‘Que Justiça é essa que não teve nem perícia no local, no dia? Sabe por quê? Porque não era filho do governador. Quando o helicóptero caiu, foi uma comoção. No meu caso, é só mais um filho de uma mulher preta. Só mais um preto, favelado, trabalhador’, diz Gisélia Barbosa Lima, mãe de Henrique Barbosa da Silva, 18 anos, executado por PMs de SP, em 2012
Cássio Andrade Bigas, 39 anos, ex-cabo da Polícia Militar de São Paulo, está foragido da Justiça. Expulso da corporação no ano passado por ter executado Henrique Barbosa da Silva, de 18 anos, o agente foi condenado a 14 anos e 6 meses de prisão em regime fechado em 6 de fevereiro de 2013 por homicídio qualificado e fraude processual. A defesa entrou com recurso no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e a absolvição foi indeferida.
Assim, o advogado Celso Machado Vendramini entrou com recurso especial no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e seu cliente aguardava a definição em liberdade, quando deixou o Presídio Militar Romão Gomes, no Jardim Tremembé, zona norte de São Paulo. No dia 18 de maio deste ano, o recurso especial também foi indeferido. Depois disso, a juíza Patricia Inigo Funes e Silva, do TJ-SP, determinou na quarta-feira (1º) que o ex-cabo deve se entregar, o que não aconteceu até a publicação desta reportagem.
Em nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que “a Divisão de Vigilância e Capturas da Polícia Civil informa que o mandato de prisão está em aberto e o condenado é procurado”. A pasta também disse que “a Polícia Militar esclarece que o homem citado foi excluído da corporação em abril de 2014”.
Questionado pela Ponte Jornalismo sobre a situação do PM, o advogado Vendramini foi enfático: “Já larguei esses caras faz tempo. Não tenho nada a ver com eles. Não sei de nada”. O DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, reconheceu à época que o então cabo e um outro PM, Luiz Vianna Labella, 51 anos, tentaram simular um confronto com Henrique para ocultar o assassinato. Com isso, ambos foram presos em flagrante por homicídio qualificado. O cabo Labella foi inocentado em 8 de novembro de 2012, mesmo tendo afirmado em testemunho que atirou. No dia 9 de janeiro de 2013, ele já estava com uma arma em seu poder novamente.
“A Polícia Militar informa que o PM citado [Luiz Vianna Labella] foi excluído da corporação em abril de 2014, após processo disciplinar. Contudo, foi reintegrado em outubro do mesmo ano por decisão judicial. Atualmente, ele está afastado por problemas médicos”, afirma a Secretaria da Segurança Pública.
O cruzamento de Henrique com os dois policiais militares começou a se desenhar por volta das 2h daquele 18 de março de 2012, um domingo. Naquele horário, o jovem deixava a lanchonete Mc Donald’s do Shopping Interlagos, onde havia sido contratado há quatro meses para ganhar R$ 700 e ajudar seus pais a criar seus dois irmãos. Ele decidiu ir com amigos ao aniversário de uma colega no bairro Cantinho do Céu, na região do Grajaú, zona sul da cidade, onde seria morto horas depois. Enquanto isso, o supermercado Ki Preço Baixo, no cruzamento entre as ruas Francisco Inácio Solano e a Rubens de Oliveira, cujo uma das sócias era a esposa do cabo Labella, estava sendo assaltado. O caixa do estabelecimento foi arrombado e vários produtos, dentre eles muitas bebidas alcóolicas, foram levados.
Os jovens que estavam no aniversário souberam do assalto que ocorrera naquela madrugada e ficaram apreensivos. Por isso, mesmo com a festa no fim, os adolescentes adiaram a volta para casa, que seria feita a pé. Ao jornal “Diário de São Paulo”, um dos colegas de Henrique afirmou, na época, que eles pensaram em desviar o caminho para não passar em frente ao Ki Preço Baixo, mas optaram por fazer o trajeto de sempre. “O Henrique até comentou que não devíamos nada e, por isso, não tínhamos com o que nos preocupar”, afirmou uma das testemunhas. Às 4h, a vítima e outros seis rapazes, de 14 a 18 anos, passaram em frente ao estabelecimento comercial, onde cruzaram com Bigas e Labella.
