Apoiadores vão ao delírio quando Bolsonaro anuncia fim do socialismo e da ‘ideologia de gênero’, e comemoram salva de tiros de canhão como um gol em final de campeonato
“A saída é para a direita”, diz um sorridente policial militar no gramado do Congresso Nacional para orientar a multidão no final da cerimônia de posse de Jair Bolsonaro e General Hamilton Mourão como presidente e vice-presidente, respectivamente, para os próximos 4 anos. Segundo o Gabinete de Segurança Institucional, 115 mil pessoas testemunharam esta terça-feira histórica, em que o presidente de extrema direita citou Deus dez vezes, reforçou o compromisso de acabar com “ideologia de gênero”, com a “ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais” e anunciou o fim do socialismo e do politicamente correto. “Nossa bandeira nunca será vermelha, só será vermelha se precisar do nosso sangue para mantê-la verde e amarela”, disse o presidente quando discursava no parlatório do Palácio do Planalto.
A cor vermelha, aliás, foi bastante rechaçada durante a posse e o nome do ex-presidente Lula, que está preso em Curitiba, apareceu na boca do público diversas vezes – e na pichação ao lado do Congresso, conforme a Ponte já havia observado há dois dias. O predominante no figurino dos militantes era o verde-amarelo. A bandeira do Brasil virou capa, proteção para o sol e até canga para os cansados da maratona da posse deitarem no gramado da Esplanada dos Ministérios. O preto aparecia, mas em menor quantidade. As estampas iam do rosto do presidente, passando pelo bordão “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” até frases curiosas como “Se falar nesse tom de voz comigo, vamos ter problemas”, uma alusão ao que disse a juíza Gabriela Hardt durante depoimento mais recente de Lula. Em um primeiro olhar, no entanto, e ainda mais fora de contexto, a citação poderia soar como uma postura de certa intolerância para o debate. Um grupo desavisado acabou indo de laranja e parecia inevitável não fazer a ligação com as denúncias envolvendo Fabrício Queiroz, ex-assessor e motorista de Flávio Bolsonaro, um dos filhos do presidente. Mas, no final das contas, nenhum participante da festa notou.
O fim de tarde foi ensolarado, mas a ameaça de uma tempestade pairou em grande parte do dia. Com altas temperaturas e sem poder entrar com garrafas de água, o público formou longas filas nos pontos de distribuição de água potável. Para os profissionais da imprensa, credenciados ou não, o clima não estava muito favorável. Logo pela manhã, conforme informou a Ponte, em um dos ônibus que levava jornalistas e fotógrafos para o Congresso Nacional um representante do governo deu o seguinte recado: “não tentem se deslocar na esplanada, não tentem pular grades, não tentem a sorte, vocês vão tomar um tiro”.
Quem conseguiu credenciamento no Palácio do Itamaraty acabou confinado em uma sala. Informados de que teriam que esperar a tarde toda, alguns profissionais abandonaram a cobertura. O jornal O Globo informou que foram 4 jornalistas estrangeiros. A Ponte testemunhou que um outro profissional também abandonou o local e foi para o gramado da Esplanada. Nas redes sociais de jornalistas, foram inúmeros os relatos de problemas para beber água, usar o banheiro e até mesmo comer. Um dos textos bastante compartilhados ao longo da tarde foi o da jornalista Mônica Bergamo. Nos outros pontos de credenciamento, como o Congresso Nacional, houve relato de que não havia sequer cadeiras para acomodar quem estava trabalhando. Uma foto publicada no Twitter oficial da Câmara dos Deputados comprovava o fato.
Para os profissionais que tiveram o acesso aos locais oficiais negado, como foi o caso da Ponte, restou ficar no meio do povo. Mas havia um detalhe: a presença não poderia ser notada, já que a imprensa estava proibida de circular entre os militantes e realizar entrevistas. “Globo lixo!” era comumente ouvido. Outros veículos da imprensa hegemônica, como a Folha de S.Paulo, também foram criticados. “Isso a Globo não mostra”, dizia uma jovem moça de cabelos loiros durante uma live no meio da multidão em uma das rampas de acesso à Praça dos Três Poderes. “Ainda bem que o SBT e a Record existem para mostrar”, respirou aliviada. O clima de tensão foi constante. A sensação era de estar infiltrado. Era comum cruzar com colegas jornalistas e fotógrafos e fazer o reconhecimento por um olhar, um gesto singelo de positivo ou um tímido sorriso. Alguns profissionais optaram por usar o figurino bolsonarista verde-amarelo ou mesmo camisa da Seleção Brasileira com o objetivo de não levantar suspeitas. No segundo ponto de bloqueio, a reportagem da Ponte, por causa da câmera profissional, acabou questionada se era da imprensa e qual a intenção em entrar em um local onde jornalistas não poderiam, oficialmente, circular.
Se a imprensa em geral foi recebida de forma hostil, as redes sociais, pelo contrário, foram homenageadas, como informou o repórter Gustavo Maia em seu tweet. Uma delas, a grande responsável pela propagação de fake news durante a campanha de Bolsonaro.
Após gritarem palavras de ordem contra a Globo a uma repórter da emissora, apoiadores de Bolsonaro entoaram os nomes de 3 canais concorrentes: Record, SBT e Band.
Em seguida, passaram a exaltar em uníssono o WhatsApp e o Facebook.
