentes: trabalho remunerado, atividades de capacitação e alimentação e abrigo diário à população em situação de rua. Segundo dados da prefeitura, houve redução de 80% no “fluxo” na região da estação da Luz. O programa foi descontinuado nos anos seguintes à saída de Haddad da prefeitura.
Hoje, São Paulo enfrenta uma crise na segurança pública com ações policiais constantes na região pejorativamente chamada de “Cracolândia”. O prefeito Ricardo Nunes (MDB), alvo constante de críticas pela manutenção da tensão na área, já chegou a minimizar o problema, mesmo com constantes denúncias de violência na região.
Política de vizinhança
O PL de Balneário Camboriú não é inédito em Santa Catarina. Em outubro do ano passado, a prefeita de Itapema, Nilza Simas (PSD), sancionou a 4.456/2023, que prevê multa para quem for flagrado usando drogas. A manobra, no entanto, não trouxe resultados financeiros até agora, já que os 14 multados ainda não tiveram os processos encerrados.
“Não tem arrecadação ainda, pq (sic) a lei prevê contraditório e ampla defesa, ou seja, o maconheiro vai se defender primeiro para depois ser obrigado a pagar, se não pagar vai para dívida ativa“, disse a assessoria da prefeitura em resposta à Ponte.
Correções
Uma versão anterior apontava "redução de 800% no “fluxo” na região da estação da Luz". O número correto é 80%. A informação foi corrigida às 10h20 do dia 15/1/2024.