No Espírito Santo, queda nos indicadores de violência doméstica sugerem subnotificação
Foram 28 anos de pequenas, médias e grandes maldades. Mãe de duas filhas adolescentes, Maria sempre sofreu calada. O corpo, no entanto, deu sinais de exaustão. O tempo foi passando, ela foi ficando hipertensa, cardíaca e convivendo com dores difusas no corpo, que foram diagnosticadas como fibromialgia. Foi em meio à pandemia do novo coronavírus que a capixaba decidiu pedir socorro após correr o risco de ser enforcada.
Depois de mais uma briga, o pai das suas duas filhas empurrou a mulher no chão, que, de joelhos, começou a sentir falta de ar, à medida que o marido tentava asfixiá-la. Ultimamente, João vinha ameaçando-a de tirar a guarda das filhas, alegando que ela não tem condições de educá-las porque não trabalha. A dependência econômica é antiga, porque João nunca deixou Maria trabalhar. Os nomes do casal são fictícios, mas a história é real e ocorreu num apartamento em Vitória, na capital do Espírito Santo – estado que, por anos, protagonizou as maiores taxas de violência doméstica do país.
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Depois de relutar durante décadas em denunciar o marido, Maria decidiu que chegara a hora de dar um basta naquela situação de violência. Com uma saúde delicada que a coloca na condição de refém dentro da sua própria casa para evitar o contágio da Covid-19, Maria decidiu romper o silêncio. Pegou o telefone e ligou para o Centro Integrado Operacional de Defesa Social (Ciodes) pedindo socorro. Ninguém apareceu para ajudá-la. Uma das filhas, que havia gravado a cena do pai agredindo a mãe, estava nervosa demais para acalmar a vítima. O agressor, por sua vez, saiu calmamente porta afora de casa, avisando que voltaria mais tarde – acostumado a agredir a mulher há quase três décadas, João não acreditou que o ciclo da violência chegara ao fim. Ele estava certo.
Sempre que conversamos com agentes de segurança, costumamos ouvir o mesmo argumento de culpabilização das mulheres quando elas decidem denunciar seus parceiros
Edna Calabrez Martins, membro do Fórum de Mulheres do Espírito Santo e da Articulação de Mulheres Brasileiras
Com as marcas da agressão no pescoço, Maria se dirigiu ao Pronto Atendimento da praia do Suá, um dos bairros mais antigos de Vitória, para cuidar do ferimento e dos problemas de saúde, decorrente de anos e anos de violência doméstica. Admitiu que era com muita tristeza que havia decidido expor sua situação ao ligar para o Ciodes. É que o fato da agressão ter sido presenciada por uma das filhas, a fez sentir obrigação de proteger as meninas. Só que acabou desistindo de fazer o Boletim de Ocorrência, ao se dar conta que seu pedido de ajuda havido sido ignorado. “Sempre que conversamos com agentes de segurança, costumamos ouvir o mesmo argumento de culpabilização das mulheres quando elas decidem denunciar seus parceiros”, denuncia Edna Calabrez Martins, membro do Fórum de Mulheres do Espírito Santo e da Articulação de Mulheres Brasileiras.
Só no mês de março, foram registrados 450 menos Boletins de Ocorrência em todo o estado
Michele Meira, Gerência de Proteção à Mulher (GPM) da Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo
Para muitas mulheres, como é o caso de Maria, o lar está longe de ser um local de proteção e cuidado, revelando-se, ao contrário, um lugar de perigo constante, no qual diversas formas de violência se expressam cotidianamente. A desistência de Maria em denunciar o marido explica porque no Espírito Santo os indicadores de violência doméstica e familiar estão em queda livre em pleno confinamento social. De janeiro a abril, as taxas de violência domésticas caíram 9% no sistema da Delegacia Online (Deon), 8,20% no Ciodes e 18,5% no Disque Denúncia.
“Só no mês de março, foram registrados 450 menos Boletins de Ocorrência em todo o estado”, calcula Michele Meira, da Gerência de Proteção à Mulher (GPM) da Secretaria de Segurança Pública (Sesp) do estado. “Acreditamos que esteja ocorrendo uma enorme subnotificação”, diz ela. É fato. Maria é a melhor tradução dessa subnotificação. Em março, a queda foi de 17,81% no sistema da Delegacia Online e em abril, de 19,16% contra o mesmo período do ano anterior.
Na medida em que os registros de Boletins de Ocorrência também estão em queda, a consequência imediata é a redução dos pedidos de medida protetiva. Após o início do isolamento social, foi registrada uma queda considerável desses pedidos. Enquanto entre março e abril do ano passado as medidas protetivas somaram 2.080, no mesmo período deste ano, elas caíram para 1.696.
“É nítida a subnotificação”, comenta Edna, criticando o fato de o governo do estado ter demorado a tomar providências para enfrentar a violência doméstica durante o período da pandemia. A possibilidade de fazer denúncias online só começou em maio, enquanto a quarentena foi decretada em 17 de março. Sem falar no fato, continua Edna, de que os dados “não são transparentes”. Até 2012, por exemplo, o Espírito Santo aparecia como campeão na taxa de homicídios femininos no país. Ainda que tenha havido uma redução nos últimos anos, os indicadores continuam elevados.
“A lei de tipificação do feminicídio foi aprovada em 2015. Antes disso, todo o crime contra a mulher era considerado feminicídio. Se formos somar os homicídios com os feminicídios vamos chegar a um número alto de mulheres que continuam sendo assassinadas no estado, ainda que os números tenham caído nos primeiros cinco meses do ano. Até o dia 31 de maio, do total de assassinatos ocorridos no Estado, o feminicídio correspondeu a 22%. Se somarmos os homicídios de mulheres ao feminicídio, calcula Edna, terão sido mortas 44 mulheres no Espírito Santo durante os cinco primeiros meses do ano. Maria escapou de entrar para essa estatística, ainda que esteja fora da faixa etária alvo preferencial dos dados sobre homicídios contra mulheres.
Levantamento feito pelo Observatório de Segurança Pública (Sesp) do Espírito Santo revela que a faixa etária preferencial para este tipo de crime está entre 35 e 39 anos. Maria é uma mulher perto dos 50 anos. Os maridos, ainda segundo o levantamento oficial, responderam por 17% dos homicídios entre janeiro e maio último, enquanto ex-maridos, como é o caso de João, representaram 83%. As armas brancas estiveram envolvidas em 75% dos assassinatos.
Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo
Parceria entre cinco mídias independentes monitora os casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus