Coluna LASInTec | Cães de guarda e o policiamento hightech

    Na primeira coluna do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Eppen/Unifesp, prefeitura e governo de São Paulo apostam no “mais do mesmo” nas polícias — com figurino tecnológico

    Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

    No dia 20 de fevereiro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Recurso Extraordinário (RE) 608588, atribuiu o status de polícia ostensiva e comunitária às Guardas Civis Metropolitanas (GCM), criadas e lideradas pelas prefeituras. Dias depois, o sucesso da decisão já permitiu que prefeituras como a de Itaquaquecetuba mudassem os nomes de guardas civis municipais para “polícia municipal”.

    O STF se apoia numa interpretação bastante elástica do parágrafo 8º do artigo 144 da Constituição Federal, que estabelece, sem margens de dúvidas, que as guardas se restringem à proteção do patrimônio do município. Diz o texto: “os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.”

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    Criadas oficialmente como guardas civis patrimoniais para assegurar prédios e propriedades do município, a decisão apenas reconhece (e, de certa forma, amplia), na jurisprudência, o que já ocorria de fato: as Guardas Civis são polícias ostensivas das prefeituras. Ela também estabelece um entendimento comum para o judiciário brasileiro sobre o status legal de polícia já reconhecido e ampliado por decreto federal expresso na Lei 13.022/2014, o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

    Não é de hoje que o lobby policial é capaz de produzir leis que atendem aos seus interesses paroquiais. Em grandes centros urbanos, as guardas municipais já atuavam como polícia há muito tempo e, apesar do nome civil, exibiam conduta e formato extremamente militarizado, bastando observar suas intervenções de policiamento comunitário em regiões do centro da cidade de São Paulo conhecidas como Cracolândia, especialmente a partir dos anos 2000.

    Sobretudo em São Paulo, essa forma-polícia militarizada das GCMs, que simulam e emulam a ostensividade da Polícia Militar, não é recente. Qualquer pessoa que tenha vivido na capital paulista nos anos 1980 e 1990 deve se lembrar do que era conhecido como “a polícia do Jânio”. Em seu mandato, entre 1986 e 1989, o prefeito pelo PTB, Jânio Quadros, criou a GCM, por meio da Lei Municipal Nº 10.115, de 15 de setembro de 1986, e lhe atribuiu uma fama que ia muito além do trabalho de zeladoria e cuidados patrimoniais para o município.

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    Na época, os alvos dessa “nova” polícia eram os chamados “meninos de rua”, que cheiravam cola nas praças do centro da cidade e roubavam correntinhas de ouro das madames; os “pixadores” (com X mesmo), prática que era uma febre entre os jovens dos anos 1980/90; os skatistas, que quando eram pegos andando nas praças tinham seus equipamentos roubados pelas guardas; os punks e os darks, que andavam livres e em bando pelas ruas e, por vezes, se reuniam dentro dos cemitérios municipais; e, por fim, a polícia do Jânio tinha como alvo sazonal os foliões que, eventualmente, eram pegos com um tubo de lança-perfume durante o carnaval fora dos bailes promovidos pelos clubes desportivos.

    É evidente que essas imagens eram mobilizadas para justificar a criação e a ostensividade das guardas e, sob essas imagens, atingir pessoas que não necessariamente correspondiam a essas figuras sociais. No entanto, elas poderiam atingir (e efetivamente atingiam) pessoas que eram todas essas coisas ao mesmo tempo: punks, pixadores e skatistas. Cabe notar que os alvos da recém-criada GCM eram as práticas e comportamentos de crianças e jovens marginalizados, o que certamente colaborou para encher as cadeias criadas para jovens em São Paulo, como a Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM), que não distinguia entre crianças e jovens “carentes” e/ou jovens “infratores”.

    Ilegalismo que massacra jovens pobres

    Estas cadeias foram objeto de preocupações sociais do Movimento de Defesa do Menor e palco de regulares rebeliões (*3), que se seguiram mesmo após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o que não freou a morte em larga escala de jovens nem o circuito de produção da delinquência e dos ilegalismos que massacra crianças e jovens pobres até hoje, apesar de estabelecer, a partir de então, a diferença entre condição de abandono e praticante de ato infracional e de diferenciar, apenas na letra da lei, política de assistência e punição, nomeada pelo ECA de medida socioeducativa.

