Como crime do 8 de janeiro está sendo usado contra o direito de protesto

Especialistas apontam que aprovação da Lei dos crimes contra o Estado de Direito se somou às formas já em vigor de criminalização de manifestações, como aconteceu em ato do Movimento Passe Livre (MPL) contra tarifa em SP

Manifestantes empunham pedaços de papéis simulando notas de R$ 5 com o rosto do governador Tarcísio de Freitas, que determinou o reajuste da tarifa de metrô e trens no começo de janeiro de 2024, durante protesto em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito é um crime que passou a existir a partir da promulgação da Lei 14.197/2021, e que ficou mais conhecido há um ano por conta das acusações e condenações contra pessoas que participaram dos atos golpistas e dos ataques aos prédios dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.

No texto, esse crime aparece da seguinte forma, no artigo 359-L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. A pena varia de quatro a oito anos de prisão, “além da pena correspondente à violência”, ou seja, pode ser maior.

Além dos ataques golpistas, outro caso em que esse crime passou a ser atribuído, como a Ponte revelou há uma semana, foi contra 13 de 25 jovens detidos, dos quais seis adolescentes, que participariam de um protesto convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o reajuste da tarifa de metrô e trens, de R$ 4,40 para R$ 5, no dia 10 de janeiro deste ano na capital paulista.

Eles foram detidos na saída da estação República do Metrô, que fica a aproximadamente 500 metros do Theatro Municipal, centro de São Paulo, onde o protesto estava se concentrando. A polícia afirma que eles estavam com objetos como faca, canivete, gaze, porrete, garrafas de álcool, gasolina e vinagre, soco inglês improvisado e pedra.

A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito veio para substituir a Lei 7.170/1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional (LSN) que teve diversas versões na ditadura civil-militar com a finalidade de combater adversário políticos em nome da segurança do Estado, o que legitimou uma série de violações de direitos humanos. De acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, houve um aumento de 285% de inquéritos abertos pela Polícia Federal com base na LSN entre 2019 e 2020, os dois primeiros anos de gestão do então presidente Jair Bolsonaro.

“Pode-se dizer que a abertura de tais inquéritos se insere em uma estratégia de intimidação judicial promovida pelo Governo Federal com o objetivo de amedrontar e calar qualquer tipo de oposição”, escreveram os pesquisadores do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut) em relatório sobre a aplicação da Lei de Segurança Nacional.

O assunto estava em alta na época porque esses inquéritos foram abertos contra personalidades conhecidas, como os jornalistas Ricardo Noblat e Hélio Schwartsman, intimações para prestar depoimento para o youtuber e influenciador Felipe Neto, o advogado Marcelo Feller e o hoje deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP). Em geral, por críticas feitas contra Bolsonaro pela gestão durante a pandemia.

É neste contexto que a lei de 2021 passa a ser gestada e depois aprovada em regime de urgência, o que, de maneira simplificada, significa que um projeto de lei é avaliado em menos tempo e com menos requisitos pelo Congresso Nacional. Isso angariou, de um lado, aprovação, mas também críticas de diferentes setores. Diversas entidades, como a ONG Artigo 19, elencaram esses casos sobre a aplicação da LSN e fizeram notas técnicas, inclusive, criticando a maneira que os parlamentares estavam tratando o assunto.

“Era o meio da pandemia de Covid-19, tinham diversos projetos de lei nas duas casas legislativas [Câmara dos Deputados e Senado] que diziam respeito a um momento emergencial da pandemia, em que as pessoas tinham diversas urgências para garantir a própria vida, a própria integridade física, e esse projeto acabou se tornando prioridade para o Legislativo e foi aprovado num regime que, justamente por ter um procedimento encurtado, acaba impossibilitando a participação da sociedade civil”, critica Maria Tranjan, que é coordenadora do Programa de Proteção e Participação da Artigo 19.

