Comunidade LGBTQIA+ protesta contra o fechamento do Museu da Diversidade

Manifestação é resposta contra decisão judicial que suspendeu o contrato de licitação entre o governo de São Paulo e a empresa terceirizada que geria o local

Ativistas e artistas se reuniram em frente ao Museu da Diversidade Sexual para resistir ao fechamento do equipamento cultural. | Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

O maquiador Jean Cavalcanti, 37 anos, aguardava há mais de dois anos o lançamento do livro Duo Drag. Ele faz parte do grupo de cinquenta drag queens fotografadas por Paulo Vitale. O projeto seria lançado em formato de livro, neste sábado (30/04), no Museu da Diversidade Sexual, localizado na estação República do Metrô, na região central de São Paulo. Para ficar mais perto do evento, Jean, morador da zona norte da cidade, alugou um quarto em um hotel no centro para se caracterizar como drag e participar da exposição. 

À espera, no entanto, foi por água abaixo, por volta das 16h da sexta-feira (29/04), quando ele recebeu a notícia de que o museu havia sido fechado por conta de uma decisão judicial, fruto de uma Ação Civil Pública (ACP) protocolada pelo deputado estadual Gil Diniz (PL), conhecido como “Carteiro Reaça”, apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL). “Eu tinha acabado de chegar no hotel e meu celular começou a apitar, quando eu olhei, pensei: não é possível que isso esteja acontecendo”, lamentou. “É um projeto tão grande, considero muito grave o que aconteceu, é uma agressão contra a comunidade LGBTQIA+”, concluiu Jean.

Jean conta que, em um primeiro momento, ficou chocado com a notícia, mas logo reagiu e expôs a situação nas redes sociais. “Percebi que estava muito silencioso e a gente precisava fazer um barulho, para ter visibilidade, comecei a mandar mensagens para deputados e vereadores que conheço da comunidade LGBTQIA+.” 

Jean Cavalcanti participou do coletânea de imagens do livro Duo Drag e colaborou na organização do ato contra o fechamento do museu. | Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo

Instantes depois, a vereadora Érika Hilton (PSOL) compartilhou em sua conta do Instagram um posicionamento contrário ao fechamento do aparelho público, o que culminou com a mobilização deste sábado. “Até que começou a tomar forma e rolou a possibilidade dessa manifestação, que é o que está acontecendo aqui hoje.”

O encontro que celebraria o lançamento do livro tornou-se uma manifestação contrária ao fechamento do museu e a consequente interrupção das exposições e trabalhos culturais oferecidos pelo equipamento. 

O ato começou por volta das 15h e contou com cerca de 100 pessoas, entre ativistas, profissionais da cultura, artistas e parlamentares, que exigiram em falas públicas a reabertura imediata do museu, o lançamento da exposição, a transparência nas contas públicas e nas investigações dos contratos entre o governo estadual e as organizações privadas que gerem serviços públicos no estado de São Paulo. 

Posições ideológicas e LGBTfóbicas foram o que motivaram o fechamento do museu, na visão do fotógrafo Paulo Vitale. “O ensaio resgata a beleza, a potência e a complexidade inerente à arte e drag, essa personificação é muito única, colocar drags no museu talvez isso incomode muita gente. Fiquei muito surpreso, é uma manifestação artística que deveria ser respeitada.”

Salete Campari, 52 anos, drag queen que também participou do ensaio, lembra que a reivindicação do espaço museológico vem desde o governo de Geraldo Alckmin (PSDB), o que não se concretizou. Durante a gestão de João Doria (PSDB), o local que seria destinado à população LGBTQIA+ na Avenida Paulista passou a ser destinado ao Museu de Gastronomia. “Alckmin já tinha decidido e doado um espaço do museu lá na Paulista para a gente, mas nesse momento que vivemos, de muitos assassinatos de pessoas LGBTQIA+, ter um espaço que represente a arte drag é muito importante.”

O fotógrafo Paulo Vitale e a drag queen Salete Campari, em frente ao Museu da Diversidade. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

Ainda que seguranças da ViaQuatro, do Metrô, tentassem limitar o espaço da manifestação com grades de ferro ao fundo do corredor onde se localiza o museu, o anseio por um ambiente de memória da população LGBTQIA+ se traduziu em um abraço dado no museu. Em formato de roda, os manifestantes circularam ao redor da pequena instalação aos gritos de “resistência” e “viva as drag”. 

Jean questionou as imposições da vigilância da estação. “Estamos na frente do museu que foi cedido pelo governo do estado de São Paulo e fechado e temos que ficar em um lugar para não incomodar? Temos que incomodar sim, porque a gente é incomodado.”

