“No Brasil, muitas vezes a polícia não olha a manifestação como sendo um direito”, afirma Gustavo Fulgêncio, que foi PM em Pernambuco e, desde 2007, faz parte da polícia sueca
(Texto originalmente publicado no Diário do Centro do Mundo. A autora, Claudia Wallin, é jornalista brasileira radicada na Suécia, autora do livro Um país sem excelências e mordomias.)
Já dizia Einstein que insanidade é fazer sempre a mesma coisa, e esperar resultados diferentes. Mas a cena se repete com demente precisão: uma polícia brutalizada, historicamente treinada para o confronto implacável com o bestial inimigo de seis patas, produz imagens e saldos de guerra nas manifestações populares nas ruas brasileiras, onde perder o olho ainda pode ser sinal de sorte.
Assim essa polícia, que mata e morre mais do que em qualquer outro país do mundo, vai cumprindo a façanha de se perpetuar no ranking das instituições mais detestadas do Brasil.
“O problema não é a atuação da polícia”, constata o policial brasileiro Gustavo Fulgêncio, que desde 2007 integra os quadros da polícia sueca em Estocolmo.
“O problema é que os policiais brasileiros atuam apenas com o conhecimento que têm. Não há evolução, não há interesse em procurar técnicas novas. Está visto e comprovado que as técnicas de repressão utilizadas atualmente não funcionam. Isto está sendo questionado inclusive nos Estados Unidos, que também têm uma polícia muito violenta, muito militarizada. Como o brasileiro é doido pelos Estados Unidos, talvez isso comece então a ser questionado no Brasil também”, raciocina Gustavo, que reveza o trabalho na Divisão Internacional da Polícia sueca com o curso de Ciências Políticas da Universidade de Estocolmo.
Estamos no quartel-general da polícia sueca, uma imponente construção de porte palaciano e interior ultramoderno no centro de Estocolmo. Ao lado do restaurante onde o Comandante Geral da instituição faz fila para almoçar no bandejão, um grupo de oito policiais corre compassadamente em volta de uma mesa de pingue-pongue, em uma alegre partida simultânea entre homens e mulheres da corporação.
São tempos de colheita: as pesquisas mostram que 77% dos suecos confiam na sua polícia. Mas a Suécia teve que atravessar seu próprio inferno e reformular seus conceitos e estratégias, para semear essa relativa paz.
Era o ano de 2001, e o desastre policial que se produziu passaria para a história sueca com o genérico nome de “eventos de Gotemburgo”. A cidade sueca, que sediava a reunião de cúpula da União Européia, virou na verdade uma praça de guerra: a polícia sueca investiu violentamente contra as centenas de manifestantes suecos e estrangeiros que protestavam contra a globalização. Três pessoas foram feridas por tiros: era a primeira vez que a polícia sueca disparava armas de fogo em uma manifestação desde 1931. Mais de mil pessoas foram detidas.
Para os suecos, os eventos mostraram a força do aparato de repressão da polícia – mas também as suas limitações. Era hora de reformular a estratégia.
“A doutrina aqui era muito parecida com a que é usada no Brasil e em outros países, que é a doutrina de confrontação das manifestações”, diz o brasileiro Gustavo Fulgêncio, com sua vivência de três mundos: antes de se mudar para a Suécia com a esposa sueca, trabalhou durante dez anos na Polícia Militar de Pernambuco e integrou as forças de paz da ONU na antiga Iugoslávia.
Pós-Gotemburgo, uma nova doutrina policial foi pensada e implementada. Trata-se de uma tática que reúne quatro princípios fundamentais para reduzir o potencial de conflito nas manifestações: o diálogo, a facilitação, o conhecimento e a diferenciação.
“Isso é como um mantra aqui na Suécia”, diz Gustavo.
A meta do diálogo é quebrar as barreiras entre o policial e o manifestante: a polícia deve deixar claro aos manifestantes que reconhece o direito democrático dos cidadãos de se manifestar, e que está presente para garantir que a manifestação transcorra de forma pacífica.
“O diálogo é extremamente importante para a polícia sueca. Quando ocorre uma manifestação, há especialistas da polícia que estão lá apenas com a finalidade de dialogar com as lideranças do protesto. Eles caminham dentro da manifestação, dialogando todo o tempo. O que o manifestante acha é importante, o que o policial acha também é, mas o que nós achamos em comum é ainda mais importante. Ou seja: com o diálogo, tenta-se chegar à conclusão de que você tem o direito de protestar, um direito que está na Constituição, mas que também é preciso respeitar os demais cidadãos, que não devem ter seus direitos e liberdades afetados”.
