Segun Ososami vive há 20 anos no Brasil, tem um bar no centro de SP e foi acusado com base apenas na palavra dos policiais; esposa acredita que PMs “plantaram” droga
Após cinco meses sem notícias do marido, a enfermeira Maria Souza, 51 anos, conseguiu vê-lo por videochamada, por meio do programa de visitas on-line da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, mas não não foi suficiente. “O mês de julho foi muito sofrido, porque meus dois filhos fazem aniversário e há um ano arrancaram um pedaço de mim”, define sobre a prisão do comerciante nigeriano Segun Adesina Ososami, 43, ocorrida em 29 de julho de 2019, e com quem é casada há 16 anos e tem dois filhos adolescentes.
A enfermeira conta que não conseguiu, nem antes da pandemia, visitar o marido na Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva, em Itaí, no interior paulista. A cidade fica a 300 km da capital. “A gente não tem dinheiro para visitar, é um sofrimento muito grande, meu marido tem depressão”, desabafa.
Segun está há mais de 20 anos no Brasil, sendo 13 deles trabalhando como dono de um bar no Centro Comercial Presidente, mais conhecido como Galeria do Reggae, no centro da capital paulista, de acordo com a esposa. O local é conhecido por ser um reduto da cultura negra, com forte presença de lojas geridas por imigrantes de origem africana, como nigerianos e angolanos. Foi no espaço de trabalho que o comerciante foi detido e depois condenado a seis anos de prisão sob a alegação de tráfico de drogas com base apenas na palavra dos policiais.
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No boletim de ocorrência, o sargento Ernest Decco Granaro, os cabos Luciano Cesar de Assis e Kefer Antony Estrella Alencar, e os soldados Paulo Roberto Menezes Cardoso e Pedro Henrique Silva Alves, todos da Força Tática do 7º Batalhão da PM, disseram que, por volta das 17h30, receberam “uma informação” de que estaria ocorrendo tráfico de drogas nas lojas 30 e 32 do 3º andar da galeria e que foi combinado um “efeito surpresa”, em que as equipes subiriam o prédio pela escada de incêndio.
Segundo o documento, foram formadas duas equipes: o sargento Decco e o soldado Menezes foram à loja 32 e o cabo Luciano e o soldado Pedro se dirigiram à loja 30. Os dois primeiros disseram que abordaram um homem nigeriano no estabelecimento 32 e que, ao fazerem a revista, encontraram “no interior de uma mochila, juntamente com um notebook, um caderno e folhas de papel” contendo o nome dele, 17 porções de substância esverdeada, “supostamente maconha”, um pequeno tijolo, “também igualmente esverdeado, provavelmente semelhante maconha”, além das quantias de R$ 9,2 mil, US$ 512 e 500 meticais (moeda oficial de Moçambique).
A segunda equipe disse que abordou Segun e, durante a revista, localizou “próximo ao balcão, dentro de uma caixa de remédios, 28 cigarros e 74 porções, e que identificaram como “provavelmente maconha”, além da quantia de R$ 1.170.
Enquanto os dois detidos eram levados do local, de acordo com o B.O., houve “uma movimentação dentro da galeria”, em que, segundo os PMs, diversas pessoas “aparentando serem estrangeiras afrontavam os policiais” arremessaram garrafas e outros objetos. O cabo Kefer afirmou que uma mulher o atingiu com uma garrafa de vidro no seu antebraço e outro colega de farda fez dois disparos de bala de borracha em seguida. Os dois foram levados ao Pronto Socorro da Santa Casa, na região central. Com relação à ela, foi feito um termo circunstanciado (registro para crimes com menor potencial ofensivo) e foi liberada. A Ponte não conseguiu contato com a mulher, que também é nigeriana.
O homem nigeriano que trabalha na loja 32, uma lan house, disse à Polícia Civil que os policiais entraram no local mandando por a mão na cabeça e que um deles teria entrado já com drogas nas mãos e o tirado da local para fazer a revista. A mochila preta dele também foi apreendida. Já Segun, preferiu não prestar depoimento no dia.
Os dois foram indiciados por tráfico pelo delegado Luiz Renato Gardenal Monaco, do 2º DP (Bom Retiro), já que a perícia havia comprovado que as substâncias apreendidas eram entorpecentes. A advogada do outro homem chegou a mostrar um vídeo sobre a abordagem, mas o delegado afirmou, no documento, que não era possível fazer “qualquer juízo de valor que atentasse contra as versões dos policiais militares” e considerou que a abordagem foi em flagrante.
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As imagens que circularam e que é onde Maria, esposa de Segun, aponta contradições mostram trecho da ação dos policiais. Em um dos vídeos, o soldado Menezes aparece com uma mochila colorida nas costas dentro da lan house juntando papéis numa sacola e olhando uma caixa pequena vazia. De acordo com Maria, a mochila é de Segun. “Até hoje a gente não sabe o que fizeram com a mochila”, afirma. O objeto não é citado no boletim de ocorrência e o PM afirmou que fez a revista apenas na lan house, não no bar.
Em seguida, na filmagem, o policial abaixa, mexe no colete e levanta. Para a defesa do comerciante e para a esposa, esse teria sido o momento em que parte da droga poderia ter sido plantada, já que a caixa de remédios citada no B.O. não foi apreendida. “Qualquer perito poderia fazer uma análise disso e não fizeram, é vergonhoso”, desabafa a enfermeira.
De acordo com Maria de Souza, o marido tinha levado para o trabalho apenas uma mochila colorida com documentos e o dinheiro para pagar o condomínio e umas contas atrasadas. “Qualquer coisa que eles [policiais] falarem, dane-se você que é negro pobre, acabou”, critica.