    A militarização e a expansão da GCM se consolidaram logo em seguida, em 1993, quando Paulo Maluf, prefeito pelo PDS de 1993 a 1997, criou, no interior da Guarda Civil de São Paulo, as Rondas Ostensivas Municipais (ROMU), copiando e emulando o 1º Batalhão especial da PM-SP, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA). Em picapes Chevrolet D20, as viaturas da ROMU circulavam com armas à mostra e boinas pretas como as da ROTA. Além dos alvos já descritos, patrulhavam ostensivamente jovens negros usuários de maconha (ou não) nos bairros periféricos da cidade, além de perseguir moradores de rua pelo centro tomando seus poucos pertences como carroças de reciclagem e cobertores.

    Em resumo, a lei federal de 2014 e a recente decisão de entendimento do STF apenas dão ordenamento jurídico e jurisprudência a uma forma de polícia existente faz quase quatro décadas, coroando a dimensão local do executivo com mais uma polícia para chamar de sua: o presidente tem sua polícia, o governador tem sua polícia e, agora, o prefeito também tem, de fato e de direito, a sua polícia.

    O Smart Sampa e o ‘prisômetro’ de Ricardo Nunes

    Neste carnaval de 2025 o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), criou o prisômetro. Trata-se de um painel, ligado 24 horas, que atualizará, em tempo real, o número de detenções realizadas por meio do sistema de segurança com câmeras baseado no uso de inteligência artificial generativa chamado Smart Sampa. Esse sistema opera por meio de reconhecimento facial para identificar suspeitos, foragidos e pessoas desaparecidas. Uma ação espetacular que conta com a devida cobertura midiática e repercussão, contra e a favor, em redes sociais, cumprindo a função principal de anunciar que, a partir de agora, a cidade de São Paulo está toda mapeada por câmeras que contam com programação robótica para capturar indesejáveis.

    Ainda que o núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo tenha pedido a suspensão do contador de detenções, o recado já estava dado e as pessoas passaram a andar pela cidade com essa informação registrada.

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    O Smart Sampa foi lançado em maio de 2023, em meio a um processo já avançado de esvaziamento do City Câmeras, quando a prefeitura de São Paulo, que era liderada por João Dória (PSDB), por meio da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU), abriu o edital para a contratação de serviços destinados à implantação do mais novo sistema de videomonitoramento municipal.

    Esse novo programa substituiria todos os anteriores, incluindo o City Câmeras, o SP+Segura e o CompStat. O consórcio ganhador, Smart City, composto pelas empresas CLD Construtora, Laços Detentores e Eletrônica LTDA, Flama Serviços LTDA, PK9 Tecnologia e Serviços LTDA e Camerite Sistemas S.A. — sendo esta última a principal doadora de câmeras para o antigo City Câmeras —, assinou contrato com o prefeito Ricardo Nunes em agosto do mesmo ano, com custo mensal de R$ 9,8 milhões para os cofres públicos.

    O contrato prevê a instalação de 20 mil câmeras até o final de 2024, além da integração de outras 20 mil câmeras, que serão cedidas através de parcerias público-privadas. Em comparativo com a atual população paulistana, isso implica em uma câmera para cada 300 habitantes.

    A Smart City, com este contrato, passa a ser responsável pela criação da plataforma Smart Sampa, que vai concentrar e integrar não só as imagens geradas por estas câmeras, mas também os diversos sistemas das demais secretarias, descrito no edital como item principal na implementação do novo sistema. O objetivo, para além da repressão e captura de infratores, é que o sistema seja um primeiro passo para a implantação de sistemas integrados da Plataforma Inteligente, permitindo a troca de informações rápida e a interoperabilidade entre sistemas, com auxílio de IA generativa para o processamento e tratamento das imagens.

    No decreto de criação do mais novo investimento computo-informacional, lançado em 4 de julho do último ano, assim como no Muralha Paulista, tratado no nosso Boletim 40, o sistema de videomonitoramento combina descentralização na captação de informações com centralização num banco de dados tratado por IA (Inteligência Artificial). O sistema prevê integrar, além das câmeras via parcerias público-privadas, todos os órgãos de segurança pública da cidade, as centrais de monitoramento de câmeras de vigilância e os serviços de urgência e emergência.