Já a drag queen e ativista Tchaka, 52 anos, enfatizou a importância da exposição ocorrer. “Nós perdemos a memória, a história e a continuidade de uma população exclusivamente LGBTQIA+. Quando tem um museu, um cinema, um teatro, uma praça fechada. Se tentam matar a minha existência, eu serei resistência”.

Tchaka Drag Queen, apresentadora da parada LGBT+ da cidade de São Paulo. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

O fechamento do museu é parte de um processo de desmonte do pensamento crítico, pondera Neon Cunha, 51 anos, ativista trans independente e publicitária. “Existe um desmonte, uma anulação sistêmica da educação, do pensamento crítico, que faz com que uma sociedade não entenda qual é a funcionalidade de um espaço museológico, que não é só de conservação, é de preservação, de manutenção. E mais que isso, é de estímulo a repensar a história, inclusive, para que não se repitam crimes de ódios, de violência.”

Segundo Neon Cunha, impedir a visibilidade da população LGBTQIA+ é também desumanizar esses corpos. “Isso diz muito sobre quais são as vidas que estão sendo negociadas por esses métodos perversos de desqualificação da humanidade”, afirmou. “Por que pessoas que diariamente pagam suas passagens, trabalhadoras e trabalhadores que circulam nesses espaços, não têm direito a acesso a uma cultura?”.

Neon Cunha, 51 anos, ativista trans independente e publicitária. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

Contrato com Instituto Odeon 

As verbas destinadas ao Museu da Diversidade Sexual passaram a ser alvo de críticas do deputado estadual Gil Diniz (PL) quando, na ACP protocolada ainda em dezembro de 2021, o parlamentar alegou ser “exorbitante” o valor alocado no equipamento, o que segundo a peça jurídica “ofende à moralidade administrativa, pois, ao que parece, o valor anunciado não condiz com a necessidade de expansão do museu”. 

O deputado ainda criticou o investimento, pois o museu recebe, segundo ele, 35 mil pessoas por ano. Diniz sustentou que “há fortes indícios de ilegalidade e desvio de finalidade no investimento, haja vista as diversas matérias sobre a relação direta e antiga entre o secretário da cultura e a diretora executiva da associação que gerencia o museu.” Diniz afirma que relações profissionais anteriores entre Sérgio Leitão e Danielle Barreto Nigromonte sugerem o favorecimento de um para o outro. 

Diante disso, uma decisão liminar foi proferida pelo desembargador Carlos Otávio Bandeira Lins, do Tribunal de Justiça de São Paulo, na quinta-feira (28/04). A ordem determinou a suspensão do contrato de R$ 30 milhões entre o Instituto Odeon e a Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. O convênio teria validade até 2026 e permitiria a expansão do museu de 100 m², para 540 m², segundo informações constadas nos autos processuais e acessadas pela Ponte.

Fachada do Museu da Diversidade Sexual após a manifestação. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

A deliberação pelo fechamento do museu não está diretamente mencionada no despacho do magistrado, que também questiona a idoneidade da organização social contratada “e a incerteza a respeito da existência de penalidades eventualmente aplicadas a ela, em razão do descumprimento contratual na gestão que fez do Theatro Municipal de São Paulo”.

Tal como a decisão anterior da juíza Carmen Cristina Teijeiro, expedida em 8 de abril, Bandeira Lins também aponta contas reprovadas pelos órgãos de fiscalização com relação a “ausência” de R$ 600 mil em valores de bilheteria do Theatro Municipal de São Paulo, que, de acordo com o texto da magistrada, teriam sido apropriados indevidamente pela empresa contratada pela OS [Organização Social] para gerenciamento do serviço.

Para Toni Zagato, arquiteto e servidor da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, a decisão do judiciário não poderia ser privada, uma vez que o equipamento é público. “Essa decisão e esse pleito do deputado afetam a coletividade, afetam toda a comunidade LGBTQIA+ e a população como um todo, que deixam de poder usufruir de um equipamento cultural.” 

Toni Zagato, servidor da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

Na visão dele, a investigação sobre a destinação dos recursos não deveria provocar o fechamento do museu. “O Ministério Público tem todo o tempo do mundo para investigar se está tendo controle social, transparência, um conselho fiscalizatório, se o conselho gestor, que deveria existir para um equipamento cultural e pra qualquer um, foi consultado. Uma decisão como essa, cai como cascata, afetando a coletividade sem nenhuma responsabilidade social.”