Na audiência de custódia, a juíza Célia Maria Macedo Stern converteu as prisões em preventivas ao indicar que o crime de tráfico é classificado como hediondo. No caso de Segun, foi apontada a questão de reincidência ao ter cumprido pena de três anos por conta de uma condenação de 2011.
De acordo com aquele processo, a sentença também se baseou na palavra dos policiais, que teriam encontrado cocaína numa casa em que Segun estava com outros nigerianos. “Foi num período em que a gente estava separado por conta de umas brigas de ciúme, ele acabou ficando numa casa alugada com outros nigerianos, mas ele não sabia que tinha droga lá”, explica a esposa do comerciante.
O Ministério Público acusou os dois nigerianos abordados na galeria por tráfico de drogas e o Tribunal de Justiça aceitou a denúncia. Apenas durante as audiências é que os policiais afirmaram que a informação de tráfico foi dada por um usuário que eles teriam abordado na rua e que teria dito que comprava maconha em duas lojas do 3º andar. Porém, essa pessoa não foi levada como testemunha para a delegacia.
O soldado Menezes, que aparece na filmagem se agachando dentro da lan house, disse, em juízo, que o seu celular estava tocando, “mas como estava com as mãos ocupadas, acabou desistindo, sendo que sequer tirou seu aparelho de dentro de seu colete balístico”.
Já o sargento Decco e o soldado Pedro disseram que usaram a mochila colorida para “acondicionar” a droga apreendida e que ela teria sido apresentada na delegacia junto com a caixa de remédios, mas que os dois itens acabaram não sendo apreendidos.
A defesa do funcionário nigeriano da loja 32 apontou, no processo, que o soldado Menezes já havia feito outras abordagens no local, sendo uma delas, em janeiro de 2019, sob o mesmo modus operandi de denúncia de tráfico de drogas, mas depois indicou a realização de câmbio ilegal na loja.
Os policiais também disseram que, ao abordarem Segun, apenas ele ficou no bar durante a revista. Porém, o comerciante disse que os PMs mandaram todos saírem do local e que não acompanhou a revista, apenas viu os policiais entrarem com uma mochila preta e saírem com ela e a sua, que é colorida.
“Agentes públicos dotados de boa-fé”
Mesmo reconhecendo contradições nos depoimentos dos policiais, a juíza Carla de Oliveira Pinto Ferrari, do Foro Criminal da Barra Funda, argumentou que “a palavra dos policiais não merece descrédito”, já que os policiais não conheceriam os dois acusados e que, por isso, não teriam motivo para incriminá-los. “São agentes públicos dotados de presunção de boa-fé, até prova em contrário, cuja produção estaria a cargo da defesa, que não se desincumbiu de tal ônus nestes autos”, escreveu na sentença, que determinou a Segun seis anos de prisão e pagamento de 600 dias-multa, cuja pena foi aumentada por conta da reincidência.
Já o outro homem foi condenado a um ano e oito meses de prestação de serviços à comunidade e pagamento de 166 dias-multa. A Ponte não conseguiu contato com ele.
A defesa de Segun tentou reverter a sentença na segunda instância, mas os desembargadores mantiveram a condenação. Maria de Souza agora diz que vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. “Me sinto cansada, negro pobre nunca consegue nada da justiça, dessa justiça racista. Mas eu vou lutar por ele”, afirma.
Provas são frágeis, analisa especialista
Para Maria Clara D’Ávila, advogada e assessora de advocacy e pesquisa da ONG Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, “houve uma validação muito grande da palavra dos policiais em detrimento de se juntar todo um conjunto probatório”.
Ela cita como referência um estudo do NEV (Núcleo de Estudos da Violência), da USP (Universidade de São Paulo), que analisou 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na capital paulista, entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, e apontou que, em 74% das prisões por tráfico, a palavra dos PMs era a única prova apresentada.
“Esse flagrante é muito frágil, porque só na audiência de instrução é que os policiais justificam de onde veio a informação de que estaria ocorrendo tráfico ali, que teria sido um transeunte abordado, mas ficou muito mal explicado, e envolveu toda uma operação de vários policiais”, argumenta a advogada. “Os policiais sequer pegaram testemunhas”, complementa.
De acordo com D’Ávila, “caberia muito mais a abertura de uma investigação pela Polícia Civil do que essa abordagem” e as provas apontadas pela PM não justificam a relação de tráfico. “Não houve preocupação de explicar como o dinheiro apreendido viria dessas drogas, já que são estabelecimentos comerciais. Uma pessoa não foi flagrada pelos policiais comprando droga nos locais”, pondera. “No vídeo, o policial coloca vários papéis na mochila, mas que depois não eram nada, teve itens que não foram apreendidos”, frisa.
O que diz a polícia
A Ponte procurou as assessorias da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e da PM questionando sobre as contradições nos depoimentos dos policiais, sobre a apreensão dos objetos, a atuação da Polícia Civil, as filmagens e a atuação da Corregedoria da PM, já que a esposa de Segun formalizou um pedido de investigação sobre a atuação dos policiais. A reportagem também solicitou entrevista com os policiais envolvidos.
A InPress, assessoria de imprensa terceirizada da SSP, não respondeu as perguntas da reportagem e enviou nota informando que “o autor foi preso em flagrante por tráfico de drogas e encaminhado à audiência de custódia. A Corregedoria da Polícia Militar registrou a denúncia feita pela esposa do nigeriano e apura todas as circunstâncias dos fatos por meio de Inquérito Policial Militar (IPM)”.
A Ponte também procurou o Tribunal de Justiça Militar a respeito do inquérito cuja assessoria declarou que o Ministério Público Militar solicitou o arquivamento e que ainda não havia sido proferida decisão.
Procuramos a Promotoria de Justiça Militar que, até a publicação, não respondeu.