    Desde já, ele está integrando a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) com o banco de dados de pessoas desaparecidas. O decreto também anuncia em seu artigo 9° que o Smart Sampa poderá ser integrado com os sistemas operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Além disso, o sistema está integrado à plataforma Córtex, a base de dados criminais do governo federal, por acordo assinado com a prefeitura de São Paulo em 10 de janeiro de 2025.

    Fetiche tecnológico para impressionar

    A central de monitoramento do software paulistano foi inaugurada no dia 4 de julho de 2024, no Centro Histórico de São Paulo, na Rua XV de Novembro. Neste palco de lançamento da central, um novo gadget securitário também estava sendo testado: o cão-robô da cidade de São Paulo. Segundo Leandro Ramalho, inspetor da GCM de São Paulo e comandante do Dronepol, o novo pet foi testado durante os horários de pico do almoço na mesma rua que também é endereço da Bolsa de Valores.

    A central de monitoramento possui uma infraestrutura que lembra os cenários de filmes policiais futuristas, repleta de computadores e grandes painéis em que se veem imagens das câmeras e os dados sobre as ocorrências da cidade. Nela, trabalham mais de 400 funcionários da GCM e da Defesa Civil. O prédio funciona 24 horas e abriga, além da Coordenação do Smart Sampa, a Central de Monitoramento do Smart Sampa e a Superintendência de Operações Especiais (SOI).

    Tudo é feito e comunicado para impressionar. Mais importante do que os recursos tecnológicos em si são os efeitos que esse tipo de parafernália produz nas pessoas. Cabe anotar que muito dessa tecnologia já opera privadamente em prédios e condomínios e, como visto, o objetivo — e a promessa — é que tudo isso esteja integrado em um grande cérebro eletrônico com inteligência artificial/policial generativa.

    Exalta-se, também, que essa capacidade de registro quase infinita e a extensão quase total da capacidade de monitorar ambientes a céu aberto servirá para encontrar pessoas desaparecidas, responder de forma rápida e eficiente a catástrofes ambientais e combater violações de direitos humanos, como violência doméstica.

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    Toda essa tecnologia de última geração opera e realiza a função mais antiga derivada da modernização da polícia que é a ciência política como ciência da polícia, tratando-se precisamente de um saber sobre a cidade para gestão de sua população, agora ampliada para gestão ambiental, em movimento e em tempo real. Toda uma capacidade de gestão das pessoas em sua coletividade pode ser simultaneamente individualizada pelo reconhecimento biométrico; o ambiente, antes imprevisível e até hostil, pode ser controlado em tempo real; a repressão de determinadas condutas indesejadas pode agora ser interceptada e até antecipada; a capacidade de intervenção pode, finalmente, ser automatizada e impessoalizada por um cérebro de robô.

    A polícia sempre se pretendeu preditiva, e a IA generativa que opera esses sistemas de monitoramento promete realizar essa utopia moderna do governo das polícias.

    Uma economia política da polícia

    Como visto, desde os anos 1980, São Paulo parte na linha de frente na criação de uma polícia para o executivo municipal chamar de sua. Quando, em 2014, a então presidente Dilma Rousseff (PT) criou o Estatuto Geral das Guardas Municipais, as tropas já se espalharam por todo o território nacional. Vejamos uma amostra de seu tamanho e de seus custos hoje. Os dados a seguir foram retirados de notícias e relatórios governamentais.

    Atualmente no Brasil, dos 5.570 municípios existentes, 1.322 (23,7%) têm suas Guardas Civis Metropolitanas estabelecidas. O efetivo total destas guardas soma 101.854 agentes, dentre eles 86.230 homens e 15.624 mulheres. Apenas no estado de São Paulo, dos 645 municípios existentes, 219 têm suas Guardas Civis Metropolitanas estabelecidas, o que representa 16,5% do número de todas as Guardas do país. O efetivo total destas Guardas soma 26.608 agentes, dentre eles 21.900 homens e 4.708 mulheres. Somadas, as Guardas Municipais no Brasil formam o terceiro maior efetivo de agentes de segurança no país, perdendo apenas para as polícias militares e civis estaduais.

