Comunidade cria memorial para Gabriel Hoytil, morto pela polícia com marmita de isopor na mão

    Criança chora durante o protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Moradores, familiares e movimentos sociais realizaram mais um protesto por jovem negro morto por um policial civil neste mês. Um grafite com o rosto de Gabriel foi desenhado próximo ao local onde ele foi alvejado enquanto almoçava

    Neste sábado (30/10), os moradores na Comunidade do Piolho, zona sul de São Paulo, realizaram mais um protesto pela morte do engraxate Gabriel Augusto Hoytil pela polícia civil. Um grafite com seu rosto foi pintado próximo ao local da morte pelo artista Plínio Cristovivigraf. Muitas crianças estavam presentes.

    O jovem de 19 anos, foi morto com um tiro no rosto pela Polícia Civil, no último dia 20 de outubro, enquanto almoçava de uma marmita de isopor. O ato, uma semana após seu enterro, é o segundo desde sua morte, após um ato na Avenida Paulista. Foi organizado pelas entidades Mochileiros de Cristo, pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, além dos próprios vizinhos e familiares de Gabriel.

    “Da família dele, ninguém vai calar a boca”

    No começo do ato, na Viela 2 da comunidade, dezenas de moradores, adultos e crianças, assistiram a pintura do grafite e escreveram frases em cartazes.

    Crianças desenharam em cartazes durante protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Entre eles, estava a prima de Gabriel, Ingrid Maria Santos Raimundo, 19 anos. Ela escreveu em uma cartolina branca disposta no chão: “O pedido é um só, justiça”.

    Ingrid afirmou à reportagem Ponte. “Levou um pedaço de mim, eu estava junto de todos os passos do Gabriel. A gente vai atrás para não ser só mais um caso.”

    “O pedido é um só, justiça”. Ingrid Maria Santos Raimundo, prima de Gabriel | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Para a jovem, que vestia uma camiseta com o rosto do primo, para ter essa justiça, é preciso enfrentar o receio da retaliação. “Não é certo chegar e matar uma pessoa! Então, se a população não for para cima, vai ser só mais um caso… mais um Gabriel, mais um Guilherme, mais um João. E não é isso que a gente quer. Tem muita gente que tem medo de falar o que a polícia faz, com medo de ela voltar e fazer pior. Mas, da família dele, ninguém vai calar a boca enquanto não acontecer justiça!”

    Arte como transformação

    Através da entidade Mochileiros de Cristo, o grafiteiro Plínio, 40 anos, foi convidado a produzir um desenho na comunidade em memória a Gabriel. Ele encara a arte exposta no local como uma forma de conscientização social.

    “Acredito que a arte de uma maneira geral e o grafite, pelo qual eu me expresso, é uma ferramenta muito poderosa de conscientização, de intervenção, de transformação de ambiente”, afirma o artista à Ponte. “E com certeza eu sei que as crianças e os moradores aqui estão sendo impactados. Em alguns lugares que eu fui, as pessoas até chegaram a expressar que elas se sentem valorizadas pelo fato do artista entrar na comunidade e fazer uma intervenção.”

    O artista Plínio Cristovivigraf desenhou o rosto de Gabriel em um grafite dentro da Comunidade do Piolho | Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

    Passar por situações semelhantes de violência a que foi vivida por Gabriel, foi o que o sensibilizou a ir até o local. “Nós vemos constantemente diversos tipos de injustiças, discriminação, ou julgamentos por causa da cor, por causa da localidade que moramos nas regiões periféricas. Particularmente eu me sensibilizo muito pois já sofri diversas situações aonde não havia culpa, mas eu era culpabilizado por algum motivo”. 

    Visitas da polícia

    Ainda na viela, a auxiliar de limpeza Cintia Janaina Nobrega, 33 anos, conversou também com a Ponte: “Ele era uma pessoa muito gente boa, tranquilo. Gostava muito dele, ele era querido por muitos. Quando aconteceu, eu estava dentro de casa. Mas aqui, direto, eles entram, agridem. Falam que as pessoas estavam armadas, mas nunca estão. Já presenciei muito isso aqui dentro”.

    Enquanto a Ponte conversava com Cintia, dois policiais militares da Força Tática adentraram correndo armados na comunidade, mas logo saíram.

    Policiais durante o protesto dentro da comunidade do Piolho | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    A seguir, a manifestação, então com dezenas de moradores, saiu da viela e ocupou parte da rua Rua Cristóvão Pereira.

    Protesto ocupou a rua Cristóvão Pereira que dá entrada a comunidade do Piolho | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Cerca de três viaturas da Polícia Militar estavam presentes no final da rua, mas não houve impedimento à ocupação do local.

    Policiais da Força Tática durante protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Na Critóvão Pereira, encontramos Thaís Rodrigues da Silva. Cozinheira, vizinha e amiga de Gabriel, ela disse que as ações violentas da polícia são recorrentes na comunidade e alertou os moradores para gravarem abusos policiais. “Chega! Só porque é negro vai ser morto? Não vamos abaixar a cabeça para eles. Qualquer coisa que acontecer aqui na comunidade vamos filmar. Se abaixarmos a cabeça não vai ser só o Gabriel, vão ser vários. Marmita não é arma” .

    Por volta das 16h um cartaz dizendo “Contra o Genocídio” foi estendido por ativistas da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio na rua Cristóvão Pereira

    Faixa estendida pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    “Mais uma vez, estamos aqui na quebrada para reafirmar que não vão nos calar. Nós pobres, pretos e periféricos não vamos temer a esse Estado genocida! Parem de nos matar!”, discursou então Márcia dos Santos, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo. 

    Em sua fala, entoada em jogral pelos moradores da comunidade, a psicóloga e articuladora da Rede, Marisa Feffermann pediu um basta à violência. “Exigimos justiça! Não vamos nos calar! Basta! Chega de violência!”. Foi quando todos começaram a gritar novamente: “Marmita não é arma”.

    Em um pedido de paz, crianças da comunidade soltaram bexigas brancas no céu e finalizaram o ato. 

    Moradores prestam homenagem a Gabriel | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
    Crianças soltaram bexigas brancas ao final do ato | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Morte na hora do almoço

    As investigações sobre a morte de Gabriel estão no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Nesta semana, familiares da vítima e testemunhas devem prestar depoimentos sobre o caso. 

    A morte de Gabriel foi registrada no boletim de ocorrência como “morte decorrente de intervenção policial”. O documento foi elaborado pelo delegado Fabio Guedes Rosa, do 96º DP, na noite de quarta (20) e aponta que os policiais civis Gilmar Guilon Silva, Thiago de Almeida Fonseca Albuquerque, Sergio Augusto Tolomei Teixeira de Monteiro Palmei e André Ricardo Hernandes participaram da ação. Segundo eles, Gabriel estaria traficando drogas armado. Não há informação de quem efetuou os disparos que atingiram o jovem.

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    A versão dos policiais é contestada pelos moradores da comunidade que dizem que Gabriel estava apenas com uma marmita de isopor nas mãos e não oferecia risco a ninguém, uma vez que era um rapaz tranquilo e respeitoso com todos na comunidade.

    Outro lado

    Procurada pela reportagem para falar sobre a entrada de policiais militares dentro da comunidade na tarde deste sábado (30) e sobre os avanços na investigação acerca da morte de Gabriel, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo informou apenas que “a equipe de investigação realiza diligências em busca de elementos que auxiliem no esclarecimento dos fatos. A Corregedoria da Polícia Civil também apura todas as circunstâncias da ocorrência e, se constatadas irregularidades, medidas cabíveis serão tomadas.”

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