Em vista disso, Zagato e outros servidores colocaram-se disponíveis para trabalhar no museu apesar das inúmeras terceirizações. “Foi muito emblemático que os servidores públicos tenham se disponibilizado a estarem aqui diariamente, mantendo esse equipamento aberto.” 

Outro ponto levantado pelo arquiteto é o caráter da ação do deputado estadual Gil Diniz, que para ele é oportunista. “A ação é oportunista, ele [deputado] não faz isso com todos os supostos outros desvios de dinheiro público que podem estar acontecendo nas outras organizações, ele vem para cima da população que mais morre no planeta, a população LGBT do Brasil, sobretudo a população trans. Então tem alvo e o judiciário está tomando uma decisão de forma apressada.”

A vereadora Érika Hilton compreende a posição do deputado como uma “cruzada contra os direitos e contra o pertencimento material, histórico e cultural das pessoas LGBTQIA+.” Ela ainda aponta que pretende frear o fechamento do museu. “Nós iremos até as últimas consequências para evitar que esse fechamento aconteça”, declarou. “Nós não podemos aceitar mais que se retirem espaços de convivência, de construção, de memória da comunidade LGBTQIA+.”

A vereadora Carolina Iara (PSOL) disse em sua fala, durante o protesto deste sábado, que pretende fazer reuniões com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e com Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. “O museu não é da Odeon, não é da Amigos da Arte, é nosso. Então eles vão ter que provar primeiro que houve irregularidades e não simplesmente fechar. E eles vão ter que reabrir e publicar novos editais.”

Manifestantes carregam cartazes durante o ato na estação República do Metrô, em São Paulo. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

O que diz a Secretaria da Cultura 

Em nota à Ponte, a Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo afirmou que uma decisão judicial culminou no fechamento da instituição e que irá recorrer da decisão liminar, pois considera essencial o desenvolvimento de políticas de visibilidade da cultura LGBTQIA+.

“A expansão do Museu da Diversidade Sexual (MDS), dos atuais 100 m² para 540 m² no mesmo local, na estação República do Metrô, irá permitir a realização de exposições multimídia de longa duração, exposições temporárias e eventos.” 

Segundo a pasta, o Museu da Diversidade Sexual é a primeira instituição do tipo na América Latina e irá completar 10 anos em 2022. A nota ainda afirma que a “seleção da organização social responsável pela gestão do Museu da Diversidade Sexual seguiu a legislação vigente e todas as normas de convocação pública. Ela aconteceu entre outubro e dezembro de 2021 e a organização social escolhida apresentou toda a documentação necessária.”

A secretaria ainda diz que o investimento no Museu da Diversidade é de R$ 9 milhões para a ampliação e o custeio para o primeiro ano de funcionamento. O valor de R$ 30 milhões corresponde ao repasse para gestão do museu durante os cinco anos de vigência do contrato de gestão e o custo anual de funcionamento é de R$ 5 milhões.”

Em nota publicada no seu próprio site, o Instituto Odeon disse que a seleção da organização social que faz a gestão do museu aconteceu por meio de Convocação Pública e “que seguiu as normas aplicáveis, e não por meio de um processo de licitação.” 

Manifestante observa montagem fotográfica exposta no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo. Foto: Daniel Arroyo | Ponte Jornalismo

A convocação, segundo o instituto, o “cumpriu todas as exigências legais, levando à seleção da entidade com a melhor proposta técnica e orçamentária.” 

A nota também menciona que a própria Fundação do Theatro Municipal de São Paulo “já se posicionou afirmando que não houve desvio por parte do Instituto, bem como que o mesmo não foi diretamente responsável pela apropriação dos valores. Não houve aplicação de qualquer penalidade que signifique a declaração de inidoneidade do Instituto ou a proibição de participar de chamamentos públicos ou celebrar parcerias e contratos com o Poder Público, em qualquer esfera.”

O Instituto Odeon concluiu a sua nota afirmando que não medirá esforços para retomar as atividades do museu.

Procurado pela reportagem, o Tribunal de Justiça de São Paulo não respondeu, ao menos até a conclusão desta reportagem, porque não foi tomada nenhuma medida emergencial a fim de não provocar o funcionamento do museu. 

A Ponte questionou o deputado Gil Diniz sobre as motivações da ação e se o mesmo é contra o funcionamento do equipamento cultural, mas não obteve respostas por parte do parlamentar.

Em seu perfil no Twitter, o parlamentar celebrou o fechamento do museu. “Não terá amostra “Drag” no Museu LGBT graças a esse Deputado Gil Diniz, que teima em fiscalizar o Governador e seus secretários!.”

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