    A tendência, sobretudo após a decisão do STF, é de crescimento exponencial em comparação com as polícias que, por enquanto, são maiores e mais numerosas que as GCMs. Entre os anos de 2013 e 2023 a quantidade de policiais militares caiu 6,8%, e a de policiais civis estaduais caiu 2%. Em contrapartida, o número de prefeituras que criaram guardas municipais aumentou em 35,7% na mesma década. Nota-se que 34 municípios excediam, no ano de 2023, a previsão legal e possuíam mais agentes do que a legislação federal permite. A maioria desses municípios é formada por cidades pequenas, com até 50 mil habitantes.

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    Os estados com o maior número de agentes subordinados às GCMs de seus municípios são, respectivamente: 1) São Paulo (26.608 agentes); 2) Rio de Janeiro (16.076 agentes); e 3) Bahia (9.524 agentes). Os estados com o maior número de Guardas Municipais estabelecidas são, respectivamente: São Paulo (219 municípios); Bahia (214 municípios); Pernambuco (91 municípios); e Ceará (90 municípios).

    A manutenção de um efetivo deste tamanho tem seus custos. Só a cidade de São Paulo recebeu, em 2024, recursos do Ministério da Defesa e do Ministério da Justiça e Segurança Pública que totalizaram R$1.134.981.360, destinados principalmente a pessoal e equipamentos, sobretudo armas letais e menos letais (chamadas de não-letais). Considerando apenas a GCM de São Paulo, seus gastos com armamentos chegaram a R$ 14.359.791,34 em 2023. Esse montante foi gasto com a compra de 98 carabinas 9mm (R$ 760.314,38), 41 fuzis 5.56 (R$ 478.451,96), 2091 pistolas (R$ 13.121.025,00) e 110.000 munições (R$ 529.100,00).

    A partir destes dados, é possível destacar mais alguns pontos sobre as Guardas Municipais no Brasil. O dado que indica o crescimento de agentes das GCMs e o decrescimento de agentes da Polícia Militar deve ser analisado, inicialmente, a partir de duas chaves: 1) Formação flexível: se a formação de policial militar leva de 1 à 3 anos, a formação teórica e prática de um agente da GCM leva de 6 à 9 meses; e 2) Maior remuneração e melhor sistema interno de progressão de carreira na GCM.

    Quanto ao primeiro ponto, cabe ressaltar que a militarização progressiva das GCMs, bem como o aumento intensivo dos investimentos em armamento pesado para este órgão da segurança na cidade de São Paulo, estão sendo realizados no contexto de uma formação precária e atropelada dos agentes. Isso não significa que um maior tempo de formação dado aos agentes de segurança ou burocratas armados seria capaz de fornecer algum ganho em termos de controle de sua inerente violência, mas sim que se opta pelo caminho mais barato para a formação de tropas.

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    Há uma diferença significativa entre a atuação de um agente de segurança que passa por 326 horas de treinamento de tiro defensivo (caso da Polícia Militar) e um burocrata armado que passa por 150 horas (agentes da GCM); principalmente quando o agente da GCM tem à sua disposição, na cidade de São Paulo, mais de 110 espingardas calibre 12mm, mais de 83 fuzis 5.56mm e mais de 153 carabinas 9mm. Os salários também ajudam na contenção de custos, uma vez que manter um efetivo da GCM é mais barato.

    Nessa economia política da polícia, que vive e dá forma à utopia da previsão e de uma segurança preditiva, não interessam apenas os cálculos econômicos, mas sobretudo o cálculo político que visa a produção de condutas esperadas, programáveis e moduláveis. Nesse ponto, os atuais investimentos em policiamento preditivo buscam um acréscimo de valor, um ativo entre o humano e o não-humano, que vê na inteligência artificial generativa uma panaceia.

    A segurança operada pela racionalidade neoliberal não é apenas uma organização racional da violência para defesa da propriedade, dos proprietários e do Estado, mas também um ativo político e econômico que produz valor e ordem, a qual é emoldurada por um quadro jurídico elástico o suficiente para atender interesses imediatos e (re)programáveis.

    A recente decisão do STF sobre as guardas municipais é um exemplo: no governo das polícias vale mais a flexibilidade no governo das condutas e no controle das ruas do que a letra dura do império da lei. Nesse cenário, a formação de forças extralegais e parapoliciais é mais do que previsível; é esperada.

