Ex-alunos e ex-funcionários relembram episódios onde instituição foi conivente ou agiu com discurso de ódio; escola no interior de SP expulsou alunos após caso de apologia ao nazismo denunciado pela Ponte
O episódio de racismo ocorrido no Colégio Visconde de Porto Seguro, revelado pela Ponte na semana passada e que culminou com a expulsão de oito alunos que participaram de manifestações de apologia ao nazismo, não é um caso isolado. Ex-alunos e ex-funcionários da instituição de ensino centenária contaram que bullying, comparações preconceituosas e intolerância velada sempre fizeram parte da rotina da escola.
Mesmo que alguns casos tenham ocorridos há mais de uma década, as pessoas que tiveram alguma ligação com o Porto Seguro ainda temem represálias por parte da escola e preferem não ter os seus nomes publicados. Um dos motivos para esse temor é a possibilidade da perda do cargo, já que esse segmento do ensino particular é o que melhor remunera professores, por exemplo, chegando a ultrapassar os R$ 100 cada hora de aula dada. Em termos de comparação, segundo o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino de São Paulo, a hora/aula vigente atualmente é de R$ 23,02, para professores que lecionam no ensino médio.
Uma ex-funcionária do Visconde de Porto Seguro conta que no início da década de 2010 a escola passou por uma mudança administrativa e pedagógica, trocando boa parte da diretoria. Ela explica que antes o colégio não fazia propaganda para atrair novos alunos e prezava muito pela tradição e histórico da instituição. “Eles começaram a ver que estavam perdendo alunos para outros colégios e passaram a ser mais flexíveis em relação aos pedidos de alguns pais”, conta.
Por ter trabalhado mais de dez anos na escola, ela percebeu que o conservadorismo do colégio, que era um dos pilares de ensino, passou a ser muito semelhante ao movimentos antipetistas que ganharam força a partir de julho de 2013 e que essas manifestações chegaram de forma muito violenta ao ambiente escolar.
“Não aguentava mais o ambiente insalubre que a escola havia se tornado. A escola não investe seriamente em prevenção e nem em educação para a democracia. A coisa ali ocorre de forma superficial e para inglês ver. Quando saiu o golpe contra a Dilma, as crianças foram orientadas pela direção a desenhar para uma exposição que tinha como tema ‘seus sonhos para um Brasil melhor’. Você não imagina o que teve de Lula e Dilma metralhados e ensanguentados.”
Segundo a ex-funcionária, não houve nenhum tipo de reflexão da escola com os alunos sobre as imagens expostas. Ela também conta que era comum ouvir entre pessoas da área pedagógica discursos contra uma possível doutrinação de esquerda nas escolas, sobre a teoria da conspiração do “marxismo cultural” e ofensas contra o educador Paulo Freire, discursos comuns na extrema direita brasileira reforçados durante o governo Bolsonaro.
Flávio Assis, mestre pela USP e professor da rede particular, está desenvolvendo uma pesquisa com professores negros que atuam em escolas de alto padrão nas cidades de São Paulo e Salvador. Ele diz que os relatos que tem colhido mostram que o preconceito está entranhado nestas instituições e que as ações feitas para combater o racismo são insuficientes.
“O que existe nessas escolas é um verniz. O racismo à brasileira é muito sofisticado. Esses colégios são a fina flor dessa sofisticação. Nos últimos tempos eles se veem obrigados a incluírem pessoas negras em seus quadros, para darem algum tipo de satisfação à sociedade, ao mesmo tempo em que não é dado respaldo a esses funcionários quando há alguma queixa de aluno ou dos seus pais. A autoridade de um professor negro é colocada em xeque quando ele dá uma nota baixa para um aluno e a família vai se queixar a direção. Dificilmente esta reclamação é feita da mesma forma se for contra um professor branco de sobrenome italiano”, explica.
Segundo uma pesquisa do Datafolha sobre preconceito no ambiente educacional, encomendada pela Associação Mulheres Pela Paz, no ano passado, mostrou que ao menos um em cada cinco professores negros da rede pública paulista diz já ter sofrido discriminação racial.
Para não parecer um lixeiro
A podcaster Ângela Goldstein estudou na unidade de Valinhos do Colégio Visconde de Porto Seguro de 1991 até 2003 e nas lembranças dela a escola era um lugar muito rígido e exigente com os alunos. Ela cita como exemplo que todos os alunos tinham que se levantar a cada vez que um professor entrava na sala de aula.
A ex-aluna conta que nos 12 anos que estudou no Porto Seguro teve apenas um colega de classe negro e nunca teve uma aula sequer com um professor que não fosse branco. Goldstein relembra de um episódio que ela presenciou na escola, quando ela tinha apenas 8 anos de idade, e mostra o tipo de racismo velado dentro da instituição.
“A diretora do fundamental 1 ia de vez em quando na nossa sala pra falar com os alunos e quando ela via alguém com a camiseta do uniforme pra fora da calça, dizia para colocar para dentro para ficar arrumado porque lá não era escola de filho de lixeiro. Imagino que algumas gerações de ensino fundamental da escola foram formadas ouvindo isso da diretora”.
Ângela, que é judia, diz ter ficado estarrecida ao ver que na mesma escola onde estudou os alunos atualmente fazem apologia ao nazismo. “Ler essa notícia me deu um mal estar absurdo. Faz vinte anos que eu saí de lá, mas não deixa de ser a minha escola. Deu vergonha de ter o nome dessa escola no meu currículo”, define.
Para Edneia Gonçalves, coordenadora executiva adjunta da Ação Educativa, associação civil que atua nos campos da educação, da cultura e da juventude, há uma complacência dos colégios com os discursos de ódio que estão no debate público atualmente. Ela reforça que as instituições de ensino, mesmo que particulares, têm uma função social e que não devem permitir certas condutas de pais e alunos apenas por conta do fator financeiro.
“O que sempre houve agora está mais explícito e normalizado. Há um incentivo e colocar os discursos racistas como mera liberdade de expressão. A escola tem responsabilidades e precisa combater isso, mas vemos que muitas ainda colocam em seus currículos o mito da igualdade racial. Toda escola, mesmo que particular, precisa ser equitativa e antirracista”, explica.
Outro lado
A Ponte procurou o colégio Visconde de Porto Seguro para comentar as novas denúncias, mas não recebeu resposta a tempo. Se a instituição se manifstar, este espaço será atualizado.