No texto original do projeto, havia o crime de atentado ao direito de manifestação, que previa pena de um a quatro anos de prisão a quem tentasse “Impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação de partidos políticos, de movimentos sociais, de sindicatos, de órgãos de classe ou de demais grupos políticos, associativos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos”.

Esse trecho, porém, foi vetado pelo então presidente Bolsonaro com a justificativa de que seria difícil caracterizar uma “manifestação pacífica” e que traria “insegurança jurídica” para a atuação das forças de segurança pública. “Isso poderia ocasionar uma atuação aquém do necessário para o restabelecimento da tranquilidade, e colocaria em risco a sociedade, uma vez que inviabilizaria uma atuação eficiente na contenção dos excessos em momentos de grave instabilidade, tendo em vista que manifestações inicialmente pacíficas poderiam resultar em ações violentas, que precisariam ser reprimidas pelo Estado”, escreveu na justificativa do veto.

Para Maria Tranjan, esse teria sido um dispositivo que poderia trazer um mínimo de garantia ao direito de protesto. “Ele vetou alguns artigos, não foi só esse, só que era o único nessa lei que realmente resguardava essa aplicação como a gente está vendo nesse caso da prisão dessas 25 pessoas. É algo que está completamente alinhado com a postura do governo Bolsonaro durante todo o seu governo de promover estruturas para a criminalização dos movimentos sociais, das pessoas que defendem o direito de protesto e para, em alguma medida, remontar aquilo que estava sendo muito utilizado por ele mesmo e pelos seus aliados políticos que já existia na Lei de Segurança Nacional”, pontua.

No boletim de ocorrência sobre os 25 detidos, a Polícia Militar alegou que a abordagem se deu porque esses jovens estavam usando roupas pretas, máscaras e mochilas. O delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), justificou os indiciamentos ao escrever que mensagem de rede social, não explicitando qual, convocando o protesto que “evolui para um chamado de que se não tiver seus anseios atendidos irão ‘parar a cidade’ alimenta por si só um sentimento de enfrentamento” porque o horário marcado para a caminhada do ato começar coincidia com a saída das pessoas do trabalho, o que motivaria, para ele, “caos e desordem urbana” e causaria “um genuíno atentado contra o Estado Democrático de Direito no seu viés de aplicação de políticas públicas prevista na Constituição Federal, não sendo a violência a forma adequada e legal para solução de lides”.

No inquérito, foram anexadas uma postagem do MPL que traz orientações sobre como se proteger da violência policial, cujo texto não trazia ilegalidades; um vídeo de parte da caminhada de um protesto, que não se informa a autoria, em que o delegado destaca se tratar de “imagens dos fatos, com as faixas de “‘antifas’ e ‘Fogo no Pavio’”; um flyer com fotos de manifestações em que aparece em destaque uma faixa escrita “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”, com o logo do perfil Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB); e uma página em branco com a frase “Coquetel molotov é uma arma química incendiária, que combina diversos líquidos inflamáveis e é, geralmente, utilizada em protestos e guerrilhas urbanas” em que não fica claro se é uma postagem nem de onde foi retirado.

Integrante do MPL, Geo Andrade destaca que desde as jornadas de junho de 2013 houve um recrudescimento da violência policial que faz com que as pessoas tenham medo de sair às ruas e exercer sua cidadania. “A gente preparou esse material num lugar de autocuidado, de segurança, entendendo também que o Estado e as forças da polícia vão operando nesses lugares, de atuação de movimento social, para reprimir não só fisicamente uma manifestação, mas também com violências outras, abusos outros, com enquadros, como a gente tem visto nos últimos anos”, afirma. “A gente tem uma outra cartilha que é ‘Fui detido. E agora?’ Você tem o direito de saber para qual delegacia você está indo, tem certos protocolos que devem ser feitos quando você está sofrendo um enquadro, por exemplo. São informações importantes para as pessoas saberem e obviamente existe uma vontade [por parte do Estado] de que isso não seja divulgado, o que também é uma ferramenta de opressão”.