Sim. Isso acaba de acontecer aqui em Brasília. pic.twitter.com/ztsY7S6WYi
— Gustavo Maia (@gugamaia) January 1, 2019
Apesar da extrema preocupação com a segurança do presidente, das inúmeras restrições para público e imprensa na posse, Bolsonaro não abriu mão de desfilar no Rolls-Royce presidencial ao lado da esposa Michelle, e Carlos, um dos cinco filhos do capitão da reserva. Ele, aliás, foi citado no discurso de agradecimento feito pela primeira-dama, que foi, inclusive, um dos pontos altos da cerimônia. Michelle trabalha há anos com a comunidade surda e é intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Na breve fala, uma porta-voz leu a mensagem de Michelle, que traduziu em Libras para o público.
Embora fosse possível ver muitas camisetas da CBF, item que virou símbolo anti-petista desde 2013, não ocorria jogo de futebol. Mas, em pelo menos três momentos, os bolsonaristas se comportaram como se fosse uma final de Copa do Mundo: quando Bolsonaro saiu da Catedral em direção ao Congresso no cortejo tradicional, na salva de 21 tiros de canhão e no discurso oficial no Palácio do Planalto. Gritos de “ôoo, o capitão chegou”, “mito”, muita selfie e choro descontrolado pode ser visto nesse momento. O tradicional gesto da arminha com as mãos foi a vedete do dia: feito por pessoas de 8 a 80 anos e pelo próprio presidente durante o desfile.
Bolsonaro discursou duas vezes nesta terça-feira: uma após a sessão solene no plenário Ulysses Guimarães, para parlamentares, apoiadores e outros convidados, e o outro após a entrega da faixa presidencial no Palácio do Planalto. O teor dos dois discursos foi bastante semelhante, mas o primeiro foi mais técnico e o segundo mais voltado ao público que compareceu à posse. Para agradar a primeira dama, o discurso dele também foi traduzido em Libras e a tradutora não poderia ter sobrenome mais curioso: Castelo Branco, o mesmo do ex-presidente do primeiro período da ditadura militar, também homenageada neste dia, com menções do público e até camiseta agradecendo o retorno a 1964. “Intervenção já”, gritou uma idosa, em determinado momento.
A facada, Deus e o combate à ideologia foram os nortes dos dois discursos do presidente. O bordão “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” quando era dito provocava frisson na plateia, que também foi à loucura quando Bolsonaro falou sobre combate a corrupção e o declarou que a partir desta data estão todos livres do “socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. Ele imputou a Deus ter se salvado do ataque, o sucesso da campanha, a vinda do público e chegou a mencionar, no primeiro discurso, o respeito à “tradição judaico-cristã”. “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas”.
Em outro trecho da fala, criticou os direitos humanos. “Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares”. Na sequência, para defender uma de suas bandeiras, sobre a posse de armas, bradou pela legítima defesa e foi ovacionado.
É curioso pensar que uma das definições no dicionário de ideologia é “conjunto de ideias , convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade”, exatamente tudo que contém o discurso de Bolsonaro sobre Escola sem Partido ou posse de arma. Os bolsonaristas têm na ponta da língua a ideia de que o que acabou com o Brasil foi a ideologia, conforme mostrou reportagem da Ponte com entrevista de apoiadora. A ideologia não acabou, só mudou radicalmente.
Quando a cerimônia de posse ainda estava no Congresso Nacional, o vice-presidente general Hamilton Mourão teve seus 15 minutos de fama. Com voz firme, cadenciada como uma marcha militar e em volume muito mais alto do que Bolsonaro, Mourão leu o juramento protocolar da sessão solene e virou assunto para a imprensa que transmitia a posse ao vivo. “Parece que ele está calçando o coturno”, brincou um jornalista de uma rádio.
Ao final do discurso, enquanto o público deixava a Praça dos Três Poderes, do lado de dentro do Palácio do Planalto a cerimônia, só para convidados e alguns poucos credenciados, continuava. Por causa do sistema de som instalado, era possível ouvir o anúncio dos chefes de Estado que compareceram à posse. “Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro de Israel]”, disse o cerimonialista. O público aplaudia, assoviava, bandeiras de Israel tremularam. Evo Morales, presidente da Bolívia, foi vaiado. Já o nome de Mike Pompeo, secretário de Estado que veio representar Donald Trump, arrancou mais aplausos dos presentes, fãs confesso do presidente dos EUA. Trump, aliás, que declarou no Twitter ter amado o discurso de Bolsonaro.
Em êxtase, a multidão pouco a pouco foi deixando a Praça dos Três Poderes, seguindo pela Esplanada e, no caminho, mais selfies e lives pelo Instagram e comentários sobre a posse, que se dividiam entre elogios ao discurso de Bolsonaro e críticas ao Lula. “Foi lindo e emocionante. Estamos livres do Lula e do PT”, disse uma senhora. “Tem muito mais gente do que teve na posse do Lula, com certeza. E ninguém foi pago para estar aqui. A gente veio de graça! Nem pão com mortadela tem, porque, olha, se tivesse até que seria bom agora”, disse um rapaz rindo fazendo referência a história de que a esquerda pagava a militância para comparecer a eventos. Dois rapazes brancos, com bíceps e dorso a mostra, comentaram sobre o tempo. “Parecia que ia chover mas agora o sol firmou. Dá até para pegar um bronzeado”, e seguiram.
A população verde-amarela foi sendo conduzida como em procissão pela polícia, sorridente e satisfeita pelo que viram e ouviram. No muro próximo da rodoviária, uma mãe e filha com roupas puídas mal eram notadas, bem como a pichação no muro atrás delas: “Marielle Vive”.
Com nível de tensão mais baixo, tomamos um táxi perto da rodoviária. Na breve conversa, o motorista fez sua análise. “Hoje foi a lua de mel. Amanhã é que começa o casamento. Aí eu quero ver”, disse, incrédulo.