CNJ define regras de reconhecimento de pessoas para evitar prisões de inocentes

Resolução aprovada nesta terça-feira (6) estabelece mínimo de 4 pessoas a serem apresentadas presencial ou fotograficamente junto com investigado ou processado e que Judiciário deve verificar se procedimento foi feito corretamente

Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou por unanimidade nesta terça-feira (6/12) uma resolução que estabelece diretrizes para o reconhecimento de pessoas em investigações e processos criminais a fim de evitar prisões e condenações de inocentes. O texto não tem força de lei, mas recomenda um padrão de procedimento a ser seguido pelo Poder Judiciário. A resolução ainda vai receber um número para identificar o ato normativo e passa a entrar em vigor em 90 dias.

O trabalho é fruto de um grupo de trabalho (GT) criado em setembro de 2021 e coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti Cruz, que já proferiu decisões sobre o tema que passaram a fundamentar pedidos de liberdade e de absolvição, como, por exemplo, uma de outubro de 2020 em que concedeu um habeas corpus a um homem condenado unicamente com base em um reconhecimento por foto e que especialistas consideraram na época como um importante precedente para reverter prisões realizadas apenas com esse tipo de prova.

O grupo é composto por 26 membros, entre juristas, promotores, advogados, defensores públicos, delegados, policiais e pesquisadores, que publicaram um extenso relatório sobre os estudos e discussões para embasar a proposta. A resolução é assinada pela ministra Rosa Weber, presidente do CNJ, que a considerou, durante a sessão plenária, “um passo histórico na elevação do padrão de confiabilidade da prova de reconhecimento e na qualificação da prestação jurisdicional em nosso país”.

A minuta do texto aprovada, à qual a reportagem teve acesso, aprofunda o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal para a realização do reconhecimento. A lei determina que a vítima ou testemunha descreva as características da pessoa que cometeu o crime. Depois, a pessoa a ser reconhecida seria colocada, “se possível”, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança. A vítima ou testemunha indicaria se o suspeito estaria ou não presente e isso seria documentado em um auto de reconhecimento.

A Ponte já fez diversas reportagens demonstrando que as autoridades policiais não seguiam esse protocolo e ainda eram respaldadas pelo Ministério Público e pelo Judiciário, especialmente pela condicional “se possível” redigida no artigo, em casos de pessoas reconhecidas sozinhas ou sem a descrição por parte de vítima ou testemunha, além de casos de indução prévia.

Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, integrou o GT que discutiu a proposta. Ele aponta que a resolução foi pensada coletivamente de maneira que fossem considerados estudos científicos sobre a questão da memória, do racismo e da precariedade do reconhecimento como única prova.

“Ainda que não tenhamos uma lei processual penal, mas uma resolução, ela vai pautar e vai fazer, de acordo com a Constituição e as leis, a filtragem das provas produzidas. Isso é muito importante para que, no caso das polícias, haja uma adequação do que está sendo levado ao Judiciário, que vai analisar o que deve ser considerado prova e o que deve ser rechaçado”, explica. “Apostamos que essa resolução pode ser o fio condutor das mudanças estruturais nas práticas incorretas e inadequadas feitas até agora.”

A norma do CNJ define as seguintes regras para o reconhecimento:

  • A(s) vítima(s) e/ou testemunha(s) deverão ser entrevistadas separadamente e sem que elas tenham contato ou saibam como cada uma fez o seu relato de descrição das pessoas investigadas ou processadas pelo crime.
  • A descrição deve ser feita “por meio de relato livre e de perguntas abertas, sem o uso de questões que possam induzir ou sugerir a resposta”. As autoridades não poderão dar informações sobre a vida pregressa das pessoas a serem reconhecidas ou qualquer tipo de dado que possa fazer esse tipo de indução. A vítima e a testemunha devem relatar detalhes sobre a dinâmica dos fatos, como distância aproximada a que estava das pessoas que praticaram o crime, o tempo aproximado durante o qual visualizou o rosto dessas pessoas, as condições de visibilidade e de iluminação no local.
  • Vítima, testemunha e pessoas investigadas ou processadas terão de preencher uma ficha de autodeclaração de cor (dizer como se identifica). Depois, vítima e testemunha preenchem uma ficha de heteroidentificação de cor, ou seja, dizem a cor de pele da pessoa que cometeu crime e é feita uma comparação das informações, sendo que ambas devem estar baseadas no padrão de identificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): preto, pardo, branco, amarelo e indígena.
  • A vítima e a testemunha têm que ser questionadas se tiveram algum acesso prévio a fotografias, imagens de suspeitos ou conversa com policiais e/ou outras pessoas sobre as características do(s) suspeito(s) de crime.
  • A vítima e a testemunha devem ser alertadas, quando forem realizar o reconhecimento, de que: 1) a pessoa pode ou não estar entre as selecionadas para o reconhecimento; 2) elas podem reconhecer alguma das pessoas selecionadas ou não reconhecerem qualquer uma; 3) a investigação do caso vai continuar independentemente do resultado do reconhecimento e 4) elas devem informar o grau de confiança na resposta. Elas também podem fazer o reconhecimento sem serem vistas pelas pessoas que serão submetidas ao procedimento caso tenham algum receio ou se sintam intimidadas.
  • O reconhecimento é uma prova irrepetível, ou seja, realizada uma única vez, “consideradas as necessidades da investigação e da instrução processual, bem como os direitos à ampla defesa e ao contraditório”.
  • A pessoa que será submetida a reconhecimento pode constituir um advogado ou defensor público para acompanhar o procedimento, seja presencial ou fotográfico.
  • A pessoa investigada ou processada deve ser apresentada junta com, no mínimo, quatro outras que tenham as mesmas características informadas por vítima e/ou testemunha. O reconhecimento deverá ser feito, “preferencialmente”, de forma presencial, mas também pode acontecer por foto, seguindo esse mesmo critério e de maneira que nenhuma se destaque das demais. As pessoas ou as fotos poderão ser apresentadas de maneira simultânea (todos ao mesmo tempo) ou sequencial (em que se apresenta uma de cada vez “em iguais condições de espaço e períodos de tempo”). Também deverá ser “assegurado que as características físicas, sexo, a raça/cor, a aparência, as vestimentas, a exposição ou a condução da pessoa investigada ou processada não sejam capazes de diferenciá-la em relação às demais”. Isso significa, por exemplo, que não pode uma pessoa estar algemada e as outras não durante o reconhecimento.
  • Não poderá ser apresentada apenas uma única pessoa ou uma única foto em todo o procedimento para evitar o chamado show up, em que vítima ou testemunha acaba sendo induzida por uma única sugestão e pode gerar uma falsa memória. A autoridade também não pode fazer sugestões ao mostrar apenas imagens de pessoas processadas ou investigadas, proveniente de álbuns ou extraídas de redes sociais.
  • O reconhecimento também terá de ser gravado. O ato de reconhecimento será reduzido a termo, de forma pormenorizada e com informações sobre a fonte das fotografias e imagens, para juntada aos autos do processo, em conjunto com a respectiva gravação audiovisual.
  • A autoridade judicial vai ter que avaliar se todo o procedimento foi seguido corretamente e também deve se atentar ao restante das provas obtidas, uma vez que o reconhecimento presencial ou por foto como única prova é “precário” e sujeito à “falha humana”.

O CNJ também aponta no texto que, para o cumprimento da resolução, os tribunais deverão promover “cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados, magistradas, serventuários e serventuárias que atuam nas Varas Criminais em relação aos parâmetros científicos, às regras técnicas, às boas práticas, aos problemas identificados pelo GT Reconhecimento de Pessoas”.

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Um dos estudos mencionados tanto no relatório do GT quanto na nota técnica da resolução é um levantamento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que localizou 58 casos de reconhecimento fotográfico que resultaram em acusações injustas e prisões de pessoas inocentes. O relatório foi feito com defensores públicos de 19 varas criminais do estado, entre 1º de junho de 2019 a 10 de março de 2020, e reforça o impacto do racismo estrutural: 70% dos acusados injustamente, ou 40 deles, eram negros.

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