“No Brasil, muitas vezes a polícia brasileira confunde manifestante com vândalo, chega no local e já tem uma visão negativa do protesto, porque não olha aquilo como sendo um direito”, observa Gustavo.
O policial sueco deve ter também conhecimento sobre o motivo do protesto, a fim de facilitar a comunicação com os manifestantes. Já o princípio da facilitação é o que o nome diz – facilitar o desenvolvimento da manifestação.
“Não estamos ali para complicar, e sim para facilitar o exercício do direito da pessoa de se manifestar”, diz Gustavo.
Como?
“Por exemplo, tendo um conhecimento prévio e detalhado da manifestação, para prever barreiras e evitar um possível confronto entre duas facções contrárias. Quando os manifestantes percebem que nós não estamos ali para reprimir, e sim para facilitar, então naturalmente vai haver uma cooperação maior. Nem todas as vezes funciona dessa forma, e eu já estive aqui em vários conflitos onde ‘o pau cantou’ e garrafas voaram. Mas pelo menos fica bem mais difícil para você, como manifestante, agir de uma forma agressiva contra mim, se você souber que estou ali pra lhe ajudar como policial.”
E como lidar com os vândalos?
“Aí entra o princípio da diferenciação na doutrina sueca”, explica Gustavo. “Nem todos os que estão no local são iguais, e nem todos podem ser tratados da mesma forma. É uma mentalidade diferente: no Brasil e na maioria dos países, a polícia trata toda a massa como se fosse um indivíduo. Então, quando a polícia atinge um membro do grupo, todos se voltam contra ela. Isso é geralmente alavancado por uma ação desproporcional e violenta da polícia.”
“Por exemplo”, prossegue Gustavo, “há um protesto no metrô de São Paulo contra o aumento das passagens, e aí chega a polícia, fecha a rua e começa a atirar bombas de gás. Nesse momento, os que estão ali se manifestando pacificamente se juntam aos vândalos, porque encontraram um denominador comum: a ação desproporcional de repressão policial. Mas é preciso lembrar que os vândalos não têm o apoio dos manifestantes. Os manifestantes estão lá como indivíduos. É preciso separar o joio do trigo.”
A tática da diferenciação começa com a observação das pessoas que se aproximam da passeata. Se alguém tenta entrar na passeata com um taco de beisebol na mão, é retirado. Mas quando os eventos saem fora de controle, a intervenção da polícia sueca é cirúrgica: os agitadores são identificados, vigiados e filmados pelas câmeras policiais – mas em geral só são presos em uma oportunidade que seja apropriada, a fim de não promover uma escalada da violência.
“Não se trata de uma regra rígida, mas de um julgamento que é feito na hora”, diz o policial brasileiro. “Por exemplo, se o camarada passou e deu um chute numa lata de lixo, ou jogou uma caçamba de lixo no meio da rua, atrapalhou o trânsito e tal, ele está sendo filmado. A gente vai acompanhando, e já avisa a uma patrulha civil – olha, aquele indivíduo ali, pode prender. A polícia civil então entra na passeata devagarinho, e no momento mais oportuno pega o sujeito e tira da manifestação. Ou prende depois. Agora, se o indivíduo está vandalizando e ferindo uma pessoa, aí tem que agir na hora.”
E como a polícia sueca age nesses casos?
“Não é que aqui se procure evitar o confrontamento. Mas se o confronto é inevitável, usa-se a violência necessária. Se a violência necessária for um empurrão, empurra-se. Se a violência necessária for uma porrada de cacetete, dá-se. É uma questão de proporcionalidade. Se o indivíduo está quebrando as vidraças do banco, vamos fazer aqui um julgamento de proporcionalidade. É proporcional que o carro da polícia cruze a passeata em alta velocidade, sob o risco de atropelar ou machucar um manifestante, para deter o vândalo? Não. Mas é proporcional que eu entre mais adiante com um pessoal a pé, cruze a manifestação e apanhe o sujeito? Talvez sim. Porque também preciso levar em consideração o risco que pode haver para o meu pessoal”.
Quer dizer que a polícia sueca pode estar vendo alguém depredar um banco, mas deixar para prendê-lo depois a fim de não escalar a violência?
“Exatamente. Geralmente, aqui se trabalha com câmeras. Os encarregados de fazer a prisão são avisados de que um determinado indivíduo está sendo filmado, e deve ser preso. Porque, em primeiro lugar, há que se ver a legalidade da prisão: aqui na Suécia, a polícia tem que provar porque teve que prender uma pessoa. Então, o policial tem que avaliar também a proporcionalidade da medida que toma, porque tudo aqui é feito sob o ângulo da legalidade. Se o policial não tiver apoio legal para fazer a prisão, não prende.”
A polícia sueca usa balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo em manifestações?
“Não. Aqui um policial tem o cacetete, o spray de pimenta e o revólver. Porque é a história da proporcionalidade: o uso da violência tem que ser proporcional, e sempre dentro da legalidade. Se uma pessoa vier atacar um policial com mãos vazias, não se pode usar uma arma. Mas se essa pessoa estiver estrangulando outra pessoa, deve-se detê-la com mais força. A instrução policial aqui é respeitar a escala da violência, e o último recurso é a arma. O que se discute hoje na Suécia é a procura de uma solução que esteja entre o spray de pimenta e o revólver, que no caso seria a arma de eletrochoque, para imobilizar a pessoa. Nas manifestações, os policiais suecos também não usam escudos. Você não pode prender uma pessoa segurando um escudo, e se tiver um escudo e um cacetete, as duas mãos estão ocupadas. O que se usa aqui na Suécia é a proteção corporal antitrauma, que no Brasil é conhecida como “robocop”.”
Todo policial sueco tem também formação psicológica – como esse treinamento é aplicado durante uma passeata?
“A primeira pergunta que um policial sueco aprende a fazer é o julgamento individual: isso é um indivíduo, ou é a massa? Então, estou olhando para um indivíduo. Como eu posso não provocá-lo? Se ele está muito agitado, como posso acalmá-lo? Por que não tirar o capacete e falar com ele, para que ele me veja como uma pessoa, e não um boneco armado?”
Como brasileiro, o que chamou mais a sua atenção durante seu período de formação na Academia de Polícia sueca?
“Minha primeira reação foi achar que o sistema sueco era frouxo demais. Eu tenho formação militar, estudei no colégio militar dos 11 aos 30 anos de idade. E o militar é doutrinado de uma forma que não é compatível com a ação civil. Na linguagem militar, por exemplo, o patrulhamento de manifestações é chamado de ‘controle de distúrbios civis’. Hoje, chama-se muito de ações de choque, o que também é um conceito muito negativo. Ou seja, o problema já começa pelo nome. O policial de choque do Brasil, ao meu ver, é treinado hoje apenas para a repressão da manifestação. E você tem aquela cultura mais violenta, que observo muito através de amigos meus, com aquela coisa de tropa de elite, caveira, gritaria, tapa na cara.”
O modelo sueco funcionaria no Brasil?
“O negócio é o seguinte: algo tem que ser feito. Da forma como está, não funciona. Acho que o Brasil deveria olhar para fora e ver o que está sendo feito em outros países. Não sei se as soluções suecas funcionariam, mas acho que o modelo sueco tem muito a contribuir para o desenvolvimento das táticas usadas no policiamento de manifestações no Brasil. É preciso caçar pérolas.”
O que faz de um policial um bom policial?
“Um bom policial tem que ter o conhecimento da lei. Ele tem que chamar a lei de ‘tu’, e não de ‘vossa senhoria’. Ou seja, tem que ter intimidade com a lei. Ele também tem que ter treinamento e equipamento adequado. No Brasil, muitas vezes, quando o policial sai da viatura o colega não sabe o que ele está fazendo, porque eles não têm comunicação por rádio. Aqui na Suécia, cada policial tem o seu radinho individual para falar com o colega, e isso é uma coisa básica.”
“Outra coisa que o policial tem que saber é que ele está ali para servir o público”, completa Gustavo.
“O policial é um servidor do público. Se ele sempre partir dessa premissa, vai agir de forma mais digna com o público. Infelizmente, muitas vezes o que se vê no Brasil é que a polícia trabalha para o governo. Só que governo vai, e governo vem. Mas o povo fica.”