Duas mães: como é a realidade do sistema de adoção para casais de mulheres

    A Ponte conversou com dois casais de mulheres, um de Mato Grosso do Sul e outro de São Paulo, para contar as histórias de diferentes formas de se tornar ‘mães’

    Monik e Claudia com a filha Laura. Foto: Arquivo pessoal

    A assistente financeira Monik Arantes, 29 anos, e Claudia Oliveira, 33 anos, que é funcionária pública, namoram há 5 anos. Monik, que antes havia estado em um relacionamento heterossexual, enfrentou alguns obstáculos com a família para ter aceitação do relacionamento com Claudia, fato este que fez as duas irem morar juntas. Um desejo antigo de Monik, o de adotar, se tornou também um desejo de Claudia depois da primeira reunião do GRAATA (Grupo de Apoio a Adoção Ato de Amor), na cidade de Três Lagoas (MS). Elas são exemplos de casais de mulheres que conseguiram a esperada adoção.

    “O desejo de adotar partiu de mim, pois a Claudia não pensava em ter filhos. Juntas começamos a ver vídeos, ler e pesquisar sobre adoção. Foi quando resolvemos ir ao fórum pra saber como funcionava. Fomos convidadas a conhecer o grupo de apoio a adoção. Foi aí que o desejo de ser mães passou a ser de nós duas e resolvemos seguir em frente com o processo de adoção”, conta Monik.

    Atualmente, o processo de adoção para casais homoafetivos está menos burocrático e com menos índices de rejeição por parte do sistema judiciário. É o que explica à Ponte o presidente do Instituto Latino Americano de Direitos Humanos e advogado Dimitri Sales. “O sistema de adoção está mais preparado. Há algum tempo, para que se procedesse a adoção, os casais homoafetivos tinham que simular uma relação inexistente, ou seja, um deles tinha que sair da casa, tirar qualquer imagem ou fotografias que lembrassem que se tratava de uma relação de dois homens ou de duas mulheres”, relembra o advogado.

    “Há uns 5 anos, desde que o Supremo (STF) passou a reconhecer a existência de famílias formadas por pessoas do mesmo sexo e entender que essas famílias tem o direito de gozar plenamente desse reconhecimento, não se tem notícia de negação de adoção por casais homossexuais. O Direito de Família é um direito mais sensível às mudanças sociais, lidam com questões que vão além da letra da lei, tocam em questões mais cotidianas, como o afeto, as emoções, as expectativas de felicidade, as frustrações do divórcio. Então geralmente a turma que lida com essas questões são mais sensíveis, e é geralmente nesse âmbito do Direito que a gente avançou no reconhecimento dos direitos da diversidade sexual, por isso que se torna mais fácil a adoção por casais homoafetivos”, explica Dimitri.

    Na prática, esse reconhecimento já pode ser sentido. Monik conta que, durante o processo de adoção, ela e a esposa não sofreram nenhuma forma de preconceito, apesar de terem receio de que isso pudesse acontecer. “Ao contrário do que pensávamos antes da entrada do processo de adoção, fomos muito bem acolhidas e orientadas. Fomos tratadas iguais aos outros casais”, conta Arantes.

    Claudia e Monik. Foto: Arquivo pessoal

    Entre os caminhos percorridos para adotar uma criança, estão: inclusão no Cadastro Nacional de Adotantes, entrevistas com psicólogos e assistentes sociais e idas frequentes às reuniões mensais do grupo de apoio. Para Dimitri, as questões burocráticas que ainda estão em vigor são fundamentais para garantir a segurança da criança, uma vez que “a rejeição a uma criança depois de adotada gera muito mais danos do que o processo de abandono inicial, quando ela é levada a um albergue, ou seja, se você adota uma criança que está em situação de abrigamento e não consegue estabelecer uma convivência e devolve essa criança, isso causará danos muito maiores do que o primeiro abandono. É justamente para evitar esse tipo de ocorrência, que é possível que haja, que há todo um procedimento de primeiro estabelecer uma convivência”, explica.

    O processo de adoção de Laura, que está com as mães Monik e Claudia há 8 meses, durou menos de um ano. “Não vejo diferença em ser mãe por adoção e mãe de biológica. Desejei e lutei para ter nossa filha por 10 meses”, defende Monik. “Laura tornou nossa família ainda mais unida. Conhecemos ela no dia 19 de setembro do ano passado e trouxemos ela para casa quatro dias depois. No terceiro dia em casa, Laura precisou ser internada, pois estava com um caso grave de pneumonia. A nossa filha nasceu com sífilis e foi exposta ao vírus HIV, esse foi o motivo que nos fez passar na frente de tantos casais, uma vez que fomos o único casal que aceitava criança com esse perfil. Ela nos prova dia a dia que o amor cura. Hoje ela está ótima, sendo acompanhada por excelentes profissionais e tem reagido bem a todos os tratamentos”, conta Monik.

    Claudia e Monik com a filha Laura. Foto: Arquivo pessoal

    Em entrevista à Ponte, a psicanalista Lucineia Nicolau Marques, especialista em psicologia clínica, que também está na fila de adoção ao lado da esposa, explica como funciona a preparação psicológica do processo de adoção. Para Lucineia, é importante partir do ponto de que há uma questão de problema social, não da criança, que deve ser combatido.

    “A adoção para algumas crianças e adolescentes pode vir a ser a última etapa de um processo que fala de inúmeras falhas e negligências de nossa organização social, que podem estar entrelaçadas ao racismo e ao preconceito de classe. Essa noção do social, do real, da história que essa criança viveu mesmo que ainda muito nova, é parte importante do preparo de pretendentes à adoção, pois o encontro se dará a partir de dois lados que já possuem uma história, e que se a história da/do adulto não pode ser apagada e esquecida, a da criança e/ou adolescente, tão menos; e isso, se considerado, longe de ser um empecilho, poderá ser a base de um encontro legítimo, honesto, que trará desafios e adaptações para ambos os lados”, explica Marques.

