Em ato no centro de Sao Paulo, grupos lembraram os Crimes de Maio de 2006 e pediram Justiça pelos mortos no período democrático
”Eles não vão viver do nosso medo. Nossos mortos têm voz”. Essa foi a mensagem do Movimento Independente Mães de Maio durante o ato Cordão da Mentira, na última sexta (13/05).
Realizado anualmente, o Cordão deste ano encerrou o I Encontro Internacional de Mães e Familiares de Vítimas do Estado Democrático, e homenageou as Mães de Maio, grupo formado por mães e familiares de pessoas assassinadas por forças policiais.
”Cada lágrima que derramamos é um atraso na vida de vocês, porque vocês não vão ter paz. Mexeu com as Mães de Maio, perdeu o seu sossego”, afirmou Débora Maria da Silva, fundadora do grupo.
O ato saiu do Largo São Francisco e percorreu ruas no centro da cidade, passando pelo Pátio do Colégio e terminando na praça do Patriarca, próximo ao Viaduto do Chá. Organizado por coletivos políticos, grupos de teatro e sambistas da capital, o Cordão da Mentira lembrou os dez anos desde que pelo menos 493 pessoas foram assassinadas após reação de forças policiais e grupos de extermínio a ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) que mataram 43 agentes públicos, entre bombeiros, guardas municipais e policiais civis e miltiares.
Para Laura Calasans, uma das organizadoras do Cordão da Mentira, os dez anos devem ser marcados pois houve ”pouca ou nenhuma resposta” às mortes ocorridas entre 12 e 26 de Maio de 2006 na Baixada Santista, em Guarulhos e na capital paulistana. Além dos julgamentos dos responsáveis pelos crimes, as famílias das vítimas de Maio de 2006 aguardam também por indenizações.
O grupo Mães de Maio começou na Baixada Santista, quando Débora, de 54 anos, se viu perdendo o filho, o gari Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos. ”Edson trabalhou aquele dia com atestado médico, ele estava com pontos na boca. Depois de uma jornada de trabalho, os policiais mataram ele”, relata Débora.
Edson foi assassinado em 15 de Maio de 2006, dia seguinte ao Dia das Mães e dias depois do aniversário de sua mãe . ”Minhas filhas perderam aquela mãe que comemorava o aniversário no Dia das Mães. Eu não aguentava mais a tortura do parabéns para você, que foi a última coisa que o meu filho cantou antes de ir embora”, conta.
Vera Lúcia dos Santos foi uma das mães e avós indiretamente atingidas pelas balas em 15 de Maio de 2016. Sua filha Ana Paula, grávida de nove meses, saiu com o marido para comprar leite, pois queria preparar uma vitamina de frutas. ”Eles não voltaram. Na hora que aconteceu a gente já sabia”, relata.
Mesmo após ser ameaçada de morte inúmeras vezes e permanecer três anos e dois meses presa, acusada injustamente de tráfico de drogas, Vera não tem medo de denunciar. ”Não dá pra matar o que já esta morto. A lei da vida não é você enterrar os seus filhos”, diz, olhando para baixo.
Ana Lúcia de Oliveira se tornou uma dessas mães em busca por Justiça em 05 de abril de 2008, quando seu filho, Michel Antonio de Oliveira da Silva, de 20 anos, desapareceu. ”Ele estava de folga nesse dia, saiu de casa para levar a filha pra casa da sogra . Só sei que levaram ele pra delegacia”.
Segundo ela, o IML (Instituto Médico Legal) achou o corpo de Michel no dia 13 de Abril e ele foi enterrado no dia 18, ”em estado de decomposição”. ”Eu identifiquei o Michel por causa de um chaveiro que eu tinha dado pra ele, escrito ‘Jesus’. Ele foi enterrado como indigente e o exame de DNA só saiu depois de dois anos e dez dias”, conta.
Cosme Filippsen, integrante do Fórum de Juventude do Rio de Janeiro e morador do Morro da Providência, no Rio, perdeu o irmão Paulo Vinicius Filippsen Cortes, de 17 anos, em 2010, morto após ser atingido por tiros.
