Condenados pobres que já foram presos podem ser isentos de pagar multa, decide STJ

Pessoas que cumpriram pena de privação de liberdade e comprovarem não ter condições de quitar pena de multa podem ter a punição extinta; levantamento aponta que mais de 90% dos egressos não têm bens nem dinheiro em banco para arcar com dívida

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Pessoas que cumpriram a pena de privação de liberdade mas não conseguem pagar multa estabelecida na condenação podemficar isentos se comprovarem hipossuficiência, ou seja, incapacidade de arcar com as despesas judiciais sem prejudicar o próprio sustento. Essa foi a tese estabelecida por unanimidade pela Terceira Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça), nesta quarta-feira (24/11), e que serve como precedente para tomada de decisão dos tribunais que analisem casos semelhantes.

Os ministros analisaram dois recursos especiais impetrados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo nos quais dois réus haviam sido condenados por tráfico de drogas, cumprido a pena de prisão, e pediam pela extinção da punibilidade pelo pagamento de multa. As solicitações haviam sido negadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) na primeira e na segunda instâncias. João* foi sentenciado a dois anos e 11 meses de reclusão, no regime inicial semiaberto, e pagamento de 291 dias-multa, em 2015. Já Rodrigo* foi condenado a quatro anos de reclusão e pagamento de 400 dias-multa, em 2017.

O STJ adaptou um entendimento que já havia proferido em 2015, quando reconheceu que, tendo o cumprimento da pena privativa de liberdade, o não pagamento de multa não impediria o reconhecimento da extinção da punibilidade. Porém, em 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que não retirou o caráter criminal da multa, ou seja, fazendo com que a inadimplência não pudesse extinguir a punibilidade, o que gerou confusão. Esse entendimento do STF também acabou corroborado no artigo 51 do Código Penal após modificação pela Lei do Pacote Antricrime, na qual determina que o juiz da execução penal cobre a quitação da dívida, que antes era feita pela Fazenda Pública. Se em até 90 dias o Ministério Público não entrar com ação para executar a dívida, conforme o decidiu o STF, a Fazenda Pública pode realizar essa cobrança.

De acordo com a professora de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater, a pena de multa é independente da pena de prisão, sendo prevista no Código Penal, e nela não é considerado o aspecto socioeconômico do acusado, mas sim a natureza do crime. “No sentido teórico, é uma forma de dissuadir as pessoas de cometer crimes, então os crimes que têm algum tipo de vantagem financeira, o legislador coloca uma pena de multa”, explica. “Desde o furto ao latrocínio, tráfico de entorpecentes, embora não seja um crime patrimonial, mas a pessoa pode visar um lucro, vai ter pena de multa também, além da prisão; crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro, frequentemente têm pena de multa”, prossegue.

Já o cálculo do pagamento dos dias-multa, também chamada de multa pecuniária, em uma sentença ao ser fixada pelo juiz considera a situação financeira do réu e a gravidade do crime imputado. O menor valor é de um trigésimo (1/30) de salário mínimo e o maior é de cinco salários mínimos. Não há previsão legal de isenção por hipossuficiência, o que agora, com a decisão do STJ, pode ser analisada caso a caso. A Ponte não conseguiu localizar nos autos do processo dos recursos como foi determinado o valor em quantidade de salário mínimo das multas de João e Rodrigo.

Se fosse pelo menor valor, considerando que em 2015 o salário mínimo era de R$ 788, João pagaria R$ 7.643,60. Já Rodrigo, pela mesma hipótese e considerando que em 2017 o salário mínimo era de R$ 937, pagaria R$ 12.493,33.

A multa, se não quitada, segundo a professora, passa a ser cobrada como se fosse “uma dívida tributária”, regida por regras fiscais. O dinheiro vai para o Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), que é administrado pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e tem a finalidade de prover recursos para a manutenção do sistema prisional. Desde 1996, a pessoa que não paga esse débito não pode ser presa por isso, no entanto, acaba tendo dificuldades para se ressocializar. Ela não consegue emitir uma certidão negativa de antecedentes criminais, a pena continua aparecendo como “em aberto”, e pode ter dificuldades para conseguir um emprego. Também pode impossibilitar a obtenção ou regularização do CPF e título de eleitor.

“A pessoa não tem acesso a uma gama de auxílios sociais que o governo fornece por causa disso”, aponta o defensor público e assessor Criminal e Infracional da Defensoria Pública de SP Glauco Mazetto. “Quando fizemos a petição, o Bolsa Família exigia CPF ou título de eleitor [para se cadastrar], o programa Minha Casa, Minha Vida, tarifa social de energia elétrica, benefício de prestação continuada, auxílio emergencial na pandemia, tudo exige CPF e como a pessoa vai regularizar o CPF se não pagou a multa?”, questiona.

