Supremo julga pedido de habeas corpus em favor de um homem negro condenado por tráfico. A Defensoria diz que policiais agiram de forma racista e que provas são ilícitas
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, até semana que vem, o julgamento do habeas corpus (HC) 208.240, que pede anulação de sentença proferida contra um homem negro condenado após ter sido flagrado com 1,52g de cocaína. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) pediu o HC por entender que o réu foi alvo de racismo pelos policiais que o abordaram. Isso porque a legislação prevê que revistas pessoas sem mandado judicial só podem acontecer quando houver “fundada suspeita”, o que, segundo a defesa, não teria acontecido no caso do homem, que estava parado no meio fio ao lado de um carro no momento da abordagem.
Sem fundada suspeita, as provas colhidas devem ser consideradas ilícitas, o que anula a condenação. Soma-se a isso, nesse caso, o fato de o homem estar com uma quantidade ínfima de drogas, que declarou serem destinadas ao consumo pessoal. A decisão original emitida pela 1ª Vara Criminal de Bauru condenava o réu a uma pena de 7 anos, 11 meses e 8 dias de reclusão por tráfico de drogas. Como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) negou o recurso, a defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O STJ, por sua vez, reduziu a pena para dois anos e 11 meses em regime aberto, mas não anulou a sentença por não acatar a tese de que houve “perfilamento racial.”
O perfilamento racial acontece quando agentes de segurança submetem pessoas a revistas ou investigações com base em critérios genéricos como raça, cor, etnia, descendência ou nacionalidade. O relator do caso, ministro Edson Fachin, disse na sessão desta quarta-feira (8/3) que “se a referência à cor da pele fosse supérflua, ela não estaria no auto de prisão flagrante e nem seria o primeiro elemento indicado pelo policial no boletim de ocorrência”.
“Talvez o homem estivesse apenas conversando com o motorista do carro, mas a suspeita era de que se tratava de uma atividade ilícita por ser um negro em local suspeito”, acrescentou o relator. O local onde ocorreu o flagrante é conhecido como ponto de compra e venda de drogas na cidade. No entanto, Fachin, em acordo com a argumentação da Defensoria, entendeu que a atividade de parar ao lado de um carro não produz, por si só, evidências de que estaria ocorrendo traficância.
Na quinta-feira passada (2/3), os ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça e Dias Toffoli divergiram de Fachin e votaram contra o habeas corpus. Nesta quarta, Kassio Nunes Marques também votou por não conceder o HC, o que resultou em quatro votos contra e um a favor. O próximo a se manifestar seria Luiz Fux, que pediu vista (mais tempo para analisar o caso) do processo por considerar que, diante da relevância deste caso e dos pontos trazidos pelos demais colegas, o julgamento deveria ocorrer com o quórum completo do Supremo.
Os quatro ministros que deram voto contrário ao recurso concordaram que o perfilamento racial deve ser combatido, mas apontaram que, no mérito deste caso em específico, não houve provas suficientes de que os policiais agiram com base no preconceito. Moraes retomou sua argumentação da semana passada e disse que “todos nós partimos da mesma premissa, o perfilamento racial infelizmente existe e faz parte de uma chaga que é o racismo estrutural”. Porém, defendeu que “esse caso é muito ruim” para se reconhecer a existência de perfilamento.
“Eu tomei ocuidado de verificar que na mesma semana dezenas de abordagem ocorreram contra brancos e contra negros no mesmo local e com o mesmo procedimento”, argumentou o ministro, que disse se tratar de um dos cinco lugares com mais apreensões de drogas no varejo em Bauru. Kassio Nunes Marques fez coro com Moraes. “Imaginemos um traficante um pouco maior em um caso como esse absolvido por perfilamento”, disse, e acrescentou que todo o trabalho de grupos de direitos humanos e entidades que lutam pelo fim do racismo “iria pelo ralo”. “Então temos que escolher muito bem o caso.”
Perfilamento racial e fundada suspeita
Para Priscila Pamela, vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), “esse caso é perfeito para a discussão”. Segundo ela, os policiais jamais confessariam que abordaram oalguém por se tratar de homem negro, mas a menção à cor da pele como um dos primeiros elementos citados no depimento seria “prova latente” de que foi um caso de perfilamento.
“Se isso não é suficiente para que seja considerado um caso de perfilamento, ou seja, se o fato de a pessoa se tornar suspeita simplesmente por estar parada no meio fio não é suficiente, então eu não sei o que é”, afirma. Ela acredita que o apego dos magistrados à ausência de evidências ainda mais explícitas expõe a necessidade de o Congresso legislar sobre a fundada suspeita, que diz respeito aos motivos que justificariam uma revista sem mandado judicial.
O artigo 244 do Código Processo Penal determina que a busca pessoal independerá de mandado “quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. No entanto, a advogada considera que a legislação atual “não dá conta” de afastar a subjetividade empregada por agentes de segurança na hora das abordagens.
“O Congresso precisa urgentemente legislar sobre isso para que consiga complementar com parágrafos, estabelecendo quais seriam os critérios objetivos a subsidiar a fundada suspeita. O subjetivismo por si só não pode ser suficiente, especialmente num país tão racista quanto o Brasil”, avalia.
Princípio da insignificância
Além do perfilamento racial, outros pontos trazidos pela Defensoria na petição inicial tratam do princípio da insignificância e do desenquadramento do crime como tráfico de drogas, diante da quantidade apreendida e do depoimento do réu, que disse ser usuário.
O princípio da insignificância ou bagatela pode ser aplicado quando um crime representa pouco dano ou comportamento atípico. Antes de votar, o ministro Nunes Marques abordou o tema, até então muito pouco mencionado pelos demais magistrados. Segundo ele, o réu já havia sido condenado por dois processos, um de furto e um de roubo, de forma que seu comportamento não poderia ser considerado atípico.
No pedido de habeas corpus, a DPESP argumentou que “a valoração negativa da personalidade com fundamento nas condenações transitadas em julgado não encontra respaldo na atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.”
Nunes Marques também disse que o pedido de desclassificação do crime como tráfico para uso pessoal não foi julgado pelo STJ, de modo que sua análise pelo STF configuraria supressão de instância. O julgamento deve seguir na quarta que vem.