Rodrigo Lima, vocalista da banda, fala sobre novo álbum, intitulado ‘Ponto Cego’, que faz referência desde o processo de impeachment às eleições de 2018
11 de Maio de 2016. O Dead Fish se pronuncia, através do Facebook, sobre o pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A banda, que é do Espírito Santo e conhecida nacionalmente pelos mais de 25 anos de trajetória no hardcore, faz um pronunciamento público com 11 tópicos argumentando que o pedido de impeachment se tratava de um golpe. Ao final do texto, como se fosse um manifesto, a banda deixa claro: “Para quem apoiou este golpe institucional (sim, é golpe): não estamos do mesmo lado e nos enfrentaremos nas ruas. Nas periferias, nos movimentos sociais, a luta nunca dormiu (de modo que nunca precisou acordar e ir tirar selfie com PM)”.
E, antes de terminar o texto e fazer um chamado à desobediência civil, com o argumento de que já não existia mais um Estado Democrático de Direito, a banda sentenciou: “Palavras duras são necessárias nestes tempos de escuridão que se aproximam”.
Quase três anos se passaram e, na avaliação da banda, os tempos de escuridão chegaram. Mais uma vez, o grupo se manifesta, agora por meio da música. O álbum “Ponto Cego” é uma obra, segundo o grupo, de resistência que estampa os novos tempos nos ouvidos de quem quiser ouvir. O single “Sangue nas Mãos”, lançado antes da íntegra do disco, retoma as jornadas de junho de 2013, cita o pré e pós processo de impeachment, com referência ao voto do então deputado – e hoje presidente – Jair Bolsonaro, que homenageou o coronel Brilhante Ustra, reconhecido torturador da época da ditadura militar. As faixas também se referem ao momento atual como de retrocesso em termos de políticas sociais e de risco à democracia.
Bolsonaro também é objeto de crítica nas letras de “Messias”: “Preste atenção ao demagogo / Há trinta anos nesse jogo / Ele agora é a salvação / Ele agora é a salvação/ Sem diálogo, nem projetos / Dando graças ao ódio e ao medo”.
“Ponto Cego”, que dá nome ao álbum, aparece em diversas faixas, como em “A Inevitável Mudança”, que abre o disco como um chamado à reflexão: “Do ponto cego da história brotam vozes de resistência e de luta / Quando o oprimido finalmente se expressa, o resto cala, escuta / Tirando aqueles que nunca querem ouvir, fecham os olhos e sonham com aquilo que nunca mais será”.
A Ponte convidou o vocalista Rodrigo Lima para falar sobre o novo álbum. Para ele, o rock “sempre foi um território de contestação e que de anos para cá se tornou um velho reaça, rancoroso e preconceituoso”.
Confira a entrevista:
Como foi esse processo de criação de Ponto Cego? Você sentiu a pressão de relatar a política brasileira no momento atual?
O álbum novo começou a ser concebido bem depois do golpe na Dilma e de o [Michel] Temer assumir. Lá atrás, em 2016, eu pensei em um álbum mais reto, mais pesado sonoramente, mais melódico na voz e o Ricardo Mastria e o Marcão Melloni [guitarrista e baterista, respectivamente] seguiram isso à risca. Passou aproximadamente um ano e meio e comecei a escrever as letras durante o processo pré-eleitoral de 2018. As letras estavam boas, mas muito agressivas,. Então tive a ideia de chamar um amigo pra conversarmos sobre fazer um álbum com conceito, um conceito mínimo. Esse amigo é o Alvaro Dutra [compositor] que veio para aprofundar muitas das ideias e tirar os palavrões da letra, pois a minha raiva estava ultrapassando o limite do meu limite de como se escrever um álbum. Depois de muitas conversas com o Alvaro Dutra chegamos à ideia do conceito do disco Ponto Cego, que surgiu de um desenho no caderno de letras do Alvaro. Surgiu um apartamento, bem quadrado, cheio de janelas. Dessas janelas, a gente tiraria as letras e o conceito. Foi partindo desse microcosmo/bolha de classe média que passamos a escrever as letras falando de um momento, do olhar do médio, do sentimento por trás dos muros e das câmeras, de dentro das SUVs [modelo de carro de alto poder aquisitivo]. Me senti mais instigado do que pressionado a escrever, passava noites a fio discutindo uma letra, tirando frase, levava no ensaio para o Ricardo tocar comigo e voltava com pedaços de letras sem uso, sinônimos e refrões que não funcionavam. Foi trabalhoso, mas pra mim foi o álbum mais pensando e trabalhado, e no fim está aí. Acredito que seja o álbum mais assertivo da banda, e é essa a intenção desde a primeira demo.
“Ponto cego” é citada em várias faixas, como em “A Inevitável Mudança”, “Sangue nas Mãos” e “Messias”. O que vocês querem dizer com essa expressão?
Essa expressão está em todo o disco, é intencional, é o que liga a obra. Existe o nome do álbum “Ponto Cego”, mas não existe a música “Ponto Cego”. Não sei se percebeu, mas em muitas letras nós fizemos sem sujeito, o que também é intencional. Queríamos ver quem vestiria a carapuça sem ser citado e booo, foi certeiro, muita gente mordeu a isca, saiu mais ainda do armário. Existem várias explicações para o título, uma delas é a mais simples: quando as pessoas dirigem seus carros, ao olharem o que vem em sua direção pelo espelho retrovisor, sabem que existe um ponto cego ali, que existe algo vindo em sua direção, mas que não veem ou fingem não ver, então tentam ignorar, mas pode ser um grande erro. Outra é o conceito de inconsciente para Lacan [Jacques Lacan, psicanalista francês (1901-1981)] se chama ponto cego. E outro o ponto cego relacionado a Foucault [Michel Foucault, filosófo frances (1926-1984)] é o pêndulo. Ele está, inclusive, desenhado na capa. Enfim, o que dissemos com “Ponto Cego” é: vocês tem uma visão criminosamente seletiva e fizeram uma baita merda para esse país.
Em “A Inevitável Mudança”, você fala sobre “aqueles que nunca querem ouvir”. É possível atingir outros públicos?
Não espero nada, ainda mais agora, tantos anos depois de um golpe, depois de uma eleição embasada em mentiras e grupos de whatsapp administrados por robôs. Pintamos um quadro de aqui e agora, da realidade. Agora, fazer uma classe botar a mão na consciência e dizer “fiz merda, vou mudar” é outro papo. Até porque o óbvio, como está posto nesse disco, não está sendo discutido pelas massas. As pessoas não estão dispostas a debaterem, a mudarem de ponto de vista. Elas querem o ponto cego, querem respaldar suas verdades, ditadas pelos robôs das suas bolhas assassinas e elitistas.
ERRATA – Retirada às 8h40 do dia 17/6 a informação de que o Coronel Brilhante Ustra torturou a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ustra comandou o endereço da Tutoia (atual 36º Distrito Policial de SP) quando lá sediava o Doi Codi, enquanto Dilma foi torturada antes deste período, quando o espaço era usado pela Operação Bandeirantes.
[…] FacebookTwitter […]