    A outra ponta: o início da adoção

    No começo do processo de adoção, Jacira Santos de Araújo, 35 anos, e Claudete João Gonçalves, 36, vão passar pela primeira entrevista para definir o perfil da criança nos próximos dias. Juntas há 3 anos, o casal já conhece a experiência de ser mães: Jacira tem uma filha de 14 anos que, aos poucos, se tornou filha de Claudete também.

    “Quando decidimos dividir as nossas vidas, eu e minha filha nos mudamos para o apartamento dela. Eu não era assumida e, por ter sido casada com um homem e ter tido uma filha, sofremos muito preconceito. Algumas pessoas não acreditavam que eu era lésbica e que nossa relação era passageira! Depois de 2 anos, compramos uma casa grande com quintal, já pensando em uma família maior. Depois fizemos uma festa de casamento e começamos a planejar a adoção”, relembra Jacira.


    Casal Jacira e Claudete. Foto: Arquivo pessoal

    Ansiosas para começar o processo de contato com a futura filha, Jacira e Claudete já sabem o perfil que querem. “Estamos em busca de uma menina de 9 a 12 anos, o que faz algumas pessoas acharem que é uma loucura da nossa parte, pois ‘será difícil molda-la’ e outros acharem que somos muito corajosas e que nos admiram. Não paramos de pensar: como ela vai ser? O que ela gosta de brincar? O que ela quer ser quando crescer?”, conta o casal.

    A psicanalista reforça que lembrar que se trata de um encontro humano, entre pessoas com idades diferentes e necessidades humanas diferentes, pode potencializar e limitar o exercício dos papeis. “Nem a criança e/ou adolescente salvará a/o pretendente de suas dores, carências e faltas e muito menos o contrário; não há salvadores, mas um bom encontro é capaz sim de transformar positivamente a vida de uma pessoa e de promover qualidade de vida e bem-estar. Tanto quanto a maternidade, precisamos também desromantizar a adoção”, defende Lucineia.

    De acordo com Lucineia Marques, o preparo psicológico deve incluir: investigar intimamente as motivações que as levam a esse processo (se forem inclinadas à ideia de caridade, a chance de serem frustradas são elevadas); conversar sobre as expectativas do casal e, na medida do possível, alinha-las e confronta-las com as informações disponíveis sobre a realidade pode ser um exercício interessante; participar de grupos de apoio a adoção é essencial pelas trocas com os pares; e se nutrir de informações, hoje disponíveis na internet, sobre o processo de adoção, sobretudo sobre a fase de aproximação e convivência, que são as etapas iniciais da construção das relações e da possível parentalidade para ambos os lados.

    Quando questionadas sobre como vai ser a vida das filhas no futuro, em termos de preconceito, as mães – dos dois casais – são enfáticas em suas respostas: será natural, pois o amor será a base da criação. “O fato de ter duas mães não será nada comparado ao preconceito que existe por ela ser por adoção. Ela crescerá bem resolvida em relação a ambos, e acreditamos que tirará de letra essa questão”, reforça Monik.

    Além do preparo dos pais, a preparação familiar é muito importante para a adaptação da criança. “A preparação da família é importante, pois além de mãe/s ou pai/s a criança ou adolescente também poderá ganhar tias, tios, primas, primos, avós e avôs e uma família extensa, e é importante que essa família tenha noção que haverá uma relação a ser construída, um laço que nem sempre se dará à “primeira vista”, e que em alguns casos, uma atitude de aproximação e afeto não aparecerá tão cedo, e isso é normal e parte do percurso”, explica Lucineia. “Esse é um ponto delicado, pois o desconhecimento dos processos normais de dificuldade de aproximação e defesa, sobretudo nos primeiros meses do processo de adoção, poderá acarretar um olhar estereotipado vindo dos familiares, que verão essa criança ou adolescente como ‘difícil e problemático’, que ainda é o grande estigma das crianças e adolescentes que foram adotados”, prossegue.

    Para o casal de São Paulo, que já enfrentou o medo de imaginar a filha sendo discriminada, o aprendizado foi único. “No início fiquei com muito medo de me assumir por causa da minha filha, medo dela ser discriminada na escola, mas vi que os meus medos não se aplicavam, pois as amiguinhas dela tratam o assunto com muita naturalidade. Os jovens de hoje possuem uma mentalidade totalmente diferente do que as dos pais, os adolescentes de hoje já nasceram vendo LGBTs lutarem por seus direitos”, conta Jacira.

    Casal Jacira e Claudete com a filha. Foto: Arquivo pessoal.

    Caso haja alguma forma de discriminação durante o processo de adoção, Dimitri Sales explica que já três possíveis caminhos para recorrer. “O primeiro é fazer uma denúncia para os órgãos mais responsáveis, por exemplo, as Corregedorias. O segundo é a adoção de medidas judiciais de reparação do estado anterior ao da adoção, nem que para isso, no eventual processo de adoção, o juiz tenha que indeferir sem os devidos fundamentos, e, assim, ingressar com recursos perante Supremo (STF). Por fim, também uma outra forma de atuação, que é estabelecer um diálogo com a sociedade demonstrando que determinados juízes ou parte do poder judiciário ainda se pauta por condutas discriminatórias, é importante, portanto, que esse caso seja levado adiante para que se dialogue com a Imprensa, com as organizações não-governamentais, com a sociedade civil”, explica o advogado.

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