    Leí, o cão robô da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo | Foto: Divulgação/SMSU

    Cães humanos, não-humanos e robôs

    A prefeitura da cidade de São Paulo, em uma ação conjunta à GCM, iniciou o ano de 2025 com uma demonstração do comprometimento da atual gestão com o investimento financeiro e aprimoramento tecnológico na segurança pública. Durante a tradicional queima de fogos na Avenida Paulista, a mais nova aquisição da GCM, um cachorro-robô, previamente discutido, desfilava entre os policiais garantindo segurança aos celulares das milhares de pessoas que ali decidiram acompanhar a virada de ano.

    O cão-robô é sempre acompanhado por pelo menos três agentes da GCM e tem autonomia para funcionar a uma distância de até 300 metros do controle; além disso, é equipado com câmeras que utilizam algoritmos de reconhecimento facial por IA generativa, transmitindo imagens em tempo real para a central do Smart Sampa. Os cães-robô, longe de servirem apenas para uma captação em larga escala de biometria facial, o que radicaliza a já intensa permeabilização dos dispositivos securitários em todas as esferas e espaços da vida cotidiana, podem ser úteis para apaziguar “enquadros” e tranquilizar o contato dos agentes de segurança com a população por serem considerados, segundo as notícias de sua criação, “animais mais amistosos”, além de promover a chamada acumulação primitiva de dados (Colonialismo Digital).

    O pet é operado por joystick e controlado por GCMs treinados pelo programa Dronepol, que está entre os cursos preparatórios em armas menos-letais (ditas não-letais) ofertados a GCM paulistana sob comando de Leandro Ramalho, Inspetor Superintendente da IOPE/GCM (Inspetoria Regional de Operações Especiais). Os bichinhos eletrônicos são produzidos na China pela mesma empresa que é responsável por fornecer as câmeras utilizadas no Smart Sampa. O sistema de vigilância, ao qual o pet serve e que, segundo a SMSU, é o maior e mais completo sistema de câmeras inteligentes com as mais modernas tecnologias de inteligência artificial generativa, realiza o reconhecimento por biometria facial de pessoas foragidas e desaparecidas. Basta que sejam registradas pelo cão ou pela câmera.

    Apoie a Ponte!

    O sistema também pode reconhecer placas de carros. Para isso, trabalha por meio de algoritmos que geram alertas sobre possíveis atos classificados por lei como criminais: vandalismos, invasões e furtos. Assim como o Muralha Paulista, do governo estadual, e o Córtex, do governo federal, a prefeitura garante que o sistema respeita a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados, Lei nº 13.709/2018). Com seis meses de sua implantação, o Smart Sampa já é responsável por mais de 1.900 prisões e conta com 23 mil câmeras já em uso (dados de dezembro de 2024). Como visto, a aposta na criação de leis que conteriam eventuais abusos dessas tecnologias e seus usos, também compõe a utopia securitária, pois, em geral, sucumbe à elasticidade do governo das polícias e ao casuísmo hermenêutico da jurisprudência.

    O sistema que compõe o Smart Sampa é tão cheio de conexões, interfaces e protocolos que a tarefa de o descrever é sempre inacabada, mas paremos nesse brinquedinho hightech: o cão-robô. Essa figura de um animal não-humano artificial, supostamente mais simpático e capaz de despertar a curiosidade das pessoas, expõe uma verdade evidente sobre as tecnologias políticas da polícia: a figura servidora do cão, não aquele de rua que corre livre pelas calçadas e causa repulsa nos cidadãos, mas aquele dócil e obediente que está adestrado para proteger a propriedade e garantir a ordem. Ele é, em uma só figura, o que toda uma tradição crítica sempre disse sobre a polícia: cães de guarda da ordem e robozinhos do sistema.

    LASInTec é o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Eppen-Unifesp Osasco. O texto acima é de autoria coletiva e faz parte do projeto de pesquisa e extensão do Departamento de Relações Internacionais. Colaboraram em sua produção os pesquisadores Acácio Augusto, Ana Clara da Mata, Clara Lis Tucci Schiewaldt, Fabio Felix, Gabriella de Biaggi, Gislaine Amaral Silva, Helena Wilke, Ingride Miranda, Joana Barros, Juan Rodrigues, Júlia Tibiriçá, Lou Barzaghi, Lucca Coelho De Oliveira, Lúcia Soares, Maria Clara Teixeira Minussi, Roberta Da Silva Medina, Samuel Andreatta e Thaynna Loureiro de Oliveira.

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