No ato, Cosme lembrou de seu irmão e criticou o modelo de segurança pública das UPPs (Unidades de Policia Pacificadora). ‘‘Essa polícia racista, machista, homofóbica e genocida tem levado os nossos parentes e amigos. Quando as mães buscam seus filhos ou reclamam de alguma coisa, eles chamam de vadia”, afirmou.
Segundo Cosme, na quinta (12/05), o BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) esteve no Morro da Providencia ”invadindo casas e roubando coisas dos moradores”.
Era fim de 2013. Gláucia estava grávida e comemorava a virada do ano em casa com sua família quando seu filho, Fabrício dos Santos, saiu para calibrar o pneu de sua moto e colocar gasolina, antes de levar um amigo de volta para casa. Fabrício foi morto ainda no posto, com um tiro na testa. ”Eu ficava indo na delegacia, buscando respostas. Mas foi neste ano, no primeiro julgamento da morte do meu filho, que eu encontrei essas mães. Eu me encontrei nelas”, afirma.
Ana Paula, de 38 anos, é uma mãe dos Maios que continuam. Ela perdeu seu filho Jonatan de Oliveira, de 19 anos, assassinado em 14 de Maio de 2014, após ser atingido por um tiro nas costas. Segundo ela, Jonatan havia saído de casa para levar a namorada de volta para a casa dela.
”Naquele dia, teve uma confusão entre a policia e moradores. Aí alguns policiais da UPP de Manguinhos atiraram pra cima e um dos tiros pegou nas costas do meu filho”, conta, chorando.
Segundo ela, o único policial indiciado pela morte de seu filho não foi preso. ”Eles tiram o policial e colocam em outro lugar, ele segue fazendo funções administrativas. Eles só mudam o problema de lugar”. Perguntada se teve medo de denunciar, Ana Paula responde: ”O medo que eu tinha era perder o meu filho. Agora eu não tenho mais medo. Outras vidas dependem da minha luta. Enquanto as pessoas seguem no medo, eles seguem na impunidade”.
”Como ser humano, mãe e mulher negra, eu vim para dar apoio. É um momento de dar a cara a tapa e dizer que não concordamos com o que esta aí, com esse genocídio. Como moradora da periferia, eu sei que isso é comum, ja perdi familiares assassinados. A dor delas tambem e minha”, diz a doméstica Daniela Santos, de 38 anos, acompanhada por seu filho Cauã, de 9 anos.
”Sempre somos os suspeitos que a polícia tem que averiguar, somos revistados sempre. A gente está querendo o mínimo que é sobreviver, não estamos falando nem de viver”, diz Cleiton Ferreira, integrante do Coletivo Quilombaque de Perus, na zona norte da capital paulista.
Para o advogado Felipe Daier, de 23 anos, o direito ao luto é privilégio de alguns. ”Pessoas da periferia e transgêneras são construídas como criminosos e tratados como violentos. Os familiares dessas pessoas não têm direito ao luto e à memória. O Estado seleciona quem pode existir. Não temos pena de morte mas, na prática, ela existe indiretamente por meio das forças policiais”, diz.
Além dos Crimes de Maio, o Cordão da Mentira deste ano lembrou as ocupações organizadas por estudantes secundaristas em São Paulo e o desaparecimento de 43 estudantes em Ayotzinapa, no México, em 2014. ”A luta das Mães de Maio e dos secundaristas é a mesma. Todos eles são colocados como bandidos.”, diz a manifestante Viviane Almeida, de 46 anos.
O I Encontro Internacional de Mães e Familiares de Vítimas do Estado Democrático organizou debates e atividades culturais. Na quinta (12/05), as Mães de Maio inauguraram um memorial no Central Cultural Jabaquara. Após participar do Cordão da Mentira, o grupo seguiu para o Rio de Janeiro. ”A nossa luta também é pelos que estão vivos. As Mães de Maio não tem fronteiras”, afirma Débora.