Para explicar o caso, a polícia afirmou que Henrique pegou uma lata de energético no chão, que havia sido deixada pelos bandidos durante a fuga. Foi nesse momento que os PMs Labella e Bigas começaram a atirar, de acordo com a corporação. A versão dos depoimentos dos dois policiais, ao qual a Ponte Jornalismo teve acesso, não foi a mesma da instituição. Os policiais disseram que Henrique estava armado e atirou primeiro, o que depois foi comprovado como mentira. O primeiro tiro atingiu Henrique na nuca. O segundo, disparado a queima-roupa, acertou a testa. Os outros seis amigos da vítima, de 14 a 18 anos, fugiram. Eles chegaram a ser perseguidos pelos policiais, mas não ficaram feridos.
No 85º DP (Distrito Policial), no Jardim Mirna, Labella e Bigas apresentaram um revólver calibre 38, com a numeração raspada, afirmando que era de Henrique. Entretanto, apenas cápsulas de calibre 380 e .40, compatíveis com as armas dos PMs, foram encontradas no local. Isso chamou a atenção do DHPP, que colheu o testemunho de sete pessoas que, sem exceção, disseram que Henrique foi baleado pelas costas e que estava desarmado. Com as provas, a investigação entendeu que a arma foi forjada, para modificar a cena do crime. Enquanto a ocorrência era registrada, Labella conseguiu fugir, mas foi recapturado no Grajaú e levado novamente para o prédio do DHPP.
A mãe de Henrique Barbosa da Silva, Gisélia Barbosa Lima, de 40 anos, afirmou à Ponte Jornalismo que sente que o Brasil é um país sem Justiça. Ela pede a prisão dos dois policiais, critica a letalidade policial e relembra, com saudade, do filho que estava orgulhoso com o emprego de atendente em lanchonete e que havia acabado de comprar um aparelho celular de pouco mais de R$ 200.
“Duas pessoas tiraram sangue de um trabalhador. O outro [Luiz] saiu do julgamento, em 2013, pela porta da frente, rindo da minha cara. E se fosse o contrário? E se o meu filho tivesse tirado a vida de uma pessoa? Na rua, esses PMs vão continuar matando. Os dois. O meu menino não foi o primeiro e nem vai ser o último a morrer por policiais. Anteontem mesmo estava vendo em Brasília que dois PMs mataram um pedreiro, fora o Amarildo e as Mães de Maio”.
“E foi muito pouco o que ele pegou. 14 anos? É bem pouco. E foram os dois que assassinaram o meu menino. Não foi só um, não. Pegaram o carro do mercado e colocaram o corpo em cima, quando viram que era trabalhador. Quando viram que na mochila só tinha a roupa do Mc Donalds. Foi uma execução. Na frente de todo mundo. Tinha muita gente na rua, por que era 4h, o horário de todo mundo ir para o serviço. Foram os dois. Eu só espero a Justiça de Deus agora. Forjou arma na mão do meu menino. E a reconstituição foi feita depois de um ano. Que Justiça é essa que não teve nem perícia no local, no dia? Sabe por quê? Porque não era filho do governador. Quando o helicóptero caiu, foi uma comoção. No meu caso, é só mais um filho de uma mulher preta. Só mais um preto, favelado, trabalhador”, afirmou.
“Os dois policial são daqui. Eles sabem quem eu sou e onde eu moro. O Luiz, eu sempre vejo no mercado, onde tudo aconteceu. Já que eles estão na rua, é rapidinho para eles virem aqui me matar e matar meus meninos. O Henrique só queria estudar, se formar, fazer Educação Física. Dizia: ‘mãe, quando eu me formar, vou ensinar as crianças’. Ele falava: ‘mãe, no final do ano vou conhecer a praia’. E nem deu. Se houvesse Justiça, os dois policiais estariam presos.”