Geo Andrade, que enfatiza que o movimento não tem lideranças e atua de forma horizontal, acredita que a reivindicação de direitos, como o de acesso universal ao transporte, gera esse tipo de criminalização por colocar em evidência a falta de acesso a políticas públicas pelas camadas mais vulneráveis da população e uma tentativa do Estado mantê-las afastadas. “Eu acho que a falta de transporte mobiliza tanto porque toda a cidade é organizada a partir disso. Inclusive, as formas de manter as pessoas cada vez mais distantes dos seus direitos. A gente sempre fala que direito ao transporte é um direito que perpassa os outros”, pondera.

Além disso, ela lembra que a busca pela tarifa zero não é utópica, já que mais de 100 cidades têm algum tipo de gratuidade relacionada aos ônibus e 84 municípios conta com transporte coletivo urbano gratuito como um todo no Brasil. “Essa lógica que a gente tem na cidade hoje, onde as pessoas trabalham no centro e depois vão para as periferias nos transportes lotados, é também de rejeição a longo prazo à essa população. A gente está falando de um número gigantesco de pessoas que fazem isso todos os dias, com mais de duas horas no transporte”, afirma.

À Ponte, Ana Gabriela Ferreira, que é advogada e professora de direito penal na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), explicou que usar máscara em manifestações públicas não é inconstitucional, já que após os protestos de junho de 2013 alguns governos estaduais passaram a criar leis para proibir uso de máscaras e outras regras em manifestações, como em 2019 em São Paulo, mas a constitucionalidade dessas normas ainda está pendente de julgamento em ação no Supremo Tribunal Federal (STF).

Por isso, a pesquisadora da Artigo 19 aponta que não é uma surpresa a Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito acabar sendo utilizada contra protestos que têm reivindicações legítimas devido ao arcabouço de controle de protestos que se proliferou. “É mais triste que 10 anos depois de 2013, que foi quando explodiu (ou pelo menos tomou mais visibilidade) esse contexto de criminalização de protestos no Brasil, a gente continue tendo esse problema. Continua esbarrando numa leitura equivocada de tipos penais e na criação também de tipos penais que acabam sendo mobilizados para criminalizar movimentos sociais, pessoas exercendo direitos de protesto, defensores de direitos humanos e assim por diante”, afirma.

É o que acontece, por exemplo, com o crime de associação criminosa, que, quando da criação do Código Penal de 1940 tinha o nome de “quadrilha ou bando”. Os 13 detidos também foram indiciados por isso. Uma pesquisa lançada em novembro do ano passado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mapeou 55 casos de perseguição a movimentos sociais, entre 2013 e 2023, na capital e na região metropolitana de São Paulo. Em 19 deles, os ativistas foram criminalizados por tipos penais como furto, incitação ao uso de drogas, desacato e associação criminosa. 

Em entrevista à Ponte na ocasião, as coordenadoras do levantamento ressaltaram que a associação criminosa é “um tipo penal aberto” pois o texto é genérico ao prever que o crime ocorre pela associação de três pessoas ou mais com a finalidade de cometer crimes. “É muito raro você ver alguém construindo alguma luta sozinho. É um tipo penal facilmente associado porque as pessoas realmente estão em ações em grupo. Existe uma identificação com uma pauta comum e muitas vezes se aproveita dessa atuação coletiva para dar essa característica”, disse Ana Lia Galvão, assessora da equipe de programas do IDDD.

Um dos casos famosos em que a associação criminosa foi atribuída a manifestantes foi a detenção que ficou conhecida como “os 18 do Centro Cultural São Paulo (CCSP)”.

Em 4 de setembro de 2016, 18 jovens foram detidos diante do centro cultural na região central da capital, antes de uma manifestação contra o presidente Michel Temer (MDB) na Avenida Paulista, em uma operação policial em que um juiz comparou aos crimes da ditadura militar e que envolveu a participação — nunca explicada pelas autoridades — de um capitão de inteligência do Exército, atuando sob identidade falsa e com práticas recorrentes de assédio sexual, como Ponte revelou ainda naquele ano.

