Para Luciana Zaffalon, coordenadora-geral da plataforma Justa.org.br, sistema de justiça tem sido privilegiado. Levantamento aponta “cheques em branco” de R$ 41,8 bi em SP na lei orçamentária de 2021
Dos R$ 246,3 bilhões da Lei Orçamentária Anual, conhecida como LOA, o governo do estado de São Paulo pretende destinar R$ 41,8 bilhões em “cheques em branco” que não precisam passar pela aprovação da Assembleia Legislativa de São Paulo. O valor representa 17% do orçamento total.
O levantamento inédito é da Justa.org.br, plataforma de pesquisa que se propõe a facilitar o entendimento e a visualização de dados do financiamento e da gestão do Sistema de Justiça de maneira acessível. No estudo, a Justa reforça que uma das principais atribuições da Alesp é justamente essa: debater o orçamento público para garantir uma distribuição democrática e transparente.
O valor desse “cheque em branco” supera em 42 vezes o valor previsto para cultura, 1,5 vezes mais do valor previsto para saúde e 46 vezes o valor previsto para assistência social. O valor também é maior do que a soma do valor previsto para diversas áreas, como saneamento, habitação, trabalho, agricultura, indústria, administração e ciência e tecnologia.
O estudo da Justa também questiona as “negociações feitas a portas fechadas”, uma vez que a distribuição do “cheque em branco” não será discutido na Alesp, o que impede que essas discussões sejam públicas.
Um ponto de atenção para a Justa é a relação do orçamento com o poder Judiciário. Em 2019, aponta o estudo, o orçamento do estado de São Paulo para o sistema de justiça foi 30,4% maior do que foi em 2013.
O Ministério Público de São Paulo foi o maior beneficiário desse aumento: o orçamento de 2019 foi 57,3% maior do que em 2013. Na sequência vem o Tribunal de Justiça de São Paulo, que teve um aumento de 51,7%. A Defensoria Pública de São Paulo teve um aumento de 46,8% no orçamento.
Em contrapartida, áreas como segurança pública, desporto e lazer, cultura e assistência social tiveram queda na comparação entre 2019 e 2013: menos 1,4% do valor previsto para segurança pública, menos 29% para esporte, menos 4% para cultura e menos 11% para assistência social.
Não é só no Estado de São Paulo que esse problema acontece. Em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, a Justa analisou também o orçamento da Bahia. O “cheque em branco” do governo baiano é de R$ 14,5 bi (30% do orçamento total de R$48,4 bi). Isso representa quase o dobro de todo o previsto para a saúde no Estado, 85 vezes o previsto para cultura ou 58 vezes o destinado para assistência social.
Em relação ao poder Judiciário baiano, o orçamento cresceu 42,8%, entre 2013 e 2019: 51,6% para o Tribunal de Justiça da Bahia, 61,5% para o Ministério Público da Bahia e 106% para a Defensoria Pública da Bahia.
Para Luciana Zaffalon, coordenadora-geral da Justa, “sem orçamento não é possível falar em políticas públicas efetivas”. “Você pode ter o melhor desenho imaginável para uma ação de Estado, sem dinheiro ela não sairá do papel. Importante dizer que há esferas de funcionamento do Estado que são de competência estadual, as questões de segurança pública, prisional, funcionamento da justiça criminal são exemplos bem marcantes”.
Com a possibilidade de os governos decidirem sozinhos quando e como distribuírem os créditos adicionais, explica Luciana, as discussões deixam de ser públicas. “Quando isso acontece com o sistema de Justiça é ainda mais grave: os governos transferem, a portas fechadas, dinheiro a mais para as instituições que devem fiscalizar e julgar abusos e omissões do próprio Executivo”.
Leia a entrevista:
Ponte – Para que o leitor entenda: o que é o orçamento estadual e por que ele precisa ser aprovado pela casas legislativas?
Luciana Zaffalon – É para decidir como o nosso dinheiro vai ser gasto que existe a Lei Orçamentária Anual, que define quanto vai para a educação, para a segurança pública e para a saúde, por exemplo.
O nosso desenho democrático divide o funcionamento do estado em 3 partes: o Executivo (prefeitos, governadores e presidentes), o Legislativo (câmaras municipais, assembleias e congresso nacional) e o Poder Judiciário, que, junto com Ministério Público e Defensoria Pública, compõe nosso sistema de justiça.
Cada um precisa cumprir o seu papel: a Assembleia aprova as leis, e o Governo realiza a administração pública respeitando essas leis e o sistema de justiça é o responsável pela resolução dos conflitos.
Com relação ao orçamento público, ele deve sempre ser proposto pelo Executivo e debatido pelo Legislativos, que tem a atribuição de aprovar os gastos.
Ponte – Como tem sido essa divisão no governo Doria? O problema tem sido por ordens do governador ou da Alesp?
Luciana – Todo ano, o governador propõe um projeto de orçamento, as deputadas e deputados da Assembleia Legislativa debatem esse projeto e propõem mudanças antes que ele vire lei. Assim, a LOA é aprovada e o orçamento estadual para o ano seguinte é definido.
A LOA é estruturada a partir da expectativa de arrecadação do ano seguinte, mas, com a natural variação deste montante, o governo remaneja a distribuição dos recursos e essas mudanças também deveriam ser debatidas pelos deputados, como determinam as Constituições do Estado de São Paulo (Art. 175) e Federal (Art. 167, inciso V).
Mesmo diante das vedações constitucionais, todos os anos, as Leis Orçamentárias têm permitido que os governadores distribuam mais dinheiro do que o planejado, sem passar pela Assembleia. Aqui começam os problemas: ao autorizar a abertura desses chamados créditos adicionais diretamente pelo Executivo, a LOA, na prática, confere um “cheque em branco” para que os governadores negociem verbas públicas a portas fechadas, dialogando apenas com os setores interessados.
O problema é de responsabilidade tanto do Governo (que é quem encaminha o projeto de lei orçamentária para Aesp) quanto da Assembleia, que não só poderia, como deveria alterar a proposta do governo, mas está aprovando o projeto nestes termos.
Vale dizer que uma das principais atribuições da Assembleia é justamente essa: debater e aprovar os gastos do Estado. Ao abrir mão de sua competência para definir como o dinheiro público vai ser investido as deputadas e deputados transferem pro governo parte considerável do seu poder. Eles estão dando aval para Doria manipular o orçamento e favorecer Judiciário e Ministério Público.
Como apontamos no levantamento realizado pela Justa em parceria com a Iniciativa Negra, a proposta de LOA/2021 (Art. 9), que foi aprovada em 17 de dezembro de 2020 pela Alesp, conferiu ao governo de São Paulo um cheque em branco no valor de R$ 41,8 bi (17% do orçamento total de R$246,3 bi), o que corresponde a 42 vezes o que é previsto para o orçamento da cultura, 1,5 vezes o orçamento da saúde ou 46 vezes o previsto para assistência social.
Mesmo somando todos os valores destinados a atendimento hospitalar e ambulatorial (R$4,4 bi), habitação (R$961,8 mi), comércio e serviços (R$747,5 mi), indústria (R$7,4 mi), agricultura (R$1,5 bi), ciência e tecnologia (R$1,5 bi), saneamento (R$504 mi) e outras sete funções de inegável importância no orçamento estadual, ainda não se alcança os R$ 41,8 bi.
Ponte – Qual a importância do orçamento para as políticas públicas estaduais?
Luciana – Sem orçamento não é possível falar em políticas públicas efetivas. Você pode ter o melhor desenho imaginável para uma ação de Estado, sem dinheiro ela não sairá do papel.
Importante dizer que há esferas de funcionamento do Estado que são de competência Estadual, como é o caso das questões de segurança pública, prisional, funcionamento da justiça criminal são exemplos bem marcantes.
O que buscamos, com a Justa, é precisamente olhara para o orçamento como uma etapa necessária dos projetos de mudança que precisam ser concretizados.
Um exemplo disso é o enfrentamento do encarceramento em massa. Precisamos inverter o funil de investimento: tirar dinheiro da porta de entrada e investir na porta de saída. Não é possível seguir com tanto recurso alocado na expansão do número de vagas em presídios ou para a privatização do sistema prisional e não ter praticamente nada de dinheiros para garantir os direitos de quem sobrevive ao cumprimento da pena.
A LOA/2021 aprovada pela ALESP tem a seguinte proporção: a cada R$ 422,00 gastos com a manutenção do sistema prisional como ele é, apenas R$1,00 é destinado a assistência direta ao egresso.
Ponte – Áreas como segurança e sistema prisional vão ser atingidas com esses favorecimentos?
Luciana – Com a possibilidade de os governos decidirem sozinhos quando e como distribuírem os créditos adicionais, as discussões deixam de ser públicas, sem a transparência que as constituições estaduais e federal exigem. Quando isso acontece com o sistema de Justiça é ainda mais grave: os governos transferem, a portas fechadas, dinheiro a mais para as instituições que devem fiscalizar e julgar abusos e omissões do próprio Executivo.
Considerando os gastos de 2019, a Justa e a Iniciativa Negra apontam a magnitude dos valores recebidos pelas instituições de justiça só como créditos adicionais: em São Paulo, as suplementações do último ano somaram R$ 1,33 bi, sendo R$ 1,17 bi para o Tribunal de Justiça (TJSP), R$ 155 mi para o Ministério Público (MPSP) e R$ 4,9 mi para a Defensoria.
Estes valores correspondem a 8,6 vezes o orçamento total da TV Cultura, superam o orçamento total da FAPESP (R$ 1,31 bi) e são muito superiores aos orçamentos dos Hospitais das Clínicas: 31,8 vezes mais que o que o orçamento do HC de Marília, 4,8 vezes no caso do HC de Botucatu ou 2,5 vezes no caso do HC de Ribeirão Preto.
Com relação às folhas de pagamento, destaca-se que somam-se aos valores recebidos como créditos adicionais pelas carreiras jurídicas os remanejamentos internos realizados pelas próprias instituições. Como resultado, temos que o TJSP gastou só com pessoal R$ 1,2 bi a mais do que o aprovado pela Assembleia (LOA/2019). No caso do MPSP este valor foi de R$ 249 mi e na Defensoria paulista R$ 13 mi.
Ou seja: o Sistema de Justiça gastou, só com sua folha de pagamento, R$ 1,46 bi a mais do que previsto na LOA, o que corresponde a mais de duas vezes tudo que foi investido em habitação no Estado de SP em 2019 e a 85% a mais do investido em cultura. Na prática, a cada R$ 4,00 gastos com servidores da saúde, R$ 7,00 foram gastos com servidores da justiça.
Ponte – Podemos dizer que o governo prioriza investimento no sistema de justiça mais do que na educação e na saúde?
Luciana – Podemos dizer que o orçamento do sistema de justiça tem sido privilegiado com relação ao funcionamento de todo o estado. E essa priorização orçamentária das instituições de justiça pode ser observada no tempo: entre 2013 e 2019, enquanto o orçamento geral do estado de São Paulo cresceu 30,4%, o orçamento do TJSP cresceu 51,7%, o do MPSP cresceu 57,3% e o da Defensoria 46,8%.
Para se ter uma ideia, o Tribunal de Justiça sozinho recebe mais do que as 3 Universidades Estaduais recebem juntas (UNESP, Unicamp e USP), sendo que 80% dos seus recursos são consumidos só com folha de pagamento.
Quando olhamos pra saúde, o cenário é o mesmo: em 2019 (último ano com dados sobre gatos já consolidados) a cada R$ 4 gasto com servidores da saúde, R$ 7 foram gastos com servidores da justiça.
Os valores recebidos pelas instituições de justiça só de extras em 2019 são muito superiores aos orçamentos dos Hospitais das Clínicas do Estado: 31,8 vezes mais que o que o orçamento do HC de Marília, 4,8 vezes no caso do HC de Botucatu ou 2,5 vezes no caso do HC de Ribeirão Preto.
Outro lado
A reportagem procurou a Alesp e o governo do estado de São Paulo para saber seu posicionamento sobre a questão dos créditos do orçamento e sobre o possível favorecimento do sistema de justiça. A resposta, se houver, será publicada neste mesmo texto.
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