O Ministério Público Estadual informou à Defensoria que até maio deste ano foram ajuizadas 73.666 execuções de pena de multa, ou seja, processos de cobrança de pagamento. Com base nesse cenário, a Defensoria realizou um levantamento de processos de execução de multas que foram intimados, ou seja, que representam os acusados e tiveram conhecimento da cobrança, obtido com exclusividade pela Ponte. De janeiro de 2020 a maio de 2021, o órgão localizou 4.529 processos. Com exceção de 526 que não possuíam informações de valores a serem cobrados, 65% dos processos têm valor de ação de até R$ 1 mil. 53% das cobranças não passavam de R$ 500.

Em 355 processos, a Defensoria conseguiu informações sobre o perfil dessas pessoas: 69,9% delas trabalham, 55% têm filhos, 70% têm o ensino fundamental completo ou incompleto e 51,4% informaram que recebiam por mês até R$ 1 mil. As profissões mais recorrentes são de autônomo, pintor, ajudante, servente de pedreiro, auxiliar de serviços gerais e mecânico. 73,1% informaram que recebem por diária entre R$ 50 até R$ 100. A maioria (96%) não possui depósito em banco, imóveis (95%) nem veículo (92%) para quitar o débito.

Uma resolução de 2017 da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo disciplina que não será proposta execução fiscal visando cobrança de débitos quando o valor da causa for igual ou inferior a 1.200 UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), cujo valor em real varia anualmente. Dentre elas, está prevista a multa de processos criminais. No levantamento da Defensoria, considerando que em 2021 cada UFESP está em R$29,09, 98,2% (ou 3.934 processos) têm valor de ação até 1200 UFESPs. De acordo com o defensor Glauco Mazetto, não é feita a cobrança desse valor por ser mais caro para a Fazenda Pública ao empenhar esforços para execução dessa dívida do que o pagamento da dívida em si. “Com a decisão do STF e o Pacote Anticrime, houve uma mudança do entendimento do STJ [de 2015], que foi um retrocesso, por isso entramos com esse recurso para se fazer distinção da cobrança das pessoas pobres”, pondera. “Essa nova decisão do STJ é importante porque reconhece os efeitos maléficos para as pessoas que podem perder seus direitos políticos e de cidadania pelo não pagamento da multa”, critica.

Um dos casos que a Ponte mostrou que ilustra essa dificuldade de pessoas em situação de vulnerabilidade social em pagar as multas foi o de Jéssica Monteiro, que ficou conhecida por ter dado à luz na carceragem de uma delegacia quando foi detida grávida sob a alegação de tráfico de drogas, em 2018. No ano passado o Tribunal de Justiça a sentenciou um ano e oito meses de reclusão em regime inicial aberto e pagamento de 166 dias-multa. Em setembro deste ano, uma mobilização nas redes sociais a ajudou a quitar o valor da multa após ser intimada a pagar R$ 5.278,28, já que a sentença havia transitado em julgado, ou seja, não havia mais possibilidade de recorrer do resultado da decisão. De acordo com a professora Maíra Zapater, a multa só pode ser cobrada após o trânsito em julgado da sentença.

Ela também aponta que não se pode confundir a hipossuficiência com o princípio da insignificância nesses casos. “O princípio da insignificância diz respeito ao cometimento do crime e faz referência ao prejuízo para a vítima, ao patrimônio dela, e se aplica a crimes patrimoniais em que se tem uma lesão insignificante ao bem jurídico, então não tem a ver com a possibilidade de a pessoa pagar a multa ou não”, esclarece.

O ministro e relator Rogério Schietti, em sua fundamentação, menciona esse princípio em relação aos crimes tributários e fiscais, acolhendo inclusive a argumentação da Defensoria Pública, apontando uma “assimetria socioeconômica que aflige o País” em que há uma tolerância para recolhimento desses valores, mas Zapater explica que é uma situação diferente dos crimes patrimoniais. “Sempre que tem um crime tributário, ou seja, crimes para os quais a Fazenda Pública iria ajuizar uma ação tributária de execução fiscal para cobrar esse dinheiro, existe esse valor mínimo de R$ 20 mil”, aponta. “Então, interpreta-se que para ter ação penal por crime tributário tem que seguir o padrão da Fazenda Pública. Se para a Fazenda Pública [R$ 20 mil] não é significativo, não poderia ser para a ação penal, esse é o raciocínio, não é que os R$ 20 mil sejam pouco, mas pensando no macro, se a Fazenda Pública consegue dispensar esse dinheiro, como a gente está cobrando multa de R$ 500 de quem está passando fome?”, prossegue.

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Agora, para Glauco Mazetto, o desafio será comprovar diante dos tribunais a hipossuficiência para que os magistrados de fato sigam a orientação do STJ. “Talvez com uma declaração da pessoa, a gente vai estudar o melhor caminho, mas quando uma pessoa é intimada e não se acham bens em seu nome para serem penhorados, fica muito claro que ela não tem como arcar com aquela dívida.”

*Os nomes foram ocultados para preservar os egressos.

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