Movimento A Craco Resiste monitorou ações da Guarda Civil Metropolitana entre dezembro de 2020 e março de 2021 na região da Luz, na capital paulista, em que agentes aparecem espirrando spray e jogando bombas contra população de rua sem motivo
Spray de pimenta no rosto, soco, uso de bombas de gás lacrimogêneo sem motivação aparente contra dependentes químicos e pessoas em situação de rua são o que mostram algumas das imagens de câmera de segurança posicionada em direção à Praça Julio Prestes e às Alamedas Cleveland e Dino Bueno, que formam o entorno da “Cracolândia”, como é chamada pejorativamente a região da Luz, no centro da cidade de São Paulo. A filmagens são de dezembro de 2020 a março de 2021 e foram coletadas pelo movimento A Craco Resiste, que é composto por ativistas, moradores e trabalhadores da região que denunciam violações de direitos humanos desde 2017 no território.
Nos vídeos, é a GCM (Guarda Civil Metropolitana) que usa essas armas menos letais. De acordo com a antropóloga e militante do movimento Roberta Costa, a intenção desse monitoramento é uma forma de visibilizar a atuação das forças de segurança pública na região. “Sempre diziam que a gente estava exagerando quando fazíamos as denúncias de agressões, de bombas. Com as filmagens, conseguimos provar que não são ações pontuais, isoladas, mas que faz parte de uma política de Estado, que usa nosso dinheiro público numa ação que não é efetiva e só gera sofrimento para uma população que já está bastante vulnerável”, declarou à Ponte. “É absurdo que uma pessoa que esteja numa fila para usar um banheiro instalado pela prefeitura seja agredida simplesmente por estar ali”, critica, em relação a uma das filmagens, que data de 16 de março deste ano.
Leia também: Estudo inédito detalha os custos da guerra às drogas em RJ e SP
O movimento também fez pedidos via LAI (Lei de Acesso à Informação) sobre os gastos em armas menos letais que foram empregados em pelo menos quatro ações (nos dias 20, 29, 30 de janeiro e 5 de março), que totalizam R$ 14.029,28, com uso de 84 balas de borracha e 32 bombas de gás lacrimogêneo. Em novembro do ano passado, levantamento da Ponte com base nos dados da Secretaria de Segurança Urbana mostrou que sob o governo do prefeito Bruno Covas (PSDB), o uso de balas de borracha na região aumentou 475% em dois anos e 2020 teve o maior número de intervenções da guarda no entorno, mesmo durante a pandemia.
E nesse período de alastramento da Covid-19, a prefeitura também acelerou os processos de remoção de moradores em determinadas quadras para o projeto de construção de empreendimentos residenciais em uma parceria público privada em conjunto com o governo estadual. Além disso, apesar de o então prefeito atual governador João Doria (PSDB) ter declarado em 2017 que “a Cracolândia tinha acabado”, as barracas e o “fluxo”, como é chamado o entorno para venda e consumo de drogas, ainda permanece pelas ruas da Luz.
Leia também: PM e GCM intimidam Pastoral do Povo de Rua durante entrega de alimentos no centro de SP
Para Costa, que realizou uma dissertação de mestrado sobre a relação dos usuários com o local, “enquanto a questão das drogas for tratada como caso de polícia e não de saúde, o problema da Cracolândia não vai deixar de existir, porque ela é consequência de um monte de problemas sociais, de classe, de raça e não o ponto de partida”. Ela aponta, ainda, que a violência institucional é uma “resposta simples e imediata que não atinge as questões estruturais”, já que o principal objetivo é “limpar a região porque ela deixa visível tudo o de errado que estamos fazendo em relação à guerra às drogas”. Além disso, a antropóloga destaca que o déficit habitacional na região é um dos maiores problemas e que se agravou na pandemia, por ser uma localidade de disputa com as construtoras. “Com cerca de 25 mil pessoas em situação de rua [na capital paulista], só com os dados oficiais, como a gente vai impedir que essas pessoas não fiquem nas ruas, não se aglomerem, se elas não têm acesso a políticas públicas e a única resposta que elas recebem é a violência?”, questiona.
Na tarde desta segunda-feira (5/4), após a divulgação dos vídeos, o Núcleo de Movimentos Sociais e População de Rua da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), por meio dos presidentes Ana Amélia Mascarenhas de Camargos e Rildo Marques de Oliveira, enviou um ofício ao Ministério Público Estadual para que o órgão abra inquérito para apurar o caso, destacando que as ações ocorreram “nesta época tenebrosa da pandemia do Coronavírus (Sars-CoV-2), onde as pessoas devem mais ser protegidas do que açoitadas pelo poder público”.
“Como são conhecedores dos fatos, são coniventes com todas as cenas de agressões praticadas pelo seu efetivo no território dia após dia. Ou seja, as imagens são datas de ações em diversos dias, portanto, não se trata de ação individualizada de um ou outro agente, mas a ação tem caráter visível de ser ação padronizada”, diz trecho do ofício.
O que diz a prefeitura
Procurada, a Prefeitura de São Paulo respondeu em nota* que as imagens “não permitem uma análise apropriada, pois não mostram toda a dinâmica das ocorrências, mas apenas um recorte da ação dos guardas” e que a “Corregedoria da Secretaria Municipal de Segurança Urbana apura situações em que há desvio de conduta ou protocolo de atendimento, impondo medidas disciplinares específicas. Os agentes em campo devem obedecer estritamente aos protocolos estabelecidos para uso progressivo da força. Para que esta atuação seja acolhedora e humanizada, os agentes participam de capacitações diversas, em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e com a Defensoria Pública, aprofundando a compreensão de legislação específica e conceitos de direitos humanos”.
Apesar de a reportagem não ter feito comparação sobre gastos de armas menos letais com alimentos, a assessoria da administração municipal afirmou que foi feita uma “comparação descabida”. “Apesar de sempre ser pontuado que a solução para os usuários não é exclusivamente de segurança, a atuação da GCM é fundamental para apoiar as políticas públicas desenvolvidas nas áreas da assistência social, saúde e limpeza, por exemplo”, diz trecho.
A pasta também informou que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social “distribuiu mais de 120 mil refeições na região da Luz no período citado (dez/2020 a mar/2021), pois são entregues mil refeições diárias (500 almoços e 500 jantares)” e que a Secretaria Municipal de Direitos Humanos “mantém pontos do programa Rede Cozinha Cidadã na Luz” cujo programa “distribuiu mais de 2,4 milhões de marmitas em toda a cidade durante a pandemia. Há também um banheiro montado na Praça Júlio Prestes – da ação Vidas no Centro, que já contabilizou mais de 181 mil atendimentos neste perímetro – e pias para higienização das mãos instaladas próximo à Praça Princesa Isabel, endereços do entorno do quadrilátero onde há o fluxo de usuários.”
*Reportagem atualizada às 12h27, de 5/4/2021, após recebimento de nota da Prefeitura de São Paulo.
Atualização às 18h02, de 5/4/2021, para incluir ofício da OAB-SP
Correções
*Reportagem atualizada às 12h27, de 5/4/2021, após recebimento de nota da Prefeitura de São Paulo. Atualização às 18h02, de 5/4/2021, para incluir ofício da OAB-SP