Na audiência de custódia, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo determinou a liberdade de todos. O magistrado afirmou que não havia ilegalidade na posse de qualquer dos objetos apreendidos com eles, como vinagre e material de primeiros socorros, nem indícios de que os jovens tivessem intenção de praticar algum delito. Comparou a ação do governo paulista à ditadura militar: “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou”.

Mesmo assim, os 18 foram sido denunciados pelo promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza com base em um inquérito policial em que o delegado Fabiano Fonseca Carneiro, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil, apontava o porte de vinagre e de equipamentos de primeiros socorros como prova de crime, misturando as acusações com textos de articulistas conservadores, como o agora deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) e o jornalista Reinaldo Azevedo, e discursos em favor do “estabelecimento de limites” para “o direito de livre manifestação”. Em 2017, todos foram absolvidos.

As especialistas entrevistadas pela Ponte têm a mesma perspectiva e ressaltam que a atribuição do crime de tentativa violenta de abolir o Estado Democrático de Direito e a associação criminosa não se enquadram no caso da detenção dos 25. No caso do 8 de janeiro, havia uma série de comprovações, como filmagens, sobre os participantes pedirem por intervenção militar, pela derrubada do STF, e a destruição de fato do patrimônio público por não aceitarem o resultado das eleições de 2022.

“No caso de ir a uma manifestação em que se questiona o preço de passagem e se afirma abertamente isso, a única coisa que os manifestantes fazem é pedir pela baixa dos preços da passagem. Não existe um intuito em nenhum momento associado à abolição do Estado Democrático de Direito. Existe um exercício regular do direito de manifestação e de expressão”, explicou Ana Gabriela Ferreira.

Bianca Tavolari, que é professora de direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entende que a interpretação extrapolou a apreensão dos objetos considerados “perigosos” para uma criminalização da manifestação em si com base nesses elementos que foram adicionados, em relação às postagens de redes sociais anexadas. “Eles estão extrapolando a ideia de abolição contra o Estado Democrático de Direito como qualquer questionamento ao Estado e contra políticas específicas. No fundo, se você for entender nessa interpretação extensiva, qualquer manifestação contrária ao Estado pode ser lida como atentado contra o Estado Democrático de Direito. Eles estão ampliando essa categoria de maneira bastante impressionante”, criticou.

Tavolari e Tranjan divergem sobre o inciso XVI do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Tavolari entende que a parte de “armas” pode acabar sendo interpretada para armas brancas, como faca, embora não tenha um consenso sobre isso nos tribunais e portar esse tipo de objeto em si não é crime. Já Tranjan compreende como arma de fogo por ser decorrente do momento da elaboração da Constituição, em 1988, que é “posterior à ditadura militar e traz esse caldo político de que você não pode ter uma associação paramilitar” e que armas brancas não se enquadram nessa interpretação.

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Todas as entrevistadas concordam que a PM age de forma discricionária e até discriminatória em abordagens e revistas.

A coordenadora da Artigo 19 ressalta que o Estado trata de maneira diferente determinados grupos. “Existe uma diferença de tratamento e isso passa na raiz da política criminal, na raiz do sistema penal brasileiro, na raiz do próprio Estado brasileiro”, afirma.

Por isso, indica a pesquisadora, o Estado coloca essas pessoas como “ameaçadoras” por contestarem um processo histórico de negativa de direitos. “A gente tem um Estado que tem uma trajetória de racismo, que tem uma trajetória de misoginia, que tem uma trajetória de negativa de direitos para determinadas pessoas, que tem uma trajetória militarizada, especialmente após a ditadura militar, que tem essas heranças todas ainda muito presentes, heranças do processo de escravização, heranças do processo da ditadura militar, inclusive a existência das polícias militares, seu formato, a legitimidade das suas ações. Todos esses elementos geram uma legitimidade muito grande à violência que é praticada contra pessoas que